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Sobre a fotografia transversa

Samara Lima

Créditos da imagem: Duane Michals, The spirit leaves the body, 1968

Em seu livro Fotografia & Poesia (afinidades eletivas) (2017), o crítico e poeta Adolfo Montejo Navas, dentre tantas outras coisas, comenta que cada vez mais a fotografia contemporânea vem assumindo uma nova relação com o real, cujo foco encontra-se em articular um maior espaço para o imaginário em detrimento do estatuto de verdade. Pensando nessa nova maneira de entender a imagem visual, Navas traz um conceito bastante interessante: fotografia transversa.

O conceito está pautado na ideia de que as imagens do presente buscam romper com os limites impostos que predominam em boa parte da teoria da fotografia. Já comentei que a imagem fotográfica, desde o seu surgimento, foi compreeendida como captura da realidade, servindo ao uso documental, à informação e à memória e valorizada por seu status de autenticidade.

Nesse contexto contemporâneo de dissolução das fronteiras entre as diferentes linguagens, em que cada vez mais as artes tensionam a especificidade de seu meio, seria interessante pensar em um deslocamento da fotografia para fora de um certo modo de compreensão de seu funcionamento. Segundo Navas, a fotografia transversa é pensada a partir de um trânsito entre o que está dentro e fora da imagem fotográfica e procura formas de hibridização artística em favor de uma visualidade mais viva, mais contaminada. A aposta do crítico sugere que as imagens do presente distanciam-se da esfera representacional, a fim de apostar em outras intenções estéticas e contextualizações que proporcionem outras funções simbólicas.

No decorrer do livro, o autor se debruça sobre fotografias que nomeia como plásticas, aquelas construídas não só a partir da exploração de truques técnicos que visam tornar a foto difusa, mas principalmente por meio de intervenções de outras práticas artísticas, como a pintura. Ainda que as imagens fotográficas reproduzidas no meu corpus ficcional não sofram tais intervenções, acredito que a reflexão proposta pelo autor possibilita diversas maneiras de lidar com a maioria das imagens presentes nas obras ficcionais contemporâneas.

Como vimos nos posts anteriores, as fotos de infância de Isabela Figueiredo e da cidade de Lourenço Marques buscam jogar com a ideia da imagem como prova e superar a mera confirmação do pacto autobiográfico. O fato é que elas são utilizadas como artifício de uma prática ficcional. Gostaríamos de apostar, então, que a transversalidade da foto está na relação e tensão que ela mantém com o texto literário ou com o próprio lugar em que se insere em meio à narrativa. Ao embaralhar as noções de ficção e realidade e não compactuar com o dizível, a fotografia questiona seu caráter de registro indiscutível e permite significações múltiplas, abrigando experiências que, muitas vezes, estão além da própria imagem.

“sou ‘eu’ que não coincido jamais com minha imagem”

Samara Lima

Créditos da imagem: “Caderno de memórias coloniais” de Isabela Figueiredo

No meu post anterior, comentei que Cadernos de memórias coloniais é escrito em primeira pessoa e tem cunho memorialista. Na obra, somos apresentados à trajetória de infância da narradora-personagem em Moçambique. As recordações mesclam-se com comentários das contingências históricas e sociais. Da mesma forma, o livro se debruça sobre a construção da identidade de Figueiredo, a partir do contato (problemático) com a família, com seu grupo social e a diferença, com os seus questionamentos internos e com o próprio território africano. Ainda que tenha crescido em um ambiente que considerava o negro como um sujeito “abaixo de tudo”, é a partir da relação com o Outro que a narradora busca formar a sua identidade. É certo que é uma identidade maleável, ora construída em oposição ao pai e aos seus pares, ora pela convivência com práticas e discursos racistas. Na narrativa, os discursos são diferenciados a partir da distinção entre “preto” (quando o posicionamento é semelhante ao do pai etc) e “negro” quando a narradora assume seu ponto de vista crítico.

O que a questão da identidade tem a ver com a série de fotos que nos apresentam à Figueiredo criança? Na imagem acima, podemos visualizar a narradora, criança, bem vestida, em um momento de lazer, em algum parque de diversão, olhando fixamente para a câmera. Do mesmo modo, a foto nos impele a observar o menino ao fundo, com uma perna apoiada na outra, atrás das grades, também mirando a objetiva. Nos deparamos com essa foto, que ocupa o centro de uma página inteira, depois de lermos este trecho:

“Quem, numa manhã qualquer, olhou sem filtro, sem defesa ou ataque, os olhos dos negros, enquanto furavam as paredes cruas dos prédios dos brancos, não esquece esse silêncio, esse frio fervente de ódio e miséria suja, dependência e submissão, sobrevivência e conspurcação.

Não havia olhos inocentes.”

Curiosamente, é o olhar da menina que contrasta com o olhar do garoto. Diante da imagem, nos perguntarmos se são realmente “os olhos dos negros” que aparentam olhar sem filtro e furar as paredes. Afinal de contas, é o olhar de Figueiredo com um misto de desprezo e ódio que parece escapar à página, inquietando o leitor e contradizendo o relato. É interessante perceber como o olhar infantil (que contradiz o trecho que lemos) da narradora na foto e o discurso (adulto) do relato embaralham-se. Em entrevista à Rita Veleda Oliveira, a autora afirma que “o caderno é uma narrativa dúplice. Há uma criança que se exprime, mas também há uma mulher adulta: são duas pessoas.”

Nesse jogo de olhares, é como se o olhar maduro da narradora e, em última instância, o olhar da autora, buscasse em retrospectiva compreender as imagens da sua infância: quem é esse “eu” anterior? É Figueiredo, “filha do branco”, que não se separa das condutas racistas do colonizador? Ou a “negrinha loira” que questiona as regras e a partir da negação da figura do pai busca uma socialização com o negro? Ou, ainda, as duas coisas, já que “não havia olhos inocentes”? Dessa forma, poderíamos pensar que a imagem não parece atuar como uma mera confirmação do pacto autobiográfico (entre narrador, personagem e autor), mas sim como um duplo que evidencia “um corpo infantil que é e não é do autor” abrindo-se, assim, à distância entre o sujeito da narração e sujeito da experiência, permitindo, então, um ensaio crítico e distanciado sobre questões de sua própria vida.

“A fotografia é um instrumento perfeito para duvidar”

Samara Lima

Créditos da imagem: “Caderno de memórias coloniais” de Isabela Figueiredo

Em outro post, comentei sobre como a fotografia, desde o seu surgimento, esteve atrelada ao uso documental devido à pretensa ideia de que tal reprodução constituía uma representação objetiva e fidedigna da realidade. Por outro lado, também assinalei que cada vez mais a prática fotográfica e a teoria da fotografia, através de diversos usos e experiências conceituais, vêm almejando outras relações e significações para a imagem.

Nesse sentido, talvez seja interessante resgatar a discussão de Adolfo Montejo Navas, em seu livro Fotografia e poesia (afinidades eletivas). Aí, o autor reflete sobre como as fotografias contemporâneas saltam “a cerca do seu território” e se abrem para “outros meios, contextos, e outro discurso além do meramente fotográfico”. É pensando nessa questão que ele propõe a noção de fotografia transversa. O conceito está baseado na ideia de que as imagens atuais transitam por vias que não são as mesmas que predominam em boa parte da teoria sobre a fotografia. Durante muito tempo, uma foto foi tomada como mero registro, mas, segundo Navas é possível que, explorada junto dos textos, as fotos possam “abrigar experiências perceptivas que podem estar além da planaridade”.

A presença da fotografia nas narrativas não é novidade, mas é certo que ela não aparecia com tanta frequência, devido ao alto custo de impressão e também pela predominância da concepção de que a literatura era um objeto autônomo, separado das outras esferas artísticas. É importante ressaltar que nesses casos a imagem ainda estava presa ao seu caráter documental, tendo os seus significados guiados pelo texto e servindo como mero acessório. A grande diferença da presença de imagens nas produções contemporâneas é que a foto é vista como uma possibilidade de expansão do relato. Considerando essas provocações, gostaria de comentar brevemente umas das fotografias presentes no livro Cadernos de memórias coloniais de Isabela Figueiredo e seu modo de relação com o que é narrado.

A narrativa é escrita em primeira pessoa e abarca as memórias de infância da narradora-personagem-autora Isabela Figueiredo, durante o período de colonização e descolonização portuguesa em Moçambique. Aqui, o corpo da personagem e o seu relato se entrelaçam com a própria experiência do país. Por isso, entre as nove fotografias presentes na edição brasileira do romance, é interessante perceber que a foto que abre o texto é justamente o plano da cidade de Lourenço Marques, cidade natal de Figueiredo. À primeira vista, a imagem nos leva a pensar que ela atua segundo uma mera necessidade documental, de uma atestação da existência de uma realidade. Mas, no decorrer da narrativa, nos deparamos com uma tensão constante entre o que é tido como documento e o relato que reconstrói a memória.

Se prestarmos bastante atenção na imagem da cidade, que introduz este post, é possível perceber uma propaganda na lateral de um dos prédios: “Beba Fanta”. Essa propaganda que facilmente passaria despercebida me chamou atenção e já digo o porquê. Em outro momento do livro, a narradora comenta sobre um passeio na companhia do pai “a caminho de Lourenço Marques”. Nesse passeio, repentinamente, a narradora descobre que aprendera a ler e intuitivamente passa a decodificar as propagandas que atravessam o seu caminho: “sem explicação, li alto, e de uma só vez, a publicidade pintada nas laterais dos prédios, ‘Singer, a sua máquina de costura; beba Coca-Cola; pilhas Tudor; com Luz cabe sempre mais um; cerveja 2M, tudo o que a gente quer’.”

A partir do momento em que lemos o relato “Beba Coca”, mas nos deparamos com a propaganda “Beba Fanta” na fotografia, é instigante notar que há um jogo com a ideia da imagem como prova, pois o leitor não encontra evidências entre a descrição e a imagem. Sem pretensão de instaurar-se como documento, a fotografia nos instiga à dúvida. Da mesma forma, os aspectos autobiográficos também são postos sob suspeita, mostrando que é um
livro de memórias “que ficciona para dizer a verdade” e que, principalmente, reconhece que a memória é falha.

O processo de costura da materialidade do relato, que sugere uma relação intrínseca entre texto e imagem, exige um considerável esforço especulativo por parte do leitor. Mas, uma vez que deixamos pra trás a ideia da imagem como mera confirmação para encará-la como “um instrumento perfeito para duvidar”, como afirmou Navas, percebemos que a foto realça e reforça o jogo entre a ficção e realidade.