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O escritor e o mercado: algumas reflexões

Davi Lara

Créditos da imagem: André, Derain. Portrait of a Man with a Newspaper (Chevalier X).

Não faz muito tempo, conversando com uma jovem escritora amiga minha, lhe falei de Ben Lerner, um dos meus autores contemporâneos favoritos, mais ou menos com essas palavras: “Ben Lerner é um escritor americano que iniciou sua carreira publicando livros de poesia, que se declara poeta, que se vê como um poeta, mas escreve romances para poder ganhar dinheiro. Já escreveu dois até agora e, para seu infortúnio, são romances admiráveis, o que o tornou muito mais conhecido como romancista do que como poeta.” Talvez seja importante dizer que esta minha amiga nutre um ódio perfeitamente irracional pela poesia. E eu, que acho esse ódio divertidíssimo, sempre que posso, toco no assunto para ver sua reação. Assim, mal terminei de falar, a jovem prosadora fez uma careta de desaprovação e perguntou como isso poderia ser interessante. Acontece que, nesse caso, o desapontamento dela com minha apresentação tendenciosa de Ben Lerner não se devia ao fato de ele valorizar a poesia acima da prosa, mas ao fato de ele escrever por dinheiro, e ainda por cima admitir isso. 

Esse episódio me fez pensar no imaginário que se construiu em torno do escritor como uma figura quase sacerdotal que precisa abdicar das distrações mundanas, como a fama e o dinheiro, para poder consagrar sua vida à literatura. É o que se vê, por exemplo, em Ilusões Perdidas, esse grande clássico do século XIX de Honoré de Balzac, no qual conhecemos a história de Lucien Chardon, um jovem poeta provinciano que se muda para a capital em busca do sonho de ganhar a vida como escritor. Na capital, Lucien, que era extremamente talentoso, se vê entre dois grupos distintos: de lado, os jornalistas, que lhe oferecem uma forma rápida de ascender socialmente, mas que o obrigam a usar sua pena para um tipo de escrita mercenária que estava aquém do seu potencial literário; e, de outro, o Cenáculo, um grupo de escritores talentosos e austeros liderado por Daniel d’Arthez, que acreditavam no potencial de Lucien, mas tinham a desvantagem de serem extremamente pobres.

Já faz muito tempo que li esse livro, logo, muita coisa de suas quase 800 páginas se perdeu. Mas ainda tenho vívida na memória a desolação que senti ao ler a descrição das condições de vida precárias de Daniel d’Arthez, que mal tinha dinheiro para comprar lenha para se aquecer no inverno. Lembro, também, que fiquei bastante impressionado com a força moral deste escritor que não se deixa corromper pela via fácil da literatura de aluguel do jornalismo e condenei Lucien quando se afastou do Cenáculo para se tornar um jornalista. Hoje, mais de dez anos depois, não me sinto mais tão confortável para condenar o jovem Lucien por escolher uma profissão que lhe garantisse o básico para sua sobrevivência. Seja como for, o próprio romance induz o leitor a condenar a escolha de Lucien ao tomar partido de uma visão de mundo romântica de acordo com a qual o mercado é um grande vilão que impede o florescimento da boa literatura.

É interessante notar que o caso do próprio Balzac testemunha contra essa tese, posto que ele foi um dos primeiros escritores profissionais, isto é, que recebia por livro escrito, e ainda assim conseguiu escrever obras-primas como esse Ilusões Perdidas. De qualquer modo, o que me interessa pontuar é que, hoje, apesar de essa visão sacerdotal do escritor ainda ter bastante força, ela convive com a constatação de que o escritor, como um profissional qualquer, precisa de dinheiro para sobreviver. Prova disso é a maior abertura com que os escritores falam desse tema em seus romances. Um bom exemplo é o próprio Ben Lerner, que no seu último romance, o ótimo 10:04, fala abertamente que, depois do sucesso de seu primeiro romance, só voltou a este gênero por causa do cheque de seis dígitos que lhe foi oferecido por uma importante casa editorial americana.

Poderíamos citar, também, o escritor catalão Enrique Vila-Matas, que, sempre que pode, se queixa da vida do escritor contemporâneo. É o que acontece em Doutor Pasavento, por exemplo, romance no qual o protagonista é um escritor catalão de êxito que, cansado da rotina de palestras, entrevistas e autógrafos, decide desaparecer, arrumar as malas e fugir para um lugar onde ninguém o conhece para poder escrever em paz. “Los escritores de antes”, um texto já comentado aqui no blog em que o escritor espanhol homenageia Roberto Bolaño, segue a mesma linha. Nele, o autor espanhol descreve Bolaño como a encarnação daquele que, para Vila-Matas, é o ideal de escritor, isto é, um escritor como aqueles de antigamente, que escreviam “com a única finalidade de comunicar-se com os mortos e não haviam ouvido falar do mercado”.

O que acho mais interessante deste texto é que, diferentemente destes “escritores de antes” de que Vila-Matas fala, Bolaño viveu numa época onde não só se ouve falar do mercado, como o mercado parece ter se imposto a todos os setores da vida humana, inclusive a literatura. Curiosamente, apesar do mito que se criou em torno de seu nome, a trajetória de Bolaño não passa incólume aos tentáculos onipresentes do mercado, como mostra o episódio da publicação póstuma de 2666.

Como se sabe, este romance é composto de cinco partes, que Bolaño queria que fossem publicados separadamente, visando assegurar a situação econômica de seus filhos. Acontece que, depois de sua morte, instruídos por Ignacio Echevarría, amigo indicado pelo próprio Bolaño para aconselhar seus herdeiros em assuntos literários, decidiu-se publicar os cinco livros em um só volume. É verdade que esse caso não está totalmente alheio ao mito-Bolaño, posto que reforça a ideia de um escritor abnegado, que dedicou os últimos dias de sua vida para compor uma obra que garantisse o conforto financeiro de seus filhos. No entanto, junto a tudo isto, sobressai a figura de um escritor que não só é bastante consciente do funcionamento do mercado, como está disposto a sacrificar seu projeto literário em prol de uma estratégia mercadológica. O que vai de encontro à imagem de Bolaño (que, diga-se de passagem, assim como Lerner, era um poeta que migrou para a prosa por questões financeiras) como o ideal de autor romântico.

Seja como for, todos esses exemplos são bastante ambíguos no que diz respeito à relação dos escritores com o mercado. No entanto, o fato de existir, hoje, um espaço crescente dentro dos romances dedicado aos meandros práticos da profissão da escrita pode indicar uma mudança da figura do escritor no nosso imaginário.

“Tudo será como agora, só que um pouco diferente”

Luciene Azevedo e Allana Santana

Créditos da imagem:
The Clock by Christian Marclay 2010, 24hrs, Digital, Color, Sound.

Em post anteriores, já falamos da forma do romance-ensaio e tematizamos o caminho que seguimos em nossa investigação que visa identificar em narrativas contemporâneas algumas características dessa forma. Já em seus Ensaios, Montaigne afirmava uma forte ligação entre a construção de seu eu e sua obra e por isso acreditamos que uma porta de entrada para essa discussão pode estar na observação sobre a maneira como um sujeito vai se delineando à medida que a história se desenrola.

Mas como pensar essa relação em uma obra contemporânea? Vamos pegar como exemplo o romance 10:04, escrito por Ben Lerner.

Entrar na leitura dessa obra é como ser arremessado em um turbilhão de situações que à primeira vista negam relação entre si. Nesse sentido, a ideia de trama narrativa parece vacilar, tudo parece muito desamarrado, pois acompanhamos ao mesmo tempo situações que envolvem a negociação de publicação do mais novo romance do narrador (ainda por fazer), os preparativos que envolvem a sobrevivência da população nova-iorquina preocupada com a chegada de duas tempestades, a elaboração de um livro infantil sobre dinossauros e o drama pessoal vivido pelo narrador a respeito da dúvida sobre a doação de esperma para sua melhor amiga, que decide ser mãe a qualquer custo. Os diferentes temas parecem não apresentar relação alguma entre eles e ao mesmo tempo essa desconexão é harmoniosa, sendo amarrada à narração em primeira pessoa e a certa ambiguidade na identificação entre autor e narrador-personagem.

Nas primeiras cenas do livro, acompanhamos o narrador e sua agente literária em um almoço de comemoração pela repercussão da publicação de um conto publicado meses antes na revista New Yorker e que vale ao autor um adiantamento polpudo para escrever um romance que expanda o conto. Já aí, então, começamos a desconfiar da proximidade entre Ben Lerner e o narrador de sua história, a quem a publicação do conto na revista dá certa notoriedade e que também possui um romance aclamado pela crítica. Essa é a trajetória literária do próprio Lerner que depois de publicar livros de poesia, ganha reconhecimento mais amplo da crítica com o romance Estação Atocha e a publicação do conto The Golden Vanity na Revista New Yorker.

Aqui, já imaginamos a careta do leitor e sua impaciência: “mais uma obra em que o autor conta sua vidinha literária…” Mas talvez valha a pena assinalar que embora esse desvendamento do eu, quase sempre de um eu-autor, esteja presente em muitas obras contemporâneas, podemos apostar que os usos da primeira pessoa têm rentabilidade muito distintas. Em Lerner, arrisco dizer que há uma dicção ensaística capaz de produzir uma aliança entre a exposição da voz subjetiva e sua relação com o espaço público, nos termos em que Timothy Corrigan analisa a presença do ensaio na produção de filmes.

Para dar uma ideia melhor da maneira como estamos pensando a presença do ensaio imbricada à ficção em Lerner, vale a pena comentar o episódio em que o personagem principal e sua melhor amiga vão assistir à The Clock de Christian Marclay. A obra é uma montagem que recorta e cola tomadas de relógios ou trechos que mencionam a passagem das horas retiradas de cenas de filmes ou tevê editadas de modo a indicar exatamente a duração do filme no momento que é exibido. Depois de algumas horas dentro do cinema, o narrador checa o relógio, para ver que horas são, depois se pergunta porque teria feito esse gesto, já que o filme, a representação das cenas indica exatamente que horas são, a passagem do tempo durante a própria exibição das cenas. Essa pergunta marcada por certa estupefação do próprio narrador dá origem a uma reflexão sobre a relação entre a arte e a realidade:

“Eu fiquei sabendo que The Clock tinha sido descrito como a derradeira transformação do tempo ficcional em tempo real, uma obra concebida para obliterar a distância entre arte e vida, fantasia e realidade. Mas parte do motivo de eu ter consultado as horas no meu celular foi porque essa distância não havia sido quebrada pra mim; apesar de a duração de um minuto real e a duração do minuto de The Clock serem matematicamente indistinguíveis, eles eram minutos de mundos diferentes. Eu via o tempo no The Clock, mas não estava nele, quer dizer, eu estava experimentando o tempo como tal, não tendo experiências por meio dele como meio. […] Ao consultar o meu relógio para ver uma unidade de medida idêntica à exibida na tela, eu estava indicando que ainda havia uma distância entre a arte e o mundano.”

Nessa escrita semelhante a um “pensar sobre a experiência”, aparece uma reflexão sobre elementos importantes nas discussões sobre a arte hoje, de uma maneira muito particular e subjetiva, cujo efeito produzido na leitura é o de que a subjetividade do narrador, sua constituição como sujeito, vai sendo elaborada junto com o texto. Essa reflexão motiva o personagem a escrever “mais ficção”, e talvez seja o pontapé inicial para as demais reflexões (sobre as diferenças entre a realidade e a arte, sobre o que é se tornar um autor, sobre a exposição de si na literatura atual, sobre estar no mundo) que aparecem na obra. Talvez a chave para compreender essa maneira de estar presente nas coisas refletindo sobre o que é a ficção seja a epígrafe escolhida por Lerner que diz assim:

“Os hassidim contam uma história que diz que no nosso mundo por vir tudo será precisamente como é aqui: Como o nosso quarto é agora, assim será no mundo futuro; onde dorme o nosso filho agora, é onde dormirá também no outro mundo. E as roupas que vestimos neste mundo são as que também vestiremos lá. Tudo será como agora, só que um pouco diferente.”

Em vários momentos, ao longo da leitura, o narrador chama a atenção para pequenos mas sucessivos “rearranjos de mundo” que somos obrigados a fazer no nosso cotidiano e a que vamos nos acostumando na narrativa pela maneira como Lerner explora esse procedimento. Acredito que aqui nesse “procedimento” há algo de semelhante ao que Corrigan chama de “pensamento ensaístico” ao falar sobre a forma do ensaio no cinema. Essa nova lógica de organização expressa no romance também é um convite ao leitor para que assuma um posicionamento diferente diante da obra, da ficção que lê.