Arquivo do mês: junho 2020

Não é autoficção (?)

Antonio Caetano

Créditos de imagem: Ilustração de Eva Vázquez. El Páís.

Ao ler recentemente uma entrevista dada pelo autor e editor Tiago Ferro ao Estadão, decidi escrever esse post com o intuito de expor algumas inquietações que tive. O pai da menina morta, primeiro livro escrito pelo autor, começou a ser pensado a partir de um texto publicado por Ferro na Revista Piauí, no qual descreve, comenta e elabora o luto pela morte de sua filha de oito anos. Há uma diferença crucial entre o artigo para a revista e o romance. No texto para a Piauí, os nomes próprios de sua mulher e das duas filhas são revelados, mas no romance, o narrador é “O Pai da Menina Morta” e os nomes dos demais integrantes da família não aparecem ou são modificados.

Na entrevista a que me referi acima, perguntado sobre sua resistência a considerar sua produção como autoficcional, Ferro afirma não considerar O pai da menina morta uma autoficção, tomando como base duas linhas de pensamento. A primeira linha é de que é inegável em seu texto “a volta do sujeito, aquele mesmo que os franceses haviam matado na década de 1970” (ou seja, o autor), tão em voga nos cenários de “super valorização da experiência” –  considerando, dessa forma, seu romance como um exemplo dentre tantos que enfatizam não a ascensão do gênero da autoficção, mas uma “mudança de ênfase na literatura contemporânea”. A outra linha de pensamento a que Ferro se refere diz respeito a uma caracterização básica para a autoficção: a de que o nome do narrador deve ser o mesmo do autor, exposto na capa. Ou seja, Tiago Ferro nega que seu texto seja autoficcional, mas não nega que esteja “valorizando a experiência” vivida ao escrever sobre o luto da perda da filha.

Tal cenário me faz pensar na pesquisa da colega Caroline Barbosa, em que ela reflete sobre “a recusa da autoficção”, pensando o Com armas sonolentas,de Carola Saavedra. Acredito que as razões que levam autores a negarem que seus textos sejam autoficcionais podem ser as mais diversas, mas  gostaria de expor algumas reflexões acerca do que poderia fomentar um discurso negacionista por parte dos autores em relação à autoficção.

Na entrevista, Ferro diz que a interpretação de sua obra como autoficcional resultaria em uma leitura necessariamente direcionada à relação dicotômica do real e do fictício, restringindo, assim, múltiplas interpretações do texto. Mas como distinguir, ou mesmo conceituar, realidade e ficção? A meu ver, são as maneiras restritas de lidar com esses conceitos, e consequentemente, com a autoficção, que restringem possibilidades de interpretação e reflexão sobre a obra.

Talvez sejam as concepções engessadas do que é autoficção, autobiografia, romance, que afastam ficção de não ficção, ao invés de considerá-las como partes complementares de todo e qualquer relato de si. Por conta da binaridade que se forma temos sempre de considerar onde começa um e termina o outro e a reivindicar e/ou rejeitar um e o outro. Talvez fosse mais interessante nos inclinarmos ao conceito de espaço biográfico na visão de Leonor Arfuch, no qual podemos considerar que a tensão entre o ficcional e o não ficcional “permite a consideração das especificidades respectivas sem perder de vista sua dimensão relacional, sua interatividade temática e pragmática”.  

Já que não é possível ler a obra “simplesmente” como romance (pois o personagem é muito colado ao autor), mas tampouco se trata de um relato autobiográfico, não seria o caso de investir em uma leitura especulativa sobre O pai da menina morta que se pautasse pela ótica múltipla de um espaço biográfico de fronteiras porosas para que assim possamos explorar a ambiguidade de sua condição?

O campo expandido na cena cultural baiana

Milena Tanure

Créditos da imagem: Feed da página do evento no instagram (@FILExpandido)

Em algumas das minhas publicações aqui no blog, apresentei relatos e reflexões sobre as experimentações que têm sido perceptíveis na cena literária baiana. Além das pequenas editoras que têm agenciado formas de promover a publicação e circulação do livro literário em solo baiano e para além dele, tenho observado maneiras outras de escrita e publicação que têm forçado a crítica literária a lançar novos olhares para essas produções. Nesse sentido, relembro a publicação aqui feita sobre Karina Rabinovitz e sobre seu trabalho na qual comentava o esgarçamento dos limites entre literatura e artes plásticas. No mesmo sentido, em publicação intitulada “Outras experimentações do urbano: múltiplos espaços, diferentes suportes” apresentei alguns livros de artistas que resultaram das atividades da Incubadora de Publicações Gráficas e foram expostas coletivamente na RV Cultura e Arte, com destaque especial ao livro Territórios Movediços, de Felipe Rezende e Luma Flôres.

Todas essas produções têm me inquietado, em especial, por ir revelando o modo pelo qual, é possível ler nas iniciativas baianas uma sintonia cada vez maior como os atuais debates no campo artístico, o que pode matar de vez certa visão preconceituosa que acusa de provincianismo produções fora do eixo Rio-São Paulo. Pensando sobre isso, de modo muito errático, tomei conhecimento do 4º Festival de Ilustração e Literatura Expandida (FILEx) que aconteceu do dia 07 a 15 de março em Salvador. Tendo como slogan as palavras lute, ocupe, crie, sonhe e imagine, o Festival ocupou o Goethe Institut com uma série de publicações criadas por pequenas editoras que têm experimentado outras formas de produção e circulação dos livros impressos.

No dia 15 de março, estive no último dia do Festival, que culminou na Feira Ladeira, e lá pude observar que a proposta do FILEx, conforme consta no site do evento (https://www.ilustrafestival.com.br/), consiste em reunir em Salvador a cena de ilustradores, performers, escritores, editores e demais profissionais interessados em “pensar e experimentar relações entre imagem e palavra em livros ilustrados”. Os organizadores afirmam entender que “[…] a Literatura Ilustrada Expandida é aquela que extravasa o papel, que vai para as ruas, que imprime o muro, que entra pelos ouvidos e sai pela boca, que pode ser lida nos rostos e nas relações”. E mais: aos participantes “interessa questionar as fronteiras, expandindo os limites tênues que separam as linguagens artísticas”.

Em especial, me interessaram as publicações da plataforma editorial A margem, cuja marca é um fragmento da falha do frontispício de Salvador que é perceptível para aquele que, do ponto de vista do mar da baía, olha para a cidade e a vê entre a “cidade baixa” e a “cidade alta”.

Marca da plataforma editorial A margem

Algumas publicações lançam um olhar específico sobre o espaço urbano, bem como geram uma outra relação com o objeto livro. Nesse sentido, cito a publicação “Paisagens ensolaradas”, de Felipe Rezende.

Imagem do livro disponível no instagram da A margem (@amargempress)

O livro mais recente de Rezende propõe um outro reconhecimento do espaço urbano a partir da perambulação pelo mapa físico e simbólico que constrói. Se em Territórios Movediços o centro da cidade de Salvador era o cenário para o diálogo com Baudelaire, na nova obra “as pessoas que aparecem intensamente iluminadas ao longo dos caminhos, são trabalhadores urbanos, prestadores de serviço, ambulantes em suas ocupações ordinárias, cotidianas; são anônimos que, fora destas bordas de cidade, estarão velados, sombreados” (texto de apresentação do livro no instagram de A margem).

Como indicado na apresentação do FILEx no site, o interesse do evento era “falar do livro a partir das relações com o corpo, com a cidade e com a coletividade. […] [além de pensar o] movimento crescente da autopublicação, buscando estratégias eficientes na distribuição de produções impressas e/ou performáticas”.  Interessante foi ir percebendo, em cada espaço da exposição, o modo pelo qual o evento colocou em cena a possibilidade de os leitores irem questionando o lugar sacralizado que o suporte livro ocupa ainda hoje. Ao me deparar com obras que se construíram coletivamente ao longo do evento, bem como com publicações com formatos tão díspares e que flertam com outras áreas e plataformas, como as obras com diálogos diretos com as artes plásticas ou aquelas que apresentam Qr code, por exemplo, voltei a refletir sobre as tensões que marcam as discussões entre o literário e o não literário, e também sobre o movimento de expansão da literatura para fora não apenas do livro com suporte, mas como intervenção urbana, por exemplo, confundindo-se, muitas vezes com uma performance artística.

“Ler é cobrir a cara. E escrever é mostrá-la.”

Marília Costa

Créditos da imagem: Manifestante com bandeira Mapuche no topo de estátua militar em Santiago se tornou símbolo dos protestos no Chile por reformas sociais — Foto: Susana Hidalgo

Durante o período de isolamento, estou tentando colocar em dia as leituras atrasadas. Por isso, comecei a ler o livro Formas de voltar pra casa do chileno Alejandro Zambra, publicado em 2011.

A narrativa (Novela? Romance curto? São muitas as discussões que poderíamos empreender sobre o gênero dessa produção) em primeira pessoa é contada a partir da perspectiva de uma criança que cresceu durante a ditadura de Pinochet no Chile.  Contando com pouca informação sobre o que realmente acontecia ao seu redor, a criança é alienada pela própria infância e pela família que vivia à margem dos acontecimentos, já que seus pais não estavam entre os que matavam, nem entre os que morriam, como diz a letra da canção de Raphael que a família ouve no carro durante uma viagem. No presente da escrita, o narrador-personagem, na condição de escritor reflete sobre o que escreve, sobre suas relações e, principalmente, sobre seu passado:

“Sinto-me próximo demais daquilo que conto. Abusei de algumas lembranças, saqueei a memória, e também, de certo modo, inventei demais. Estou de novo em branco, como uma caricatura do escritor que contempla impotente a tela do computador”.

Formas de voltar pra casa é uma narrativa de sobreposições: a história pessoal e a ditadura, a história do narrador e a história da família, a infância e a vida adulta, o passado e o presente, o texto e a escrita, a realidade e a ficção. Em uma passagem do livro, o narrador menciona o quadro “As meninas”: “este é o pintor Velázquez, o pintor pintou a si mesmo”. Essa cena em particular me chamou a atenção porque a obra “Las meninas” do espanhol Diego Velásquez é repetidamente comentada pela crítica especializada, que costuma destacar exatamente o arrojo da decisão do pintor de se colocar no quadro que pinta. É o que faz também o crítico francês Vincent Colonna para explicar um tipo particular de autoficção que Colonna chama de especular.

Na tela, temos o procedimento do “quadro dentro do quadro”, em que o artista representa a si mesmo na tela, segurando um pincel como se estivesse pintando a cena para qual olha inclinando sua cabeça. Colonna para explicar melhor a autoficção especular recorre a L’oeil et l’esprit [O olho e o espírito] de 1964, um texto curto, mas significativo sobre a pintura, no qual Maurice Merleau-Ponty relaciona a tradição da imagem do pintor em exercício à existência de um espelho dentro do quadro: “os dois proclamam a reversibilidade do vidente e do visível, da essência e da existência, do imaginário e do real; ‘uma universal magia que transforma as coisas em espetáculos, os espetáculos em coisas, eu em outrem e outrem em mim’”, afirma Colonna.

A metáfora do espelho, utilizada por Ponty, não evoca simplesmente a reduplicação. Pensando nisso, durante a leitura do autor chileno, me dei conta de que Zambra não apenas pinta a si mesmo, sua história e seu passado no texto literário, pois também é possível identificar na leitura, uma “operação de reversibilidade”: o escritor que narra da perspectiva da infância e escreve para tornar visível o que não via à época, reimaginando-se um outro de si mesmo, como se a narrativa fosse um palco.

Diário, não diário

Carolina Coutinho

Créditos da imagem: Chair, de Kim, Seung Young e 김승영, 2011.

Como venho tematizando em meus últimos posts, meu projeto de pesquisa atual está voltado para a investigação de uma certa apropriação do que seria uma “dicção diarística” por algumas das produções literárias atuais, resultando em narrativas voltadas para uma escrita de si exploratória de uma intimidade vacilante a partir da relação desse eu com o seu entorno.

Eu meu último post, comentei um pouco sobre o romance Algum lugar, de Paloma Vidal, e busquei explorar inicialmente como essa produção poderia ser lida ao pensar em sua relação com o uso de alguns dos procedimentos comumente atribuídos ao diário como uma maneira de renovar a escrita de si. Diante desse primeiro comentário sobre o romance de Vidal, acredito que outro projeto da autora também poderia ser interessante para a investigação que estou conduzindo.

Em seu site pessoal, a autora caracteriza o projeto Lugares onde não
estou como:

“diário poético que começou a ser escrito em 2010, no blog
http://www.escritosgeograficos.blogspot.com, é uma experiência literária plural: misto de crônica e diário, poesia e prosa, forma uma espécie de relato de viagem, com textos postados originalmente no meio dos afazeres cotidianos. A descoberta do mundo pelas crianças, as dúvidas e sonhos, o vivido e o imaginado, o visto e ouvido ganham um outro olhar nesses relatos que revelam uma inquietante familiaridade. 4 livros foram publicados a partir deste blog, cada um com 50 postagens: “Durante” e “Dois” (7letras, 2015); “Wyoming” e “Menini” (7letras, 2018).”

A partir da descrição oferecida pela autora, já podemos observar como o caráter experimental da forma literária é colocado como ponto central desse “diário poético” indefinido, identificado com uma mistura de formas, lançado em uma plataforma própria dos blogs. Esse experimento literário é, assim como o romance, marcado pela própria mistura dos papéis exercidos por Vidal: autora, mulher, mãe, professora, pesquisadora e crítica literária.

Pensando em especial na seleção feita pela autora para a publicação dos quatro livros originados das postagens no blog, é possível perceber a predileção por captar a simplicidade por meio de observações e anotações do que é “visto e ouvido” em meio ao cotidiano que se registra em boa parte das postagens:

precaução
antes de cair 
na piscina
a moça faz 
o sinal da cruz” (wyoming, p.25)

Esse espaço literário experimental parece possibilitar um espaço para também explorar o íntimo de uma forma sutil, uma investigação da própria identidade a partir da tentativa de evocar o outro e de colocar os questionamentos do eu num espaço externo, como proposto pela narradora do romance “Constato que se não tenho um espaço meu do lado de fora, meus pensamentos não me pertencem” (Algum lugar, 21).

“[…]
‘nenhum lugar jamais nos pertence’.
quem fala é outro.
a dor é minha.” (durante, p.14)
OU
eu
aquela mulher
com dois filhos” (durante, p.32)

E ainda assim, entre os pequenos flashes do cotidiano, vestígios do dia tão caros ao diário tal como Lejeune afirmou sobre esse gênero, a predominância da presença das crianças, os registros de leitura, o recorte e cola de trechos de outras obras, bem como a inclusão de hiperlinks e imagens (presentes apenas no blog), são marcas do que estou considerando chamar de escrita diarística. Tal denominação no entanto não é capaz de resolver com segurança esse projeto de escrita como um diário online. Apesar de alguns procedimentos semelhantes, o caráter de teste com a forma, em especial literariamente, realiza uma evasão do procedimento de anotação de um diário pessoal, como “discutido” dentro dos próprios posts, em especial por meio da (auto) análise (de si e do próprio experimento):

Ceci n’est pas un journal” (durante, p.49)
“Se isto fosse um 
diário 
eu não saberia 
nem por onde

começar 
mas como é preciso 
ser breve 
basta consignar 
meu acting out 
e sair” (menini, p. 40)