Por Fernanda Vasconcelos

Dados da foto: Anthony McCall, Between You and I, 2006, tenth minute. Installation at Peer / The Round Chapel, London 2006. Photo by Hugo Glendenning, © Anthony McCall 2006
A tarefa de se aproximar da literatura contemporânea é um desafio instigante, pois algumas obras nos surpreendem por sua complexidade e por nos conduzirem a leituras que nos desviam do esperado. Assim tem sido investigar o romance A morte do pai (2013), da série Minha Luta, donorueguês Karl Ove Knausgård.
A narrativa é escrita em primeira pessoa e a priori nos sugere o relato da morte do pai do narrador, mas tal promessa parece ser adiada ao se abrir e expandir em inúmeros relatos cotidianos, lembranças e descrições minuciosas, que caracterizam materiais ficcionais que se acumulam, atingindo um equilíbrio sofisticado.
Apesar de a descrição acima sugerir a impressão de uma narrativa fragmentária, a natureza desse fragmentário é muito distinta a da experiência de leitura de E les eram muitos cavalos ( 2001), de Luiz Ruffato, apenas para evocar um exemplo brasileiro. Em A morte do pai, a mudança de dicção (ora o relato avança como reminiscência, ora assemelha-se a uma reflexão ensaística sobre arte) muitas vezes ocorre de uma maneira deslizante, tornando se quase imperceptível à leitura, que segue de maneira fluida.
Contudo, quando acreditamos termos sido capazes de nos aproximar da forma desse romance, tudo parece escapar. Isso ocorre, pois o autor trabalha o texto em sua materialidade, transformando- o em volume e textura, “experimentados” pelo leitor, como se estivesse em contato, por meio da narrativa, também com a “experiência” mediada por outros gêneros e outras artes. A tensão entre o texto narrativo e o ensaístico, no qual o segundo invade as brechas do primeiro, coloca em questão o papel e valor do “romance”, já que os comentários sobre a arte na contemporaneidade, apresentados de modo reflexivo, em tom ensaístico, são pulverizados ao longo do texto e sugerem o risco de nomear a narrativa como romance, pura e simplesmente. O modo variado e complexo de construção das cenas desafia o leitor a estar atento e a experimentar diferentes ritmos de leitura.
Talvez o auxílio de uma metáfora possa nos ajudar a trazer à tona um aspecto do romance que tentamos evidenciar. Em uma cena cotidiana e banal com o seu irmão, Yngve, o protagonista, questiona sobre a “escultura” que estava fazendo com comida em deterioração, prato, garrafa e cigarro ainda aceso: “pois o que é um recipiente que não contém nada? Não é nada? Mas o nada tem forma, compreende? Essa forma que tento demonstrar aqui”. Essa escultura sem forma, provisória, inacabada, funciona, em nossa leitura, como uma metáfora para o romance do autor. Há uma materialidade dos objetos e da própria linguagem (que ganha um volume próprio durante a leitura) sendo problematizada em primeiro plano pelo caráter ensaístico da dicção.
Outro elemento evidente e que parece crucial para a instabilidade da ‘forma’, da caracterização da narrativa do que lemos como romance, é o fato de que a imagem do autor-escritor vai sendo construída paulatinamente ao longo dos volumes que compõem a hexalogia.
O romance autobiográfico, como a ficha catalográfica da edição brasileira classifica o volume, apresenta o eu-escritor no seu local de trabalho, como se revelasse ao leitor o making of da obra.
Reinaldo Laddaga, em Estéticas de Laboratório: estratégias das artes do presente, comenta que em muitas narrativas contemporâneas é comum encontrar o que chama de “estado de estúdio” no qual o escritor aparece escrevendo ou comentando suas estratégias de escrita, tematizando-se em seu local de trabalho. Este é um dos aspectos de nosso interesse.
Nada disso pode ser considerado novo. E é claro que é possível identificar genealogias. A mais comum, no caso de Knausgard, ainda que possa soar uma blasfêmia a muitos, é a narrativa proustiana. Ainda assim, o desafio da crítica é perceber sua diferença, um dentro (da tradição) e um fora (em direção a outras formas narrativas) em relação à história da forma romance, como afirma em entrevista a Hal Foster, Richard Serra, um artista contemporãneo, em relação à criação de própria obra:
“‘Dentro disso’ e ‘extrapolar minha obra’ indica que, uma vez traçado o caminho, a sua arte é conduzida por sua própria linguagem mais do que por quaisquer antecedentes. No entanto, para que essa linguagem não se feche em si mesma, a obra deve também permanecer ‘aberta’ e ‘vital’ por meio da construção por meio das exigências dos materiais, projetos e locais reais”.
Acreditamos que esses aspectos, o desafio do autor de lidar com uma tradição e ao mesmo tempo desvencilhar-se dela, escrever outra coisa, inscrever uma dicção própria, também são encontrados no romance de Knausgard.
Nesse sentido, esperamos ter ensaiado alguns apontamentos que nos aproximam da obra de Karl Ove Knausgård, já que o contato com a tradição e a busca do que transborda a respeito do que conhecemos como o gênero romance parece um bom caminho a percorrer que nos dedicamos a comentar criticamente o empreendimento do autor norueguês.