Arquivo da categoria: Crítica literária

Crítica e ficção sem nostalgias

Luciene Azevedo

Créditos da imagem: Edward Burtynsky. Phosphor Tailings #5, Near Lakeland, Florida, USA, 2012. (Escombros de fósforo #5, cerca de Lakeland, Florida, EE. UU.)

Em Uma arte ecológica, Paul Ardenne coloca no centro de seu problema uma pergunta inquietante para a crítica hoje: considerar a arte útil não é fazer desaparecer sua especificidade? Ardenne reconhece a necessidade de “modificar nossa gramática e nosso vocabulário de prazer” e constata uma demanda para que a arte “faça a diferença”, coloque-se em condição de urgência.

A leitura do livro de Ardenne me interessou menos pela investigação sobre a arte ecológica, sobre o que o francês caracteriza como uma guinada afirmativa do meio ambiente como matéria artística, e mais pela reflexão que o crítico faz sobre as transformações no campo da arte.

O livro traz muitos, muitos exemplos, mas pouca especulação teórica.  Chega um momento em que a montanha de referências perde todo o sentido e funciona apenas como um argumento de força da premissa básica: a arte se transformou, é preciso pensar na Natureza, dela depende a sobrevivência do humano, a arte deve ser útil. Embora essa seja a “mensagem” principal do livro, também chama a atenção o modo como à medida que esse mote vai sendo exposto de forma mais assertiva, Ardenne não se furta a colocar na página as perguntas cruciais: Mas a utilidade não é um elemento externo à arte? É possível tamanha transformação? Isso não significa abandonar uma certa história- até anulá-la- para fazer desaparecer a especificidade da arte?

Apesar de fazer parecer fáceis as respostas às questões espinhosas, encontro no livro a ideia de que há uma mudança nos modos de fazer arte, de que há uma transformação em vários campos do saber e uma insatisfação com a ideia de representação para pensar a arte (substituída pela presença, pela exploração do corpo, pela performance). Ardenne defende que esse é o momento em que a arte pode recuperar sua importância social, deixando de lado uma concepção estética alienante que exalta a contemplação e a beleza e que separa arte e política.

Embora concorde que a arte hoje experimente espaços não convencionais e formas de emancipação da criação que negam marcos tradicionais, não estou bem segura se a saída é a preconizada por Ardenne, que defende que a estética e a representação ficaram para trás e que agora é o momento de a arte se engajar na ação, transformação e atuação direta no contexto no qual intervém.

Se por um lado comemoramos a diversidade das perspectivas narrativas que expõem um mundo mais plural a partir da exploração de temas associados à identidade racial e ao gênero, à questão pós-colonial, à pauperização social, não é tão simples concordar com Ardenne quando afirma que “pensar a forma, pensar em termos estéticos é pouco produtivo” e que “representar é demasiado pouco”.

A tensão entre arte e política, ética e estética parece reavivar um debate tão velho quanto essa tensão: a velha oposição entre forma e conteúdo. É o que aparece subjacente, por exemplo, na resenha de Lígia Diniz feita ao último livro de Itamar Vieira Jr., Salvar o fogo: “É curioso que, no empenho de trazer à ficção a realidade de uma população à margem da modernidade ocidental, o autor recorra a expedientes gastos da literatura mais convencional: mistérios revelados pouco a pouco, alternância entre vozes narrativas que se esclarecem mutuamente e uma insistência na produção imediata de sentido.”

Diniz caracteriza como “espirito do tempo”, um desleixo da imaginação, uma desimportância da ficção (e, por tabela, com a forma, com a ambiguidade própria do dispositivo ficcional) que sucumbem diante do “triunfo da narrativa didática e moralizante, que se esquiva da complexidade humana e finca o pé na prescrição de como o mundo deve ser encarado.” Mas o argumento, apesar de parecer lacrador (aliás, como o do próprio Ardenne), impõe muitos desafios críticos: como lidar com a ambiguidade na construção dos sentidos das obras, com a velha oposição entre forma e conteúdo, com a relação entre o ético e o estético, sem voltar a antigas fórmulas, sem remeter apenas a nostálgicos momentos de conservação de tradições?

Prezar a ambiguidade como uma propriedade da arte (e da própria vida) é um empecilho para uma decisão fácil entre as dimensões ética e estética da produção artística.

Quando os caminhos da pesquisa e da sala de aula se cruzam

Milena Tanure

Créditos da imagem: Locked, Victoria Ivanova.

Partindo das bases da narratologia e da teoria da lírica, tentei certa vez em sala, na busca por análises mais elaboradas de meus alunos, diferenciar narrador, eu lírico, personagem e autor…e essa foi a oportunidade perfeita que minha aluna de 14 anos teve para, com sua formação leitora, sem uma discussão teórica sobre o pacto ficcional de Lejeune ou as discussões sobre a autoficção, questionar: “Mas na literatura contemporânea há uma equivalência de nomes entre narrador e autor em vários livros, professora!”. É bom observarmos que aí não há um questionamento, mas uma convicção de leitora. No mesmo sentido, falando sobre aspectos biográficos de certo autor brasileiro, a aluna manifestou que tal história estava parecendo uma fanfic…termo, aliás, muito citado pelos jovens alunos que, no espaço das redes, se reconhecem autores e grandes leitores.

Escrevo esse relato no blog em um momento em que o trabalho de sala de aula parece se sobrepor ao exercício da pesquisa e quase que impossibilita as investigações da pesquisadora. Nesse momento de angústia, me deparo com situações e falas em sala de aula sobre a literatura brasileira que me devolvem ao campo da investigação e me deslocam de lugares comuns, como a falaciosa percepção de que só na academia se desenvolve o fazer científico em toda a sua constituição. Não é a sala de aula também o espaço para se pensar a literatura brasileira contemporânea? Não é a ação docente espaço para se questionar a publicação e circulação de obras entre jovens leitores?

As inquietações do trabalho docente, para além de me colocarem diante do
debate sobre o contemporâneo e a literatura, me fez relembrar uma postagem nesse blog da professora Luciene Azevedo intitulada O professor e a  literatura. A postagem problematizou os lugares da literatura e da teoria literária na formação docente, bem como a formação leitora dos estudantes de letras e futuros professores de literatura e língua portuguesa. Em especial, me chamou atenção, naquela oportunidade, não apenas o modo pelo qual a leitura literária não é uma prática comum na vida de muitos alunos de Letras, mas sobretudo como as colocações deles costumam ser no sentido de apontar a formação escolar como um dos grandes fatores que contribuíram para isso.

As colocações dos estudantes apresentam como a experiência no ambiente
escolar cria, muitas vezes, uma relação quase que traumática com a leitura literária. Além da leitura obrigatória e avaliativa dos paradidáticos, a literatura ainda costuma ser apresentada “como um conjunto enfadonho de nomes de autores, datas, características de períodos literários e pouca ou quase nenhuma experiência de leitura dos próprios textos apresentados a eles como literários”.

Há, então, um círculo vicioso na medida em que, estudantes de letras desestimulados para a leitura tornam-se professores que, muitas vezes, dominam a teoria e a historiografia, mas não conseguem avançar na discussão do próprio texto com os alunos, deixando de oferecer a eles a possibilidade de construirem uma leitura. Mas há também um outro lado da questão: o professor também pode negligenciar a formação leitora de seus alunos, e isso não significa apenas desconhecer os bestsellers pelos quais eles se interessam, mas, sobretudo, negligenciar o fato de que os alunos leem o que lhes chama a atenção. Nesse aspecto, cito a inocente surpresa que tive em algumas aulas ao me deparar com alunos que leem desde os clássicos europeus à literatura brasileira e norte-americana dos nossos dias sem que isso seja uma exigência da disciplina. Em que pese tal realidade não seja a regra – obviamente que não tenho essa utópica percepção- ela nos coloca diante do fato de que há uma formação leitora que nos instiga a pensar a literatura produzida em nossos dias, assim como os modos de leitura dos sujeitos contemporâneos.

Pensando o agir da pesquisa e a ação docente, relato, ainda, como os alunos,
reconhecidamente leitores, apresentam indagações e colocações sobre a literatura brasileira contemporânea. Ao falar sobre as escolas literárias, por exemplo, sempre surge a pergunta sobre qual seria a escola de agora e quais as características da produção do contemporâneo. Nesses momentos, retomo o lugar da pesquisa e, conforme afirmou Suely Rolnik em palestra proferida no concurso para o cargo de professor titular da PUC de São Paulo, percebo que o pensamento “[…] não é fruto da vontade de um sujeito já dado que quer conhecer um objeto já dado, descobrir sua verdade, ou adquirir o saber onde jaz esta verdade; o pensamento é fruto da violência de uma diferença posta em circuito, e é através do que ele cria que nascem, tanto verdades quanto sujeitos e objetos […] Assim, neste tipo de trabalho com o pensamento o que vem primeiro é a capacidade de se deixar violentar pelas marcas […]”. Nesse ponto, distanciada, em tese, do fazer acadêmico, identifico cada vez mais como o meu objeto de pesquisa, o fazer literário, atravessa, também, o fazer docente e pode se fazer provocativo em diferentes cenários e circunstâncias.

Por uma crítica inespecífica

Luciene Azevedo

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Créditos da imagem: Eikoh Hosoe, Kamaitachi #8, 1965

Já nos acostumamos a ouvir que boa parte das práticas artísticas hoje é marcada pela inespecificidade. Quando a crítica argentina Florencia Garramuño explora o termo, suas análises apontam para obras cujos
gêneros são imprecisos, e a denominação de arte parece imprópria, seja porque os objetos são “pobres”, seja porque a linguagem é sem metáfora ou o escritor e o poeta parecem apresentar apenas um relato do que viveram. Mas será que poderíamos pensar em uma inespecificidade que atinge também os modos de fazer crítica hoje? Aproveitando, então, o mote da inespecificidade seria possível pensar que alguns trabalhos críticos como Rio-Durham (NC)-Berlim. Um diário de ideias e Fragmentos reunidos de Fábio Durão ou O Mundo Inteiro como Lugar Estranho de Néstor Canclini deixam de lado requisitos determinantes para que dada produção seja considerada crítica?

Alberto Giordano, crítico argentino, que recentemente lançou dois livros que consistem em uma compilação de entradas críticas no facebook, plataforma que Giordano transformou em uma espécie de diário on-line para seus comentários, afirma que tem desejo de produzir um tipo de crítica que possa “suprimir as conjunções, as transições, interromper e não concluir, sugerir sem apresentar, afirmar e não oferecer provas”.

Mas vamos tomar o exemplo de Canclini. A própria obra é estranha e essa estranheza é acolhida como experimento. Os textos reunidos não pertencem a um gênero específico. Adotam o tom ensaístico, tateante, mas se valem de anedotas (“Pós-xerox”), fingem-se de entrevistas (“Lugar para a dúvida” e “O que não podemos responder”) e inventam personagens (como a voz do doutorando, presente em “Maneiras de citar” e “Supermercado de papers”). Há pouco aí que pode ser identificado à crítica, tal como estamos acostumados. Embora o autor dialogue com um número grande de fontes e em alguns textos faça citações direta das obras e autores evocados, não encontramos referências precisas, pois a recusa de apontar uma bibliografia é uma decisão metodológica apontada por Canclini: “seria contraditório com o sentido deste livro”, afirma.

 E que sentido seria esse? Embora o autor não faça uma reflexão sobre isso de forma explícita, me parece que a própria organização da obra quer apostar em valorizar mais as perguntas que as respostas (“trata-se de que os debates tornem visíveis as incertezas”…de “trabalhar o irresoluto das explicações”), em colocar em xeque o próprio lugar de autoridade do crítico, em expor situações de embaraço com a própria rotina e com os compromissos acadêmicos e em relacioná-los com a produção intelectual tout court.

Enfim, tudo isso aparece na forma do experimento crítico que quer flexibilizar ou contingenciar “precisões acadêmicas”, apontando-as inclusive como obsoletas em tempos de internet, pois “no fim das contas, na época do Google, basta colocar qualquer frase no servidor para ele nos enviar ao lugar de surgimento”.

Ao afirmar que é preciso então recorrer a uma “tormenta de gêneros” para problematizar a prática crítica e a prática do próprio crítico, Canclini parece sugerir um desejo de sair de um certo fazer crítico, de ir tateando na direção de uma inespecificidade que diz respeito não apenas à própria condição discursiva dos textos, que ao tematizarem episódios e identidades reais da vida acadêmica recorrem à ficcionalização, mas à própria condição do crítico como um pensiero debole: “Nem sempre está claro quem fala”, disse-me alguém que leu o rascunho deste livro. ‘Às vezes falta o sujeito’”.

Assim, a incerteza não deve ser encarada como lugar estranho à atitude crítica, mas pode ser  recuperada como ideia basilar, imanente ao próprio fazer crítico, pois como defende Canclini: “falar sob o ponto de vista da academia ou da erudição de uma disciplina não deveria nos poupar dessas dúvidas”.

A incerteza como estranheza é um estímulo a “imaginar novos modos de indagação”.  Em uma era em que as práticas digitais conduzem a um “novo regime simbólico”, não só o fazer crítico pode se reinventar como prática cultural, mas pode nos dar dicas de como encarar os desafios que nosso presente nos impõe.

Machado de Assis e a Crítica Literária Brasileira

Samara Lima

Créditos da imagem: Kerry James Marshall. “Sem título (Estúdio)”, 2014.

No meu último post, Literatura e Afrodescendência, comentei que a produção machadiana vem sendo lida sob a ótica de um discurso contra-hegemônico. Mas, ainda hoje, não é raro que pessoas, dentro e fora da academia, comentem a suposta indiferença de Machado de Assis aos problemas de sua época.

Em muitas das minhas leituras sobre a recepção crítica de Machado, observo que esse pensamento é um modo de continuar uma espécie de “denúncia”, presente por muito tempo na crítica literária brasileira, que alegava despreocupação de Machado em relação à situação do negro na sociedade brasileira para negar sua etnia. O Bruxo do Cosme Velho é chamado de o “anti-mulato” por Mário de Andrade, por exemplo.

Outra avaliação nada positiva já estava presente em Silvio Romero, crítico literário contemporâneo de Machado de Assis. Ao lançar em 1897, o livro Machado de Assis, que é um trabalho comparativo entre Machado e Tobias Barreto, Romero profere as primeiras críticas ácidas ao autor, condenando-o pela ausência de “cor local”, por falta de brasilidade.

Para Machado, a ideia de valorização dos aspectos brasileiros, que reinava na época, abriu margem para a leitura equivocada ao só reconhecer como nacional obras que tratassem de aspectos locais, como a flora e fauna e os elementos indígenas. Daí o desejo machadiano de criar uma literatura que extrapolasse as tendências impostas pela época, afinal “o que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço”, afirma o escritor em seu célebre ensaio “Instinto de Nacionalidade”.

Consoante o pensamento de Machado, de que é possível escrever sobre a sua época de uma maneira singular e própria, busco, por meio de uma leitura também a contrapelo, atenta aos interditos, compreender de que forma como o autor, utilizando seus recursos estilísticos, como, por exemplo, a ironia, desenha de maneira crítica as mazelas e as incongruências da sociedade brasileira oitocentista e se posiciona frente à mentalidade que vigorava no século XIX, visando, dessa forma, contribuir para um maior entendimento da sua produção ficcional e para a revisão das leituras que veem em Machado um escritor alienado.

LIMIARES DA CRÍTICA: a construção de um discurso crítico-inventivo

Milena Tanure

Créditos da imagem: Antony Micallef, disponível em: https://inspi.com.br/2016/09/arte-contemporanea-de-antony-micallef/

Muitas das reflexões que têm sido aqui empreendidas têm nos levado a refletir sobre a multiplicidade de formas que o corpo contemporâneo assume no interior do campo literário. A instabilidade dos gêneros, a retomada ou consolidação de uma dicção ensaística, o lugar da autoria e as narrativas de si, de algum modo, vão sendo pensados ao longo dos textos e leituras aqui apresentados. Mantendo-me na linha de tais discussões, tenho refletido sobre o modo como a crítica literária tem sido afetada por esse cenário e por uma série de fatores que levam à reformulação não apenas dos seus objetos de análise, dos aparatos teóricos e críticos de que se vale, mas, em especial, da sua própria forma de feitura.

Se antes tínhamos uma exacerbada ânsia por um objetivismo na construção das ciências, sobretudo em função de um positivismo científico do século XIX que alcançou todos os campos do saber e de um estruturalismo que buscou construir bases para a análise literária, hoje, o reconhecimento da subjetividade como algo inapagável na construção textual tem sido um mote irrecusável. Dessa forma, se nas narrativas contemporâneas o lugar da autoria e os entrelaçamentos entre ficção e realidade têm sido repensados, por exemplo, no espaço da crítica, o mesmo tem se operado, seja pelo reconhecimento do crítico como leitor repleto de subjetividades ou pela constituição de um entre-lugar entre o campo da produção literária e da crítica a partir da presença de autores que se dividem entre o labor acadêmico no campo das letras e da produção ficcional.

O lugar da crítica tem sido constantemente questionado, sobretudo a partir das transformações nos distintos ramos da ciência gerados pelo declínio das ciências humanas. Nesse contexto, Eneida de Souza aponta que “o reconhecimento do estatuto ficcional das práticas discursivas e da força inventiva de toda teoria nos alerta para a íntima relação entre o artístico e o cultural no lugar da exclusão de um pelo outro”. Souza (1993) destaca, que, anteriormente, seguindo o que se tinha desde os formalistas russos, o new criticism e demais correntes da teoria literária, o destaque e maior relevância eram ofertados ao objeto de análise, sendo o sujeito, seja o autor ou ensaísta, colocado em segundo plano. O anseio da crítica de ser ciência dava origem a uma escrita que nem sempre se fazia agradável, uma vez sendo reprodução das terminologias técnicas, o que confluía para uma reprodução de enunciados e não mais uma escrita própria.

Nesse mesmo período, os paradigmas estruturalistas passaram a ser questionados, inclusive pelos seus representantes, como Roland Barthes. Questionando o discurso científico, sobretudo em seu caráter repressor do sujeito, Barthes colocou em cena o fato de “ser todo e qualquer saber indissociável de um trabalho de escrita e enunciação” (SOUZA, 1993, p.4). Nesse cenário de incertezas se apresenta uma nova roupagem à crítica ou, para melhor dizer, um novo questionamento sobre a própria literatura, o fazer ficcional e a crítica literária. Assim, pensando os processos de transmutação da crítica e da produção literária, é válido citar um discurso ambíguo e ambivalente da crítica a partir do que Leyla Perrone-Moisés (1978) denominou de Crítica-escritura. Uma vez que tal crítica interna tem sido perceptível em produções literárias contemporâneas, é possível compreender que a crítica-escritura pode ser entendida como a crítica da crítica, uma vez tendo a si mesma como objeto e sendo, ao mesmo tempo, comentário sobre a ficção e ficção. Findada a separação tradicional entre crítica e a obra literária, a escritura se mostra livre de várias formas, sendo a intertextualidade uma delas. É nesse cenário que a crítica literária se reinventa e “assistimos, então ao aparecimento de um novo tipo de discurso literário, aflorando no lugar anteriormente ocupado pelo discurso crítico: um discurso crítico-inventivo” (PERRONE-MOISÉS, 1978). Em “Notas sobre a crítica biográfica”, Eneida de Souza sinaliza o modo pelo qual, nesse cenário, a literatura deixa de ser objeto de análise e passa a também analisar e teorizar sobre si mesma. Dessa forma, “o próprio sujeito teórico se inscreve como ator no discurso e personagem de uma narrativa em construção”, cabendo citar, nesse ponto, Retrato desnatural (Diários – 2004-2007), de Evando Nascimento, com todas as suas dificuldades para a delimitação de gêneros dos seus textos e o constante trânsito entre literatura e a reflexão sobre o próprio fazer literário e a Teoria da Literatura. Diante de tais dificuldades, a epígrafe do primeiro capítulo do livro, intitulado Escrevendo no escuro, nos oferece a pista precisa dada pelo autor/narrador/crítico: “pois se tornou/imperativamente necessário/escrever na primeira pessoa, mas/sem ingenuidade, com todos os disfarces. o a(u)tor”.

Se a pesquisa na área da literatura tem revelado incertezas e imposto novos trânsitos, é preciso, com alguma coragem e opondo-se a lugares já conhecidos de conforto, reconhecer, conforme sinaliza Evelina Hoisel, que “a questão dos limiares críticos aponta para metodologias de leitura, de avaliação e de conhecimento […] [que] definem o movimento que transborda do fora para dentro, que ultrapassa fronteiras e que coloca também a necessidade metodológica, não hierarquizada e transitória de demarcar o ponto de abertura para a multiplicidade, a diversidade, a outridade, mas também de reconhecer as marcas de reconhecimento da especificidade, da particularidade e da singularidade”.

O papel da crítica na profissionalização do escritor

Neila Brasil

imagem neila

Créditos da imagem: http://alertabolivia.blogspot.com/search/label/COMUNICACI%C3%93

 

Sabemos que a arte é afetada pelos meios de produção e que o funcionamento do campo literário está ligado a causalidades históricas, econômicas e sociais. Com as mudanças no campo social e os avanços da tecnologia, a forma como artista, público e crítica se inter-relacionam também sofreu profundas transformações. O escritor contemporâneo está necessariamente inserido no mercado e o modo de produzir e difundir suas obras confere a ele um lugar no campo literário.

A crítica literária pode ser considerada uma importante instância de legitimação na profissionalização do escritor. O debate que divide a crítica em dois campos, um “especializado” e outro “não-especializado”, pode ser um indicativo de como é possível ler as relações entre crítica e profissionalização, partindo do pressuposto de que a recepção crítica, seja ela especializada ou não, contribui para a formação da imagem do autor e para a valoração de suas obras.

Se a crítica especializada é atribuída aos professores e pesquisadores universitários, a crítica não-especializada está relacionada ao jornalismo cultural e também com os leitores que estão na internet e que ao comentarem obras e autores em blogs, vloggs e redes sociais, criam um espaço de circulação para suas produções.

Embora a crítica especializada seja tida como relevante, não é incomum encontrarmos posições que comentam a presença de um jargão tão específico à teoria utilizado nas resenhas e comentários sobre a produção literária que acaba contribuindo para certo isolamento da própria literatura. Ainda assim, é possível afirmar que a produção analítica produzida nas universidades é uma instância de legitimação, para utilizarmos o conceito de Pierre Bourdieu, ainda fundamental, na profissionalização do autor, na medida em que promove e avalia a produção artística.

No entanto, se a crítica não-especializada parece mais próxima do leitor que está fora da universidade, mas se interessa pela literatura, muitas vezes o que encontramos no jornalismo cultural (que cada vez mais tem reduzido o espaço dedicado à literatura, ao comentário crítico sobre arte de um modo geral) ou na internet, destina-se apenas à divulgação e não à análise das obras, constituindo apenas um release do lançamento do momento.

Com o reconhecimento da internet como uma instância de legitimação, quero sugerir que a separação entre a crítica especializada e a não-especializada pode não ser assim tão evidente. Já que uma instituição cultural não acadêmica pode promover eventos, debates e mostras com a participação de especialistas e estimular o diálogo com jornalistas e críticos não especializados.

Assim, seria possível considerar que as condições de recepção e difusão da literatura na contemporaneidade transgridem, até certo ponto, os limites que separam a crítica especializada daquela produzida pelos demais agentes da indústria cultural.

Um autor que atrai a atenção da crítica, seja por se tornar objeto de estudo de uma tese universitária, seja por ter sua obra resenhada em jornais de grande circulação, encontra na recepção à sua obra um caminho para a conquista da legitimação de seu nome. Quando um autor conquista capital simbólico, consegue usá-lo a seu favor, conquistando também uma posição no campo literário.

Dessa forma, poderíamos arriscar dizer que a recepção crítica de um autor é um elemento fundamental para a aquisição do capital simbólico, outra noção de Bourdieu, e que a crítica tanto especializada quanto não especializada por auxiliar a construção da imagem do autor perante o público e demais agentes do campo literário, constitui-se um importante elemento de profissionalização do escritor.

O autor, o crítico, a ficção e o ensaio

Marília Costa

Yoko Ono2c “Sky TV for Hokkaido” (photo de Yoshihiro Hagiwara)

Créditos da Imagem: Yoko Ono – “Sky Tv for Hokkaido” – Yoshihiro Hagiwara

Durante muito tempo, o autor de literatura e o crítico literário assumiram papéis diferentes no campo literário brasileiro. Em linhas gerais, ao autor cabia o papel de tecer a obra e ao crítico a tarefa de comentar, analisar e teorizar sobre as narrativas. Alguns desses indivíduos realizavam as duas atividades em paralelo, porém em espaços distintos. O autor publicava seus textos em livros denominados como romances, contos ou poesias. O crítico transitava pelos jornais, revistas, blogs, livros teóricos, artigos e demais textos acadêmicos. Desse modo, não era muito comum que a ficção e o discurso teórico dividissem o mesmo espaço em uma obra literária.

Na contemporaneidade há indícios de um rompimento das fronteiras que separavam ficção e crítica literária. Eneida Maria de Souza, em seu texto “Notas sobre a crítica biográfica”, salienta que os limites entre as principais áreas de estudo da literatura não estão bem definidos pelas teorias contemporâneas. Desse modo, a literatura deixa de ser objeto de análise e passa a ser também espaço para analisar e teorizar sobre si mesma, “o próprio sujeito teórico se inscreve como ator no discurso e personagem de uma narrativa em construção”, afirma Souza. A crítica biográfica encontra-se delimitada entre a teoria e a ficção, o documental e o literário.

No século XXI deparamo-nos com escritores em cujas obras podemos identificar o hibridismo entre a crítica literária e a ficção, como é o caso de Ricardo Lísias, Cristovão Tezza, Silviano Santiago, entre outros. É possível ainda arriscar que o procedimento crítico no registro literário aparece a partir do uso da dicção ensaística e do recurso autobiográfico e autoficcional.

No romance Machado de Silviano Santiago, publicado em 2016, o narrador se apropria da dicção ensaística para tornar-se outro: “Transfiguro-me. Sou o outro sendo eu. Sou o tomo V da correspondência de Machado de Assis: 1905-1908”. Ao mesmo tempo, podemos notar uma aproximação entre narrador e personagem, principalmente em comentários críticos sobre o campo literário do final do século XIX e início do século XX, que lembram um ensaio, quando por exemplo tematiza-se a forma como Machado de Assis se concebe, se desenvolve, se aprimora e se estabelece como um dos maiores escritores brasileiros.

Em Machado de Santiago podemos perceber uma característica comentada pelo crítico argentino Reinaldo Laddaga em seu livro Estética de Laboratório e também presente em outras obras da literatura contemporânea. Ao resgatar o caminho que o conduziu a escrever o livro, Santiago forja a si mesmo e ao processo de escrita (aí emerge o que identificamos como uma dicção ensaística) aproximando-se do que Laddaga chama de uma “visita ao estúdio” de produção do autor e que torna possível aos leitores “formar uma ideia da pessoa e do pensamento do autor”. Embora saibamos que se trata de mais um artifício, pois, como o próprio Laddaga aponta “um artista se expõe enquanto realiza uma operação em si mesmo. O que mostra não é tanto ‘a vida (ou sua vida) como ela é’, mas uma fase da vida (ou da sua vida) que se desenvolve em condições controladas.” Desse modo, não deixa de ser interessante pensar que a dicção ensaística presente no romance Machado pode ser pensada como um artifício para reinventar a literatura.

Crítica e literatura: trânsitos

Por Vanessa Ive Pimenta

Adventure of the Dancing Man 2017- Jeanette Palsa

Créditos da imagem: Jeanette Palsa – Adventure of the Dancing Man (2017)

Escritores que injetam na veia literária uma dose de teoria e fazem da literatura o próprio exercício de pensá-la. Por trás da palavra, o discurso crítico que nos faz constatar: existe algo que quer ser dito para além da narrativa. Ou ainda escritores que transformam o espaço da crítica em laboratório de criação. Trabalhos finais de mestrado e doutorado viram obras de ficção. Os trânsitos que sempre existiram entre vida acadêmica e literária agora mostram-se mais constantes e, por vezes, ousados ao escapar das formalidades impostas pela academia.

Um dos primeiros registros de narrativa literária como produto universitário, no Brasil, é o livro Variante Gotemburgo, de Esdras do Nascimento. O autor entregou a obra concluída no lugar da tese de doutorado em Letras, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 1977. Mais recentemente, outros casos surgiram. Tatiana Salem Levy escreveu A chave de casa no primeiro capítulo da tese de doutorado, defendida na UFRJ, em 2007, apresentando no segundo capítulo a discussão sobre o próprio processo de escrita. No mesmo ano, a autora lançou o livro que venceu o prêmio São Paulo de Literatura, na categoria autor estreante. Na mesma linha, Adriana Lisboa fez da dissertação de mestrado e da tese de doutorado, ambas defendidas na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), a escrita dos respectivos livros Um beijo de Colombina (2003) e Rakushisha (2007).

Tratando-se de diálogos entre academia e literatura, as figuras do estudioso e do escritor fundem-se nas obras de Júlian Fuks. Todos os seus livros, com exceção do primeiro, permeiam a experiência acadêmica do autor. Histórias de literatura e cegueira (2007) é uma ficção sobre ficção que combina fragmentos da vida dos escritores Jorge Luis Borges, João Cabral de Melo Neto e James Joyce que têm, na trama, algo em comum: a cegueira. O livro é resultado do trabalho de conclusão de curso de graduação em Jornalismo, na Universidade de São Paulo (USP). Em paralelo à produção literária de seus dois últimos livros Procura do romance (2011) e A Resistência (2015), o autor esteve envolvido respectivamente com duas empreitadas acadêmicas, o mestrado e o doutorado.

Júlian Fuks conjuga seus posicionamentos teóricos com o caráter inventivo da escrita. Em Procura do romance, como o próprio nome indica, o protagonista Sebastián é um escritor brasileiro que viaja para Argentina em busca de inspiração para escrever um romance. Os cenários, as pessoas, os objetos, as situações vividas no país instigam o personagem a transformá-los em material de escrita. No entanto, não o faz. Dúvidas, angústias e alguns fantasmas vêm à tona e bloqueiam o ato de escrever. Assim, Procura do romance é o romance que não consegue ser escrito pelo personagem. A impossibilidade de ser narrado o atravessa, remetendo às questões estudadas pelo autor na dissertação de mestrado Juan José Saer e o paradoxo necessário (2009).

Na tese de doutorado, História abstrata de um romance (2016), Fuks problematiza a teoria do romance, questiona as fraturas sofridas pelo gênero, as diversas formas adotadas, o hibridismo, uma possível crise e sobrevivência da forma. Lendo A resistência encontramos na ficção um diálogo subliminar com o investimento teórico realizado e um exemplo de como o romance sobrevive às transformações do agora.

O diálogo entre as produções literárias e os trabalhos acadêmicos, a crítica dentro da ficção,  inspiram autores a discutir metaliterariamente. Por isso é possível ler em algumas obras uma espécie de projeto crítico-teórico em meio às tramas. Consequentemente, surgem obras difíceis de serem catalogadas, pois imbricam ficção e real, imagens e poesia, crítica e literatura e, por fim, esperam do leitor um outro gesto de leitura.

Se a imbricação entre crítica e ficção, não é exatamente uma novidade, basta lembrar os nomes de Silviano Santiago e Evando Nascimento, Fuks reivindica para si esse entrelugar:  “Sinto que me insiro nessa nova ordem de escritores que se observam a si mesmos…dos escritores que pensam a própria literatura”, como afirmou ao site deusmelivro em 2017.

Crítica e literatura

Por Davi Lara

Boa parte da narrativa produzida hoje desafia nosso entendimento do que consideramos literatura. Em contrapartida, existe um movimento forte, por parte da crítica, no sentido de renovar o instrumental teórico/analítico com vistas a explicitar os impasses de leitura provocados por esses objetos. Um exemplo mais concreto pode ser útil para explicar o que estou querendo dizer. Retiro-o do debate em torno da autoficção, que é meu objeto de pesquisa. Num estudo de referência sobre o assunto, a crítica argentina Diana Irene Klinger circunscreve a literatura autoficcional contemporânea dentro da longa tradição das escritas de si. Assim, ela chega à sua principal contribuição para a discussão sobre o tema, que é a ideia da autoficção como performance.

Dentre os muitos desdobramentos desta definição, destaco articulação entre “a escrita com uma noção contemporânea de subjetividade, isto é, um sujeito não essencial, incompleto e suscetível de auto-criação”. Isso significa que, na leitura da obra, os dados intrínsecos perdem a primazia que tinham na perspectiva da crítica representativa (veja-se “Crítica e sociologia”, de Antonio Candido, por exemplo). Em pé de igualdade com os dados intrínsecos, os críticos têm que lidar com o elemento ingovernável da vida, que invade o texto ao mesmo tempo em que cria uma série de rotas de fuga para fora dele. Criando, assim, um novo locus da literatura, agora expandida. Nem dentro e fora do texto, mas dentro-fora.

O problema começa quando nos confrontamos com os problemas concretos propostos pelas obras e pelas possibilidades de leituras. Explico-me: julgo acertado afirmar que, no que diz respeito à escrita de si, a autoficção ofereça uma forma de expressão performática da subjetividade individual. Porém, na autoficção, a escrita de si é fundida à literatura, de modo que, ao lado do caráter performativo, há sempre uma força normativa, própria do literário, conforme ele tem sido pensado pela teoria literária. Literatura é forma, é texto, e o crítico literário inevitavelmente pensa de acordo com essas categorias (também). Assim, quando menos esperamos, estamos avaliando o elemento vital, que conforma a autoficção como uma performance, como um dado textual, algo que, mesmo sendo extrínseco ao texto, se soma ao material intrínseco da obra em prol da criação de um objeto coerente, passível de análise.

Será que, ao transformar os dados da vida em objeto textual, simulacro passível de analise, não estamos obedecendo à cartilha crítica da representação? Se sim, como fugir desse gesto vicioso da atividade crítica? O que significa fazer crítica sem reduzir o elemento vivo a simulacro? Significa agir diretamente no real, por meio de posicionamentos éticos e ativismos políticos? Mas a crítica representativa já não fazia isso? E que é isso que chamamos de “real”, afinal de contas?

É claro que eu não tenho uma resposta a essas perguntas. Mas me parece que o próprio trabalho de formulá-las, corrigi-las e aperfeiçoá-las é inevitável para a crítica interessada em compreender seu lugar dentro da configuração das artes do presente.

Forma e experiência

Por Davi Lara

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Crédito da imagem: Karl Tabery, Shrouded Figure 2, 1974-5

O prólogo de Jorge Luis Borges para A invenção de Morel (1940), o livro de estreia de Adolfo Bioy Casares, é geralmente lembrado pela frase final na qual ele afirma que, após ter discutido os pormenores da trama com o autor e de reler a novela, não lhe parece um exagero qualificá-la de perfeita. Por mais que pareça uma simples frase de efeito, esta declaração é fundamentada por um juízo crítico sólido esboçado nas três ou quatro páginas do prólogo que eu gostaria de trazer para a discussão. Logo de início, Borges estabelece uma distinção radical entre o romance de peripécias e o romance psicológico, posicionando-se francamente a favor do primeiro, em detrimento do segundo.

O romance de peripécias – diz ele – é superior por que assume plenamente seu status de ficção, diferentemente do romance realista moderno que, ao escolher temas de ordem psicológicas, trazem para dentro da ficção a desordem da vida: “Há páginas, há capítulos de Marcel Proust que são inaceitáveis como invenções: sem saber, resignamo-nos a eles como a tudo que de insípido e de ocioso há no dia a dia”. O romance de argumento – outro nome com que Borges gosta de chamar o romance de aventuras – não tem a aspiração de representar a realidade, é um objeto assumidamente artificial e, por isso, não pode conter nenhuma parte injustificada.

É baseado nessa concepção de romance de peripécias, que Borges pode afirmar que a novela de estreia do seu conterrâneo é perfeita: trata-se de um juízo formal, baseado na análise das partes da novela em relação ao argumento central, que se unem de maneira coesa, sem distrações de ordem psicológica. Mas o que me interessa, agora, nesse argumento, é que ele só é possível devido a uma distinção cabal entre dois elementos constitutivos da ficção – o inventado e o real –, na qual está pressuposta uma hierarquização rígida, onde a invenção é vista quase que como sinônimo de literatura, enquanto o real é tido como um elemento maligno, como um câncer que vai minando a literatura de dentro.

Este texto é de novembro de 1940, mas a noção crítica do real como algo perigoso para a literatura não é tão distante assim de nós. Num post aqui do blog, ao trabalhar a relação entre literatura e autoficção, Luciene Azevedo cita o exemplo de Todorov, que, em A literatura em perigo, “toma a autoficção como bode expiatório do perigo que ameaça o literário”, acusando-a “de regozijo com a exploração detalhada das menos ‘emoções, as mais insignificantes experiências sexuais, as reminiscências mais fúteis’”.

Não deixa de ser estranho que Borges, um nome frequentemente citado como precursor dos experimentos mais extremados de entrelaçamento da literatura com a vida, possa ser alinhado com os críticos mais reativos a esse mesmo tipo de literatura que ele inspirou. Creio que isso se deve por que, apesar de todo o experimentalismo e inovação, Borges possuía um posicionamento estético conservador, herdeiro do paradigma clássico da verossimilhança aristotélica, onde há uma cisão completa entre a poesia e a história. É também devido a esta filiação aristotélica que Borges pode ser comparado aos estruturalistas mais duros (como Gérard Genette, também um crítico ferrenho da autoficção), representantes de uma corrente de pensamento com a qual, de resto, ele não possui muita afinidade.

Se eu insisto na comparação de Borges com os opositores da autoficção, é por que eu creio que essa comparação, na medida em que revela o que há de comum entre eles, pode ser útil para se compreender melhor a autoficção e as questões estéticas que ela suscita. Uma hipótese que eu tenho amadurecido é pensar as narrativas em que há a intromissão da voz autoral a partir da tensão entre as formas tradicionais do romance e a emergência do registro das experiências, entendendo-se a experiência como um elemento ingovernável, que força a forma do romance desde dentro, fazendo-o se expandir para além de seus limites tradicionais.

É interessante notar que, quando se coloca a autoficção nesses termos, se põe em jogo uma série de elementos que extrapolam a crítica puramente formal. Basta lembrar a fortuna crítica do termo experiência e ver o quanto está em jogo. Penso, por exemplo, em Walter Benjamim e a sua leitura desiludida da civilização europeia entreguerras ou, mais perto de nosso tempo, as críticas feitas ao comportamento verificado no mundo digital, onde ferramentas como os blogs e as redes sociais são usadas, de acordo com certo ponto de vista não muito raro, para suprir a falta de experiências reais. Por outro lado, é possível identificar uma tendência contemporânea de retorno ao romance realista, nem que seja para renová-lo ou mesmo parodiar suas fórmulas narrativas.

Esse duplo movimento que, de um lado, faz uma visitação às formas do romance e, de outro, privilegia o registro da experiência, pode ser um bom ponto de partida para uma crítica do romance em primeira pessoa contemporâneo.