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Knausgaard. O ensaio e o romance

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Créditos da imagem: Francesca Woodman – Providence, Rhode Island, 1976.

Por Fernanda Vasconcelos

Não é novidade que a série Minha Luta escrita por Karl Ove Knausgaard adquiriu relevância internacional. Apesar disso, ainda há pouco desdobramento crítico sobre a obra. James Wood, crítico britânico que escreve para a revista The New Yorker, atribuiu à obra um caráter de vanguarda. Mas por que será que o crítico a entende assim?

Para Wood, a opção de Karl Ove pela autobiografia representa uma vontade de sair da ficção. Essa escolha, segundo a leitura do crítico, demonstraria um cansaço das formas ficcionais tradicionais. Trazendo “personagens e acontecimento reais” para a narrativa, Karl Ove faz com que repensemos também as relações entre ficção e realismo.

Nos volumes nos deparamos com a escrita em primeira pessoa que narra seu modo de vida. As relações entre vida e obra, um tópico comum às vanguardas, aí aparece de forma quase indecantável. Assumindo uma dicção ensaística, o autor consegue operacionalizar o que James Wood chama de “aventura do banal”. Assim, Knausgaard opera não apenas sobre as miudezas e baixezas do cotidiano, mas busca moldá-las por meio da flexibilidade oferecida pela forma do ensaio.

Mais do que mostrar sua habilidade de escrita ao alcançar outros “tons” de escrita realista (teríamos um eu escritor exibicionista?), Knausgaard conquista os leitores mais afeiçoados à tradição logo no início do seu romance. E, então, os conduz delicadamente aos interiores de sua vida privada, para apresentar-lhes uma emocionante “aventura do banal”.

A presença da dicção ensaística coloca a própria forma do romance em questão. Lendo-a assim, como um longo texto autobiográfico em que o autor ensaia a si mesmo narrativamente, emerge um problema de caracterização de forma, do gênero na qual o texto se apresenta.

Considerando que alguns textos críticos consideram que as produções contemporâneas forçam os limites da especificidade que marcou a modernidade, podemos considerar que a mescla autobiografia-ensaio-romance(?) na hexalogia pode ser lida como um investimento de literatura expandida, problematizando a expansão dos limites literários via utilização de outros materiais não ficcionais expandindo os limites daquilo que até pouco tempo chamávamos de literatura.

​O romance e o comentário sobre as artes

Por Fernanda Vasconcelos

Créditos: Perimeters/Pavilions/Decoys(1978), de Mary Miss

Conforme afirmou Davi Lara em seu último post, uma aproximação entre a literatura e as artes plásticas/visuais tem se mostrado vigorosa em diversos romances publicados nos últimos anos. Trata-se de longos trechos, muitos deles escritos em primeira pessoa, nos quais o protagonista relata o contato com obras artísticas.

É interessante pensarmos nesse movimento, do literário rumo às artes, quase sempre presente em obras de caráter mais experimental, que é configurado na narrativa pelo amálgama de reflexão e fascínio do narrador diante das produções artísticas, muitas delas experimentais e com formas de difícil captura.

No caso do romance autobiográfico A morte do pai (2013), escrito por Karl Ove Knausgård, o contato do protagonista com as artes aparece em vários momentos ao longo do livro, seja via sua experiência como frequentador de museus evocando descrições e reflexões de alguns quadros específicos de Rembrandt, seja por meio da experiência mediada pela reprodução da obra em livros de arte, como ocorre quando entra em contato com as pinturas de Jonh Constable.

Comentando exemplos da arte no século XIX, fica explícito o arrebatamento de diante daquelas pinturas: “Tudo concentrado em instantes tão intensos que às vezes era difícil suportar”, afirma o narrador. Nesse trecho ensaístico, o protagonista lida com o indescritível de sua experiência com a arte em um âmbito íntimo sem parecer estar preocupado com fornecer esclarecimentos mais técnicos ou específicos para o leitor. É um relato pessoal, como uma conversa íntima consigo mesmo, uma reflexão do escritor com ele mesmo, na qual ele mostra estar lidando com o inexplicável da arte, mediado por suas impressões e sentimentos.

O escritor afirma que estava acostumado a estudar a história da arte e a analisar a arte, porém o mais importante seria escrever sobre a experiência de fruição da arte. O que em sua opinião representava um desafio, porque o forçaria a lidar com a impossibilidade de descrever ou narrar algo inexplicável. Evocando sua frequentação às galerias de arte, Knausgård parece querer reproduzir na escrita a liberdade experimental, reflexiva que desenvolveu como visitante dos espaços de exposição de arte, que, no entanto, nem de longe é caracterizada como uma atividade apaziguadora, já que esse exercício demandava “estar dentro da inexauribilidade” que aquelas obras lhe apresentavam.

Em seguida, o escritor tece um comentário sobre a arte contemporânea. Aí, o escritor ressalta que o que causara a experiência da inexauribilidade do estético diante de obras como as de Constable e Rembrandt, se esvaziou ou se torna irrelevante para os objetos artísticos enquadrados na categoria de arte contemporânea. Karl Ove reconhece que as representações naturalistas passaram a ser ingênuas e ultrapassadas, pois delas não restaram grande significados estéticos. Contudo, afirma não pode deixar de sentir nostalgia por aquelas pinturas, e que se é naquela direção que ele como escritor deveria ir, faltaria saber o caminho a tomar. Aí, a reflexão se interrompe e o romance volta ao relato das mais banais preocupações do cotidiano.

Acreditamos que essa reflexão pode servir para pensar a própria condição da narrativa de Karl Ove na literatura contemporânea. Pois ao se mostrar resistente à arte contemporânea e buscar abrir um caminho na direção de uma representação naturalista, tentando apreender um modo novo de contar dentro dessa representação, não poderíamos pensar que o autor ao voltar ao relato de suas trivialidades, não estaria já respondendo à nostalgia que diz sentir e, ao mesmo tempo,  tateando um outro caminho para sua narrativa?

O que quero sugerir que é talvez seja possível pensar o  próprio romance A morte do pai como a materialização do esvaziamento de uma certa concepção de arte literária, da forma do romance tal como o reconhecemos desde o século XVIII, em seu momento inaugural. E que essa transformação é dada a ver na narrativa de Karl Ove por meio da reflexão, quase ensaística, do autor sobre a própria arte e sua experiência de fruição.

O jogo que se estabelece, então, é o de uma aposta na experimentação que afeta a voz narrativa que pensa a arte e a literatura atuais e, simultaneamente, pensa a si próprio como autor, como fruidor e produtor, no movimento dessa reflexão, dando voz a um eu que volta a si mesmo, durante a escrita, convidando os leitores a se engajarem também nessa reflexão.

O romance que saiu para passear: experimentações críticas

Por Fernanda Vasconcelos

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Dados da foto: Anthony McCall, Between You and I, 2006, tenth minute. Installation at Peer / The Round Chapel, London 2006. Photo by Hugo Glendenning, © Anthony McCall 2006

A tarefa de se aproximar da literatura contemporânea é um desafio instigante, pois algumas obras nos surpreendem por sua complexidade e por nos conduzirem a leituras que nos desviam do esperado. Assim tem sido investigar o romance A morte do pai (2013), da série Minha Luta, donorueguês Karl Ove Knausgård.

A narrativa é escrita em primeira pessoa e a priori nos sugere o relato da morte do pai do narrador, mas tal promessa parece ser adiada ao se abrir e expandir em inúmeros relatos cotidianos, lembranças e descrições minuciosas, que caracterizam materiais ficcionais que se acumulam, atingindo um equilíbrio sofisticado.

Apesar de a descrição acima sugerir a impressão de uma narrativa fragmentária, a natureza desse fragmentário é muito distinta a da experiência de leitura de E les eram muitos cavalos ( 2001), de Luiz Ruffato, apenas para evocar um exemplo brasileiro. Em A morte do pai, a mudança de dicção (ora o relato avança como reminiscência, ora assemelha-se a uma reflexão ensaística sobre arte) muitas vezes ocorre de uma maneira deslizante, tornando se quase imperceptível à leitura, que segue de maneira fluida.

Contudo, quando acreditamos termos sido capazes de nos aproximar da forma desse romance, tudo parece escapar. Isso ocorre, pois o autor trabalha o texto em sua materialidade, transformando- o em volume e textura, “experimentados” pelo leitor, como se estivesse em contato, por meio da narrativa, também com a “experiência” mediada por outros gêneros e outras artes. A tensão entre o texto narrativo e o ensaístico, no qual o segundo invade as brechas do primeiro, coloca em questão o papel e valor do “romance”, já que os comentários sobre a arte na contemporaneidade, apresentados de modo reflexivo, em tom ensaístico, são pulverizados ao longo do texto e sugerem o risco de nomear a narrativa como romance, pura e simplesmente. O modo variado e complexo de construção das cenas desafia o leitor a estar atento e a experimentar diferentes ritmos de leitura.

Talvez o auxílio de uma metáfora possa nos ajudar a trazer à tona um aspecto do romance que tentamos evidenciar. Em uma cena cotidiana e banal com o seu irmão, Yngve, o protagonista, questiona sobre a “escultura” que estava fazendo com comida em deterioração, prato, garrafa e cigarro ainda aceso: “pois o que é um recipiente que não contém nada? Não é nada? Mas o nada tem forma, compreende? Essa forma que tento demonstrar aqui”. Essa escultura sem forma, provisória, inacabada, funciona, em nossa leitura, como uma metáfora para o romance do autor. Há uma materialidade dos objetos e da própria linguagem (que ganha um volume próprio durante a leitura) sendo problematizada em primeiro plano pelo caráter ensaístico da dicção.

Outro elemento evidente e que parece crucial para a instabilidade da ‘forma’, da caracterização da narrativa do que lemos como romance, é o fato de que a imagem do autor-escritor vai sendo construída paulatinamente ao longo dos volumes que compõem a hexalogia.

O romance autobiográfico, como a ficha catalográfica da edição brasileira classifica o volume, apresenta o eu-escritor no seu local de trabalho, como se revelasse ao leitor o making of da obra.

Reinaldo Laddaga, em Estéticas de Laboratório: estratégias das artes do presente, comenta que em muitas narrativas contemporâneas é comum encontrar o que chama de “estado de estúdio” no qual o escritor aparece escrevendo ou comentando suas estratégias de escrita, tematizando-se em  seu local de trabalho. Este é um dos aspectos de nosso interesse.

Nada disso pode ser considerado novo. E é claro que é possível identificar genealogias. A mais comum, no caso de Knausgard, ainda que possa soar uma blasfêmia a muitos, é a narrativa proustiana. Ainda assim, o desafio da crítica é perceber sua diferença, um dentro (da tradição) e um fora (em direção a outras formas narrativas) em relação à história da forma romance, como afirma em entrevista a Hal Foster, Richard Serra, um artista contemporãneo, em relação à criação de própria obra:

“‘Dentro disso’ e ‘extrapolar minha obra’ indica que, uma vez traçado o caminho, a sua arte é conduzida por sua própria linguagem mais do que por quaisquer antecedentes. No entanto, para que essa linguagem não se feche em si mesma, a obra deve também permanecer ‘aberta’ e ‘vital’ por meio da construção por meio das exigências dos materiais, projetos e locais reais”.

Acreditamos que esses aspectos, o desafio do autor de lidar com uma tradição e ao mesmo tempo desvencilhar-se dela, escrever outra coisa, inscrever uma dicção própria, também são encontrados no romance de Knausgard.

Nesse sentido, esperamos ter ensaiado alguns apontamentos que nos aproximam da obra de Karl Ove Knausgård, já que o contato com a tradição e a busca do que transborda a respeito do que conhecemos como o gênero romance parece um bom caminho a percorrer que nos dedicamos a comentar criticamente o empreendimento do autor norueguês.

Seduzidos pelo autor: Karl Ove Knausgård na FLIP

Por Fernanda Vasconcelos

Masculinidade, masturbação, mulheres são alguns dos assuntos que o autor norueguês Karl Ove Knausgård comentou na mesa da Feira de Literatura Internacional de Paraty neste ano. Um dos grandes destaques da feira, o autor da série Minha Luta, movimentou o campo literário brasileiro causando burburinho nos bastidores e frenesi em sua recepção. Cercado por câmeras, críticos e leitores-fãs, o autor “astro” mostrou ter presença de palco ao performar com sobriedade, jogo de cintura e domínio literário a discussão sobre sua vida e trabalho como escritor. E os fãs-leitores, que parecem aguardar seus livros como se espera o uso da próxima dose de droga (como comentou o mediador da conversa), aguardaram o autor com a mesma fissura.
O autor, que parece sair do livro e tornar-se palpável “em carne e osso” no palco (ao procurar manter o tom ensaístico e também discutir temas encontrados nos livros), provou que seu fôlego ultrapassa as mais de 3000 páginas escritas que compõem os seis livros da série autobiográfica Minha Luta: “Karl Ove Knausgård, fez o que dele se esperava nesta sexta-feira quando surgiu como superstar no palco: mostrou demais, ainda que em termos literários, e não literais”, comentou um resenhista.
Sobre sua relação com o palco, Knausgård foi questionado pelo mediador da conversa na Flip, Gúrria-Quintana: “você disse que era mais fácil falar sobre essas coisas [trivialidades da vida íntima do autor que aparecem no quarto livro] no palco. Você fala do seu livro, como se eu e você estivéssemos tomando um chopp” E Karl Ove respondeu: “Eu acho que a situação é como escrever, a única coisa é que não é tão criativo assim, mas você tem que ser totalmente livre, dizer o que quiser, besteiras e permitir isso também. Conseguir dizer algo substancial também, mas eu não sei, vergonha é um tema dos meus romances desde o início”.
Knausgård mostrou que sabe seduzir o público com comentários reveladores sobre sua vida íntima transformada em literatura (ou seria o contrário?), seu processo de criação e as consequências da publicação de uma escrita que revela muito de si e também dos outros já que o autor teve de enfrentar as reações da esposa, familiares e amigos que aparecem nos livros, chegando a ser processado. A presença do autor também foi utilizada para divulgar a publicação no Brasil do quarto livro da série Uma temporada no escuro pela Companhia das Letras. Retratando sua adolescência, Karl Ove evoca os pormenores e banalidades dessa fase da vida como se realizasse um sobrevoo sobre o passado. Em longos trechos, a dicção parece reelaborar o vivido e aprofunda-se em reflexões instigantes que fazem do eu um outro.
Talvez essa seja uma das razões, associada às revelações polêmicas e à sua atuação pública, que justifique a superlativa recepção a seu nome de autor no mundo literário contemporâneo.

O áudio da mesa que teve a participação do autor na Feira de Literatura Internacional de Paraty encontra-se no canal da FLIP no Youtube.