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Literatura sem ficção?

Luciene Azevedo

Cŕeditos da imagem: Richard Long, Walking a line in Peru, 1972.

Um indicativo de que há algo distinto na maneira como entendemos o que chamamos de literatura no presente está relacionado ao modo como vamos negociando – às vezes com muita resistência – uma ampliação da maneira como a não ficção vai adentrando o território do literário. 

Não é uma questão simples e tampouco é específica de qualquer crise do literário hoje, sequer das artes em geral, porque também é um impasse que vivemos em nosso dia a dia com o enfrentamento às fake news ou com a surpresa meio divertida com o acesso fácil às ferramentas da Inteligência artificial. 

A observação de um caso recente pode ser um exemplo instigante para remexer as diversas e problemáticas camadas dessa expansão da literatura em direção à não ficção. 

Trata-se de Ioga, último livro de Emmanuel Carrère. Logo no início, fica evidente a habilidade narrativa do escritor francês. Parece que começamos a ler um livro sobre práticas meditativas e de autoconhecimento, mas o narrador, que pretende ser “honesto”, apresenta os conceitos dessa filosofia de vida e também os questiona. Dessa forma, o leitor vence com tranquilidade as cento e poucas páginas iniciais do livro. Depois, vem a escuridão. O livro avança pelo período de convívio do narrador com uma violenta crise depressiva que o leva à internação e aos eletrochoques e mergulha na vida dos refugiados que chegam às costas das ilhas gregas, para onde Carrère vai a fim de fazer um trabalho voluntário. Aí, a narrativa passa a ouvir outras histórias de vida. 

E o livro se desmantela ou  – se deslocamos um pouco nossa perspectiva- ganha novos arranjos de leitura. 

O narrador diz que tem inveja de quem não “desnaturaliza” o que conta, a vida que deseja capturar por escrito. Mas esse pacto é cortado de súbito, quase ao final, quando o narrador afirma que inventou muito: “Frederica é um personagem de romance. Quero dizer: se baseia em um modelo distante de quem é a pessoa com quem compartilhei cursos em Le Pikpa, me embebedei de forma memorável e com quem escutei a “Polonesa heróica” de Chopin, mas todo o resto é inventado. É o que acontece fatalmente quando se começa a mudar os nomes próprios: a ficção toma o poder”.

Algo dessa virada, já tinha sido anunciado antes: “não posso dizer deste livro o que disse orgulhosamente de outros: “tudo o que escrevi é certo”. Ao escrevê-lo devo desnaturalizar um pouco, transformar e apagar um outro tanto porque […] não tenho o direito, nem o desejo de contar uma crise que não é o tema deste relato, e por isso vou mentir por omissão”.

Ioga foi lançado como romance, já que a ex-mulher do escritor identificou passagens que chamou de “um espetáculo apresentado como sincero”, mas que se distanciava muito do que tinha sido vivido. Na carta pública que escreveu para o Le monde afirmou não apenas que Carrère não havia estado sequer uma semana em Leros, a ilha grega na qual encontra com Atiq e Hamid e outros meninos refugiados, como restaura a ordem verdadeira da sequência narrativa afirmando que a depressão relatada por Carrrère é consequência da viagem à Grécia, e não como está no livro, pois quando o narrador chega à ilha, já está recuperado. 

E é então que as condições de emergência do livro ganham destaque, invadem o relato e o alteram. A declaração da ex-mulher de Carrère é uma reação ao descumprimento de um pacto formal assinado por ambos que garantia que o escritor não mencionaria mais, a partir do divórcio consumado meses antes do lançamento do livro, esse vínculo afetivo ou circunstâncias privadas que a envolvessem. 

Comenta-se ainda que o livro perdeu a indicação ao prêmio Goncourt em 2020, pois a premiação exclui obras de não ficção e o comitê de seleção queria evitar controvérsias. Depois que a polêmica veio a público, muitos críticos encontraram nas exigências contratuais a explicação para o modo como o romance parece mal costurado e caminha para um final que soa inverossímil. 

Mais do que encontrar a explicação para o desarranjo narrativo, meu interesse está concentrado em especular sobre a associação, quase natural entre literatura e ficção que o episódio deixa ver. Menos interessante me parece a dimensão, digamos, privada dos bastidores da publicação ou a insinuação maliciosa de Mario Sergio Conti na Folha de que tudo tenha se transformado em autoficção.

Carrère já se referiu ao livro como uma “autobiografia psiquiátrica” e se orgulha de ser um autor de não ficção, mas o imbroglio envolvendo o contrato jurídico com a ex-mulher parece empurrá-lo para o que chama de “desnaturalização” do que narra, o força a cruzar a fronteira da invenção: “Existe um critério que nos permita adivinhar se uma história é verídica ou fictícia? […] Não tenho uma resposta, mas me parece que, sem que possa explicar, intuímos. Eu ao menos o intuio.”

Se a hipótese é válida, a explicação para esse deslizamento, então, está em um elemento externo  que atua sobre a autonomia da obra, mas que ao mesmo tempo tenta tirar do episódio um benefício, uma espécie de bônus. 

A que me refiro? Já que foi impelido à invenção, Carrère encontra aí a oportunidade de pleitear um prêmio na categoria “melhor volume de imaginação em prosa”. A reação da ex-mulher retira-lhe essa possibilidade, mas o texto tira proveito dessa injunção: se não é autobiografia, é invenção, “não consegui escapar da ‘desnaturalização’ de minha própria vida”, diria Carrère. 

E a maquinaria desnaturalizadora, o flerte com a ficção, pode ser notado no fecho da narrativa, que arma um arco-íris de felicidade: o narrador reencontra um novo amor (que também é adepta da prática da ioga!), restaura seu equilíbrio psíquico – o lítio equilibrou seu humor e amenizou sua dor-    Hamid e Atiq seguem suas vidas – acompanhadas pelo narrador pelas redes sociais. 

Há aí muitas e diferentes versões de como a ficção está sendo compreendida. Meu interesse por esse episódio está na defesa do próprio autor de uma literatura de não ficção e na maneira como parece ter sido encurralado exatamente por essa nomenclatura, pois a repercussão da polêmica e do parti-pris entre os ex-amantes está calcada na ideia de que há uma separação clara entre a ficção e a autobiografia, de que a não ficção é um elemento estranho- e incômodo- à literatura.

Talvez o final do livro de Carrère, que soa inverossímil, perfeito demais e deixa uma mensagem de felicidade seja apenas uma forma de vingança, um revide que expõe a inadequação de uma visão compensatória da literatura, que limitando-a à ficção a toma como fórmula para aliviar-nos da realidade. 

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Curadoria e literatura

Luciene Azevedo

Créditos da imagem: Monalisa indígena, Denilson Baniwa

Há não muito tempo atrás, Christy Walpole, uma estudiosa canadense interessada no gênero ensaio, chamava a atenção para a proliferação de estudos sobre essa forma de escrita. Na opinião de Walpole, a instabilidade de sua forma, a dificuldade de sua nomeação, a indecidibilidade a respeito de seu lugar (arte ou ciência?) constituem características do ensaio que se ajustam e respondem bem às demandas de nosso tempo. Mas é a tradição que se inaugura com Montaigne, o caráter tateante do pensamento que afasta certezas, que a crítica afirma ser o mais valioso artifício para o enfrentamento de tempos tão dogmáticos, referindo-se em especial ao discurso político americano dos últimos anos.

Assim, como resposta ao que chama de dogmatismo da paisagem política e social, Walpole propõe a “ensaificação de tudo”, que caracteriza como “um convite para manter a elasticidade do pensamento e aceitar a ambivalência inerente ao mundo”.

A proposta de Walpole também pode ser utilizada para pensar a noção de curadoria, já que seu uso tem se tornado cada vez mais difuso. Alguns teóricos têm atribuído esse impulso curatorial à insidiosa presença da internet em nossas vidas, à proliferação de dados e informações a que estamos sujeitos cotidianamente. Daí a importância que a seleção, uma operação básica do curador, tem para o contemporâneo. Uma evidência disso é o modo como os próprios algoritmos assumem o papel de curadores cibernéticos de nossas escolhas e gostos, organizando nossas playlists ou nossos feeds de notícias.

Mas o que significa pensar a curadoria como uma prática literária? E como seria possível pensar o autor no papel de curador e do quê, exatamente?

É evidente que a mais básica operação realizada pelo curador é a seleção, a escolha, o recorte que faz de determinado trabalho de um artista para a montagem de uma exposição. Embora as operações mais evidentes em jogo na curadoria das práticas literárias sejam o gesto de seleção e recontextualização do material com o qual trabalha o autor curador, é possível pensá-la como um procedimento de elaboração narrativa e poética que tem consequências mais amplas e afeta nossa ideia moderna de arte e, por tabela, de literatura, colocando em xeque muitos elementos importantes para as artes e para a literatura hoje: a questão da criatividade, da originalidade autoral, a valorização da obra inacabada, a importância do processo sobre o produto acabado e do leitor para a elaboração do sentido.

Além de pensar no processo curatorial do qual se vale Ana Maria Gonçalves para elaboração de Um defeito de Cor, tal como analisa Lílian Miranda, poderíamos mencionar outras obras publicadas nos últimos anos em que é possível identificar o autor operando como um curador. Lendo Kafkianas, obra póstuma de Elvira Vigna, o que o leitor tem diante de si são contos? Anotações de leitura? Aí, a curadoria revela-se por meio dos procedimentos de seleção, cópia e comentário que sugerem uma conversa com o universo kafkiano, um processo que é ao mesmo tempo um misto de recontagem das narrativas do autor tcheco e um modo de expor a construção do processo de leitura que redimensiona as fronteiras entre o ficcional, o analítico e o comentário autoral de Vigna.

E em Sessão de Roy Frankel? Como opera a curadoria? O “poema” é um “recorte e cole”, uma seleção e montagem feita pelo autor a partir das notas taquigrafadas da sessão da câmara dos deputados que votou o impeachment da presidenta Dilma Roussef em 2016. A obra revela a potencialidade das mínimas intervenções feitas à transcrição dos votos dos deputados durante a sessão. Caracterizados como uma prática curatorial, os cortes (e outros recursos poéticos como a manipulação gráfica das palavras) potencializam sentidos, evidenciam o clima de polarização de opiniões, acentuando a hibridez entre o discurso político e a ficção.

Os cortes estratégicos expandem os sentidos das falas e exploram a ambivalência das posições, evocam tudo o que o discurso não diz explicitamente

E nesta tarde ensolarada, 
neste domingo, 
dia 17 de abril de 2016, 
vamos fazer a história, 
decidir o 
que 
queremos   
para o futuro deste       
                                          País

Em meio à gravidade da situação e das consequências que teve para o país (sentidas ainda hoje sob a presidência do atual mandatário), a declaração, destacada de seu contexto original, ganha ares cômicos, edulcorados, pelo registro da “tarde ensolarada”. Aqui, a mera recontextualização realça a farsa que estava sendo encenada. Mas também chama a atenção o corte estratégico em “decidir o/ que/ queremos” que gera uma ambiguidade só possível de ser lida após a intervenção formal, já que o discurso afirma uma vontade, uma decisão, um querer, mas o corte sugere uma hesitação, uma espécie de gagueira, que sugere todo o intrincado conjunto de elementos em jogo na escolha pela decisão de cassar o mandato da presidenta eleita. O exercício curatorial de Frankel promove intervenções que parecem mínimas, mas cujos efeitos são perturbadores porque revelam toda uma dimensão latente ao histrionismo do momento político.  Essa dissociação entre o dito e o não dito é feita de maneira quase silenciosa, mas produz um efeito poderoso no leitor e põe a descoberto o caráter farsesco do processo.

A apropriação (da narrativa canônica de Kafka, como o faz Vigna, ou do registro dos votos de uma sessão do Congresso Nacional, no caso de Frankel), procedimento básico da lógica curatorial, retoma os sentidos instituídos de cada um desses materiais para escavar, escrutinar novas possibilidades de indagação sobre eles, especulando sobre as opacidades que contêm.

A ficção e o documento

Luciene Azevedo

Créditos da imagem: Masahisa Fukase, Frieze, Kanazawa- 1978

A expressão “subjective turn” aparece nas investigações do filósofo Charles Taylor para caracterizar a transformação de uma ideia de sujeito que toma consciência de si e marca o início da era moderna: “uma nova forma de interioridade, na qual pensamos a nós mesmos como seres que têm uma profundidade interior”.

 Esse é o momento em que a ideia de sujeito ganha um novo sentido. As acepções da palavra em português ou espanhol guardam a memória dessa transformação, já que a grande virada de sentido é também o empoderamento da ideia do eu que não é mais resumido a sua condição de assujeitado às leis divinas. Ainda que as Confissões de Santo Agostinho sejam citadas como um momento chave dessa tomada de consciência, é fácil reconhecer que Agostinho é um fiel súdito às leis do seu senhor. É com Montaigne que o sujeito ganha uma autonomia ativa que o habilita a uma autoridade inédita na primeira pessoa. Ao tatear uma forma de escrever em seus Ensaios, Montaigne tateia também a matéria instável de sua identidade e ao lado de anotações e comentários de passagens clássicas sobre quase tudo, revela seu gosto por melões e o sofrimento com sua doença renal. A estranheza causada pela revelação dessas irrelevâncias é o indício mais concreto do que Taylor chama de “guinada subjetiva”.

No âmbito latino-americano, Beatriz Sarlo retomou a expressão para pensar a primazia do testemunho na virada do século XX para o século XXI. Não vou ter tempo de desenvolver a sofisticada argumentação de Sarlo no espaço deste post.  O que me interessa é aproveitar a ideia da virada subjetiva para pensar uma aproximação cada vez mais estreita da ficção com o caráter quase documental do registro da experiência de vida do sujeito que escreve e que está presente em muitas narrativas hoje. Às vezes, para revelar ao leitor o próprio processo da escrita, como faz o uruguaio Mário Levrero em seu Romance Luminoso, mas também para se inserir no próprio texto, sem se preocupar com a distância entre narrador e autor, revelando uma reflexão sobre uma inquietação com a própria identidade (como, por exemplo, as narrativas de Julián Herbert e de Eduardo Halfón). Mas isso que poderíamos chamar de uma desficcionalização do sujeito (e também do que conta, em certa medida) implica também um problema formal.

Mais recentemente em um ensaio escrito para comentar a encomenda para escrever um livro que registrasse as filmagens do último filme da diretora argentina Lucrécia Martel, Selva Almada expõe para o leitor a dificuldade de resolver o que parecia simples:

“Que tipo de livro queria fazer? Tinha claro que não seria um diário da filmagem, mas, então, o que seria? Uma coleção de histórias sobre a filmagem? Uma série de entrevistas com os atores, atrizes, técnicos e outros colaboradores do filme? Uma conversa com Lucrecia Martel? […] Decidí que não seria nada disso e, ao mesmo tempo, seria tudo isso. Crônicas breves, impressões pessoais sobre a filmagem, mas narrados por um narrador em terceira pessoa. Entrevistas convertidas em monólogos”

No pequeno grande livro, há um primeiro sobrevoo panorâmico pela locação de filmagens que registra o caos incômodo da natureza como cenário indomável da rodagem do filme e os diversos e múltiplos obstáculos para a realização do empreendimento. Aos poucos, o texto que se parece mais com notas, um rascunho para aproveitar depois, vão se aproximando dos figurantes, de seus pequenos dramas (“alimentação precária, pobreza e doenças”), abrindo espaço para que falem em primeira pessoa.

É curioso como ao lado da aposta no hibridismo formal, Almada escolhe desaparecer: “Não há uma cronista que seja Selva Almada, nem um personagem de cronista inventado por sua autora”. No entanto, assim como Almada avalia as orientações de Martel para o posicionamento dos figurantes durante a gravação de uma cena, essas indicações a respeito de seu desaparecimento na narrativa “são simples e precisas […] Parecem simples, mas não são”. Quem lê o conjunto de anotações breves (mas densas) sobre o cotidiano das filmagens não pode deixar de notar a presença marcante de Almada na escolha do que observa, no laconismo muito expressivo, das anotações que faz. E talvez essa ambivalência seja também um modo de interrogar a função representativa da primeira pessoa que volta a tantas narrativas hoje e uma tentativa de responder à contraditória convivência entre a espetacularização e a intensa consciência da mobilidade do vivido que marca nosso presente.

Cansamos das ficções?

Luciene Azevedo

Créditos da imagem: Arnulf Rainer,  Untitled- 1974- Oilstick and Crayon Over Photograph

Acho que não é preciso dizer que um dos maiores desafios para aquele que pensa as produções artísticas hoje é a presença marcante da primeira pessoa. Comentando a relação entre a poesia e a fotografia, Adolfo Montejo Navas afirma que o autor nunca está por cima da materialidade da linguagem se não quiser cair em uma ressaca de conto romântico, mas cada vez mais quando falamos de textos que, ainda que com algum hesitação, continuamos a chamar de literários é notável que o trabalho com a materialidade da linguagem não parece tão fundamental quanto o foi para o modernismo.

A descoberta moderna de que a linguagem é dúbia, vacilante e de que, na verdade, precisamos de muitas convenções para garantir um pouco de eficácia comunicativa, é quase um truísmo hoje na era da guerra das narrativas e por isso os experimentos linguísticos que marcaram as produções literárias da modernidade já não são necessários para provar a zona incerta em que se inscreve toda palavra.

A própria tradição moderna na qual muitos de nós nos formamos como leitores sempre nos alertou contra a ingenuidade de confundirmos os autores com os personagens e narradores de suas próprias histórias. Como devemos reagir, então? Meu interesse pelas formas narrativas nas quais a primeira pessoa do texto é confundida com a presença do próprio autor me leva a uma pergunta sobre a maneira como lidamos com as ficções, que durante a modernidade foi tomada quase como um sinônimo da própria ideia de literatura.

Mas se hoje, em muitas produções atuais, é possível questionar a ficcionalidade como ato imaginativo em operação, já que muitas vezes a “evocação do nome próprio do autor dá ideia de sua absoluta presença”, como afirma o teórico espanhol Pozuelo Yvancos, será possível pensarmos em uma nova disposição discursiva para o que chamamos de literatura? Será possível ler em muitas narrativas hoje um processo de desficcionalização sistemática do texto? Curiosamente, encontro o comentário num estudo de Stefano Calabrese para caracterizar a incorporação dos relatos enviados por cartas a Eugène Sue por seus leitores e que eram incorporados aos romances do autor.

Em muitas narrativas contemporâneas essa “desficcionalização” está relacionada à presença da primeira pessoa nos textos que realizam verdadeiros inventários pessoais, relatando a forma como os narradores-autores experimentaram a experiência que nos contam.

Vamos considerar o único romance escrito pela americana Lydia Davis, O fim da história. Seu título contém uma ambiguidade sustentada pelo romance, pois podemos interpretá-lo em sentido literal, (como a história terminará?), mas também podemos entendê-lo como um indicativo de que certa concepção da narrativa ficcional à qual estamos acostumados desde o século XVIII, está ausente do livro.  Diria mesmo que sustentar essa ambiguidade é revelar dois procedimentos narrativos distintos: narrar ou não a história? Qual história há para contar?

O impasse da narradora sobre expor (ou não) a intimidade de sua vida amorosa é acoplado materialmente à forma anotada da narrativa, que se reescreve aos olhos do leitor como se ele estivesse lendo um palimpsesto de versões, um acumulado de rascunhos que tateiam simultaneamente um modo de contar e um final para a história. Entendo que essa descrição pode soar muito próxima à operação metaficcional tão explorada pela própria modernidade, mas não seria possível me deter neste problema no espaço deste post. Ainda que haja claramente um comentário sobre os impasses sobre o que e como narrar, é como se a narradora expusesse sua preparação, suas anotações para escrever, incorporando a descrição sobre o método de preparação para a escrita da materia narrativa, pois o que lemos é a experiência do autor escrevendo ficção e a narrativa como uma oficina ficcional dessa criação:

“tenho tentado separar algumas páginas para acrescentar ao romance e quero juntá-las numa caixa, mas não sei como etiquetar a caixa. Gostaria de escrever nela MATERIAL PRONTO PARA SER USADO, mas se fizer isso posso atrair o azar, porque o material pode ainda não estar “pronto”. Pensei em incluir parênteses e escever MATERIAL (PRONTO) PARA SER USADO, mas a palava “pronto” ainda era forte demais apesar dos parênteses. Pensei então em colocar um ponto de interrogação e deixar MATERIAL (PRONTO?) PARA SER USADO, mas o ponto de interrogação introduziu de imediato mais dúvida do que eu podia aguentar. A melhor alternativa talvez seja MATERIAL – PARA SER USADO, o que não vai tão longe a ponto de dizer que está pronto, apenas que de algum modo vai ser usado, ainda que não precise ser usado, mesmo que seja bom o bastante”.

Ao narrar a experiência de escrever um romance expondo os preparativos para escrever, a voz narrativa, embora se mantenha sem identificação, garante uma proximidade quase íntima, confessional com seu leitor. E se acionamos o alerta vermelho contra essas ingenuidades identificatórias entre narrador e autor, entre autor-narrador e leitor, o próprio texto parece não desejar manter as coisas muitos estáveis, insinuando que nem tudo o que está sendo lido é obra de ficção e que então o romance deve ser encarado como uma charada de difícil solução, como afirma a narradora. Ou ainda: eu não estou disposta a inventar muito. A maioria das coisas se mantém como era. Talvez eu não consiga pensar em algo para por no lugar da verdade. Talvez eu só tenha uma imaginação fraca.

Será que a presença invasiva do eu nas narrativas, ambiguamente aproximado aos autores das histórias, pode ser pensado como um rechaço à ficção?  Estamos realmente nos cansando das ficções, como afirmou a crítica argentina Beatriz Sarlo há um tempo atrás?

 

O que é uma “literatura ocupada”?

Luciene Azevedo

Créditos da imagem: Hieronymus Bosch- The Last Judgment (Tríptico), detalhe.

A palavra ocupação vem se tornando cada vez mais presente em nosso vocabulário, sendo compreendida como um gesto político de resistência que ganha protagonismo a partir de 2011 como o movimento Occupy Wall Street contra a desigualdade econômica e, no Brasil, a partir de 2015, como  o movimento de ocupação das escolas por estudantes secundaristas de todo o Brasil. Seria possível, então, tomar a noção de ocupação para pensá-la como um gesto válido também para a literatura? 

Uma tentativa de resposta pode ser ouvida em A Ocupação de Julián Fuks. O mote principal da narrativa parece tomar como premissa básica a inquietação já presente em Barthes sobre o que significa formar uma comunidade quando a diferença não pode ser apagada, pois o narrador-autor, Sebastián-Julián, está interessado em enfrentar o desafio de encontrar uma maneira de viver e escrever que, sem mitigar a distância dos outros, quer construir com eles uma sociabilidade sem alienação.

No livro, acompanhamos simultaneamente três veios narrativos que ocupam a voz do narrador: o desejo inesperado de a mulher ter um filho e a dor vivida por um aborto espontâneo, as visitas ao pai do narrador em estado grave no hospital e as visitas à ocupação de um edifício abandonado no centro de São Paulo.

É possível ler nas muitas resenhas elogiosas à obra que Fuks foi convidado a participar, em 2016, de uma residência artística no antigo Hotel Cambridge, ocupado pelos integrantes do Movimento dos sem teto do Centro de São Paulo. A narrativa, então, entrelaça o pessoal e o político explorando a autoficção e parte dessa experiência pessoal para ouvir os moradores do prédio ocupado. Assim, vamos lendo o sofrimento de Najati, sírio refugiado no Brasil, que busca abrigo no movimento dos sem teto, de Demétrio Paiva, que chegando do Peru é humilhado pela polícia, de Gínia, cuja vida foi transformada em escombro junto ao terremoto que arrasou o país, de Rosa que foge do Tocantins para se refugiar dos vermes e ratos que invadem sua casa. Em meio a essas vozes, ouvimos o narrador: “Só o que faço é deixar que me ocupem, que ocupem minha escrita: uma literatura ocupada é o que posso fazer nesse momento”.

A ocupação da literatura começa, assim, pela escuta de um narrador que empresta o ouvido e a escrita para os ocupantes do Hotel Cambridge. A escuta é, então, o primeiro gesto em que é possível pensar uma “partilha das distâncias”, como diria Barthes.

Esse gesto, que é político, leva o narrador a refletir sobre a condição da literatura. Ao ouvir Najati, por exemplo, e depois de ler as histórias que o refugiado sírio escreveu sobre a vida que levava e a dor de ter de abandonar seu país e sua família, o narrador parece cansado da “literatura”: “A literatura não me interessa em nada”, lemos. Sebastián-Julián conta que ao ler as narrativas de Najati sentiu um efeito que a literatura há muito tempo não produz nele: “franqueza e simplicidade”. É um “improvável ideal de escrita”, reconhece o narrador-autor, mas é também algo que desperta “um vontade de me expandir”.

Poderíamos pensar então que uma literatura ocupada é uma literatura expandida ou fora de si, que projeta-se para seu entorno, aceita a tensão com a política de uma forma que as fronteiras entre o dentro e o fora estão embaralhadas, como afirma Josefina Ludmer em seu já clássico texto sobre as literatura pós-autônomas? Vamos ouvir o autor em uma entrevista: “Hoje é o momento de uma literatura ocupada […] de se deixar ocupar por esses discursos, participar desses discursos de emancipação e combate às violências que estamos vivendo”.

A narrativa é uma reflexão que se pergunta, mais uma vez, pelo lugar da política na literatura. Negando-se a definir a ocupação da literatura como uma prática panfletária, Fuks aposta em fazer  deslizar a literatura para fora de si, olhar para seu entorno, como um discurso capaz de concretizar uma forma de comunidade na diferença. 

Dá certo? Ou será que a narrativa falha?  Se falha, sua falha é também uma força que reconhece a produção literária como responsável por fabricar um presente em que o trânsito entre a realidade e a ficção é cada vez mais marcado pelas disputas políticas próprias de nosso tempo, próprias de nossa esfera pública, mas também próprias das representações literárias.

Por uma crítica inespecífica

Luciene Azevedo

Resultado de imagem para Eikoh Hosoe, Kamaitachi #8 1965
Créditos da imagem: Eikoh Hosoe, Kamaitachi #8, 1965

Já nos acostumamos a ouvir que boa parte das práticas artísticas hoje é marcada pela inespecificidade. Quando a crítica argentina Florencia Garramuño explora o termo, suas análises apontam para obras cujos
gêneros são imprecisos, e a denominação de arte parece imprópria, seja porque os objetos são “pobres”, seja porque a linguagem é sem metáfora ou o escritor e o poeta parecem apresentar apenas um relato do que viveram. Mas será que poderíamos pensar em uma inespecificidade que atinge também os modos de fazer crítica hoje? Aproveitando, então, o mote da inespecificidade seria possível pensar que alguns trabalhos críticos como Rio-Durham (NC)-Berlim. Um diário de ideias e Fragmentos reunidos de Fábio Durão ou O Mundo Inteiro como Lugar Estranho de Néstor Canclini deixam de lado requisitos determinantes para que dada produção seja considerada crítica?

Alberto Giordano, crítico argentino, que recentemente lançou dois livros que consistem em uma compilação de entradas críticas no facebook, plataforma que Giordano transformou em uma espécie de diário on-line para seus comentários, afirma que tem desejo de produzir um tipo de crítica que possa “suprimir as conjunções, as transições, interromper e não concluir, sugerir sem apresentar, afirmar e não oferecer provas”.

Mas vamos tomar o exemplo de Canclini. A própria obra é estranha e essa estranheza é acolhida como experimento. Os textos reunidos não pertencem a um gênero específico. Adotam o tom ensaístico, tateante, mas se valem de anedotas (“Pós-xerox”), fingem-se de entrevistas (“Lugar para a dúvida” e “O que não podemos responder”) e inventam personagens (como a voz do doutorando, presente em “Maneiras de citar” e “Supermercado de papers”). Há pouco aí que pode ser identificado à crítica, tal como estamos acostumados. Embora o autor dialogue com um número grande de fontes e em alguns textos faça citações direta das obras e autores evocados, não encontramos referências precisas, pois a recusa de apontar uma bibliografia é uma decisão metodológica apontada por Canclini: “seria contraditório com o sentido deste livro”, afirma.

 E que sentido seria esse? Embora o autor não faça uma reflexão sobre isso de forma explícita, me parece que a própria organização da obra quer apostar em valorizar mais as perguntas que as respostas (“trata-se de que os debates tornem visíveis as incertezas”…de “trabalhar o irresoluto das explicações”), em colocar em xeque o próprio lugar de autoridade do crítico, em expor situações de embaraço com a própria rotina e com os compromissos acadêmicos e em relacioná-los com a produção intelectual tout court.

Enfim, tudo isso aparece na forma do experimento crítico que quer flexibilizar ou contingenciar “precisões acadêmicas”, apontando-as inclusive como obsoletas em tempos de internet, pois “no fim das contas, na época do Google, basta colocar qualquer frase no servidor para ele nos enviar ao lugar de surgimento”.

Ao afirmar que é preciso então recorrer a uma “tormenta de gêneros” para problematizar a prática crítica e a prática do próprio crítico, Canclini parece sugerir um desejo de sair de um certo fazer crítico, de ir tateando na direção de uma inespecificidade que diz respeito não apenas à própria condição discursiva dos textos, que ao tematizarem episódios e identidades reais da vida acadêmica recorrem à ficcionalização, mas à própria condição do crítico como um pensiero debole: “Nem sempre está claro quem fala”, disse-me alguém que leu o rascunho deste livro. ‘Às vezes falta o sujeito’”.

Assim, a incerteza não deve ser encarada como lugar estranho à atitude crítica, mas pode ser  recuperada como ideia basilar, imanente ao próprio fazer crítico, pois como defende Canclini: “falar sob o ponto de vista da academia ou da erudição de uma disciplina não deveria nos poupar dessas dúvidas”.

A incerteza como estranheza é um estímulo a “imaginar novos modos de indagação”.  Em uma era em que as práticas digitais conduzem a um “novo regime simbólico”, não só o fazer crítico pode se reinventar como prática cultural, mas pode nos dar dicas de como encarar os desafios que nosso presente nos impõe.

“Tudo será como agora, só que um pouco diferente”

Luciene Azevedo e Allana Santana

Créditos da imagem:
The Clock by Christian Marclay 2010, 24hrs, Digital, Color, Sound.

Em post anteriores, já falamos da forma do romance-ensaio e tematizamos o caminho que seguimos em nossa investigação que visa identificar em narrativas contemporâneas algumas características dessa forma. Já em seus Ensaios, Montaigne afirmava uma forte ligação entre a construção de seu eu e sua obra e por isso acreditamos que uma porta de entrada para essa discussão pode estar na observação sobre a maneira como um sujeito vai se delineando à medida que a história se desenrola.

Mas como pensar essa relação em uma obra contemporânea? Vamos pegar como exemplo o romance 10:04, escrito por Ben Lerner.

Entrar na leitura dessa obra é como ser arremessado em um turbilhão de situações que à primeira vista negam relação entre si. Nesse sentido, a ideia de trama narrativa parece vacilar, tudo parece muito desamarrado, pois acompanhamos ao mesmo tempo situações que envolvem a negociação de publicação do mais novo romance do narrador (ainda por fazer), os preparativos que envolvem a sobrevivência da população nova-iorquina preocupada com a chegada de duas tempestades, a elaboração de um livro infantil sobre dinossauros e o drama pessoal vivido pelo narrador a respeito da dúvida sobre a doação de esperma para sua melhor amiga, que decide ser mãe a qualquer custo. Os diferentes temas parecem não apresentar relação alguma entre eles e ao mesmo tempo essa desconexão é harmoniosa, sendo amarrada à narração em primeira pessoa e a certa ambiguidade na identificação entre autor e narrador-personagem.

Nas primeiras cenas do livro, acompanhamos o narrador e sua agente literária em um almoço de comemoração pela repercussão da publicação de um conto publicado meses antes na revista New Yorker e que vale ao autor um adiantamento polpudo para escrever um romance que expanda o conto. Já aí, então, começamos a desconfiar da proximidade entre Ben Lerner e o narrador de sua história, a quem a publicação do conto na revista dá certa notoriedade e que também possui um romance aclamado pela crítica. Essa é a trajetória literária do próprio Lerner que depois de publicar livros de poesia, ganha reconhecimento mais amplo da crítica com o romance Estação Atocha e a publicação do conto The Golden Vanity na Revista New Yorker.

Aqui, já imaginamos a careta do leitor e sua impaciência: “mais uma obra em que o autor conta sua vidinha literária…” Mas talvez valha a pena assinalar que embora esse desvendamento do eu, quase sempre de um eu-autor, esteja presente em muitas obras contemporâneas, podemos apostar que os usos da primeira pessoa têm rentabilidade muito distintas. Em Lerner, arrisco dizer que há uma dicção ensaística capaz de produzir uma aliança entre a exposição da voz subjetiva e sua relação com o espaço público, nos termos em que Timothy Corrigan analisa a presença do ensaio na produção de filmes.

Para dar uma ideia melhor da maneira como estamos pensando a presença do ensaio imbricada à ficção em Lerner, vale a pena comentar o episódio em que o personagem principal e sua melhor amiga vão assistir à The Clock de Christian Marclay. A obra é uma montagem que recorta e cola tomadas de relógios ou trechos que mencionam a passagem das horas retiradas de cenas de filmes ou tevê editadas de modo a indicar exatamente a duração do filme no momento que é exibido. Depois de algumas horas dentro do cinema, o narrador checa o relógio, para ver que horas são, depois se pergunta porque teria feito esse gesto, já que o filme, a representação das cenas indica exatamente que horas são, a passagem do tempo durante a própria exibição das cenas. Essa pergunta marcada por certa estupefação do próprio narrador dá origem a uma reflexão sobre a relação entre a arte e a realidade:

“Eu fiquei sabendo que The Clock tinha sido descrito como a derradeira transformação do tempo ficcional em tempo real, uma obra concebida para obliterar a distância entre arte e vida, fantasia e realidade. Mas parte do motivo de eu ter consultado as horas no meu celular foi porque essa distância não havia sido quebrada pra mim; apesar de a duração de um minuto real e a duração do minuto de The Clock serem matematicamente indistinguíveis, eles eram minutos de mundos diferentes. Eu via o tempo no The Clock, mas não estava nele, quer dizer, eu estava experimentando o tempo como tal, não tendo experiências por meio dele como meio. […] Ao consultar o meu relógio para ver uma unidade de medida idêntica à exibida na tela, eu estava indicando que ainda havia uma distância entre a arte e o mundano.”

Nessa escrita semelhante a um “pensar sobre a experiência”, aparece uma reflexão sobre elementos importantes nas discussões sobre a arte hoje, de uma maneira muito particular e subjetiva, cujo efeito produzido na leitura é o de que a subjetividade do narrador, sua constituição como sujeito, vai sendo elaborada junto com o texto. Essa reflexão motiva o personagem a escrever “mais ficção”, e talvez seja o pontapé inicial para as demais reflexões (sobre as diferenças entre a realidade e a arte, sobre o que é se tornar um autor, sobre a exposição de si na literatura atual, sobre estar no mundo) que aparecem na obra. Talvez a chave para compreender essa maneira de estar presente nas coisas refletindo sobre o que é a ficção seja a epígrafe escolhida por Lerner que diz assim:

“Os hassidim contam uma história que diz que no nosso mundo por vir tudo será precisamente como é aqui: Como o nosso quarto é agora, assim será no mundo futuro; onde dorme o nosso filho agora, é onde dormirá também no outro mundo. E as roupas que vestimos neste mundo são as que também vestiremos lá. Tudo será como agora, só que um pouco diferente.”

Em vários momentos, ao longo da leitura, o narrador chama a atenção para pequenos mas sucessivos “rearranjos de mundo” que somos obrigados a fazer no nosso cotidiano e a que vamos nos acostumando na narrativa pela maneira como Lerner explora esse procedimento. Acredito que aqui nesse “procedimento” há algo de semelhante ao que Corrigan chama de “pensamento ensaístico” ao falar sobre a forma do ensaio no cinema. Essa nova lógica de organização expressa no romance também é um convite ao leitor para que assuma um posicionamento diferente diante da obra, da ficção que lê.

Barthes e o romanesco

Luciene Azevedo e Carolina Coutinho

Créditos da imagem: “Personas”, Paulo Bruscky, 1993.

O termo “romanesco” desponta em diferentes textos de Roland Barthes ao longo de sua produção crítica. Mas no final dos anos 70, o termo parece se relacionar ao projeto barthesiano de escrever um romance, ao menos é o que podemos entender lendo as anotações de aula do último curso que ministrou no Collège de France, intitulado A preparação do romance. É, então, à leitura das aulas desse curso, no qual Barthes se propõe a interrogar quais as condições em que se lança um escritor para se arriscar a escrever um romance, que nos debruçamos para pensar um entendimento do romanesco para o crítico. Quanto a proposta do curso, o “futuro autor” faz suas ressalvas: não está empenhado em fazer análises sobre o gênero romance, nem mesmo em extrair uma fórmula sobre como os autores de ontem preparavam/escreviam seus romances, mas em seu próprio empreendimento para escrever uma obra que conecte a literatura com a vida. Assim, segundo Barthes, o curso funcionará como uma preparação para a escrita, “para saber o que pode ser o Romance, façamos como se devêssemos escrever um”.

O primeiro volume de A preparação do romance, que cobre as aulas do primeiro ano do curso (1978-1979), se debruça sobre a anotação e o que ele considera ser a sua “realização exemplar”, o haicai japonês. A partir da leitura desse primeiro momento do curso e das aproximações que faz entre a forma do haicai e a anotação, acreditamos que podemos destacar três pontos principais que parecem formar seu “projeto romanesco”: a investigação sobre uma forma de dizer “eu”, uma atenção ao presente e o que chama de “uma nova prática de escrita”. Barthes nunca aplicou-se com diligência à delimitação rigorosa do que seria o romanesco, assim a noção sempre aparenta ser um tanto vacilante, como se o próprio autor talvez não tivesse exatamente certeza do que queria ou de como realizar seu desejo.

Barthes inaugura sua primeira aula comentando sobre seu processo de mudança após a perda de sua mãe, o acontecimento que inicia o seu “meio da vida”, a consciência da própria mortalidade e o desejo por uma Vita Nova, que é traduzido pelo desejo por uma “nova prática de escrita” que permita um outro modo de tratar a 1ª pessoa, falando de um sujeito fragmentado, uma subjetividade móvel. A discussão sobre esse termo em Barthes nos interessa em especial, pois nos parece que a noção tal como tentamos caracterizá-la a partir da leitura de Barthes, está muito conectada com um modo de falar de si no presente. Explicamos melhor: não é incomum encontrarmos narrativas nas quais acompanhamos a elaboração de uma história que gira em torno da construção de um imaginário desse “eu” (muitas vezes, muito próximo do próprio autor da obra) em relação ao que lhe é “contingente”, aos “incidentes” da vida que, embora percebidos como “coisinhas de nada” (como Barthes descreve a atenção ao banal a que gostaria de se dedicar na escrita de sua obra) poderiam revelar um modo de ver o sujeito que escreve e também o mundo que o cerca.

Assim, o “modo justo de dizer eu” não se esgotaria na exposição da intimidade ou na retórica confessional, mas resultaria em uma verdadeira aventura investigativa sobre uma “formação de imagens do eu” no texto, na vida, no presente.

Acreditamos, então, que tentar caracterizar, a partir das anotações desse curso, a noção de romanesco, pode ser uma chave para problematizar alguns elementos que aparecem de modo muito insistente nas formas narrativas contemporâneas, como a presença da 1ª pessoa, o “vínculo afetivo com o presente” e uma dicção narrativa que incorpora a seu fazer, a própria preparação do que nos conta.

Por que ficção?

Luciene Azevedo

Stephen Gill Untitled, from the series 'Coexistence',' 2010

Créditos da imagem: Stephen Gill Untitled, from the series ‘Coexistence’,’ 2010.

Em um momento em que os mais banais discursos cotidianos expõem os limites cada vez mais indiscerníveis entre a ficção, a mentira e a verdade, qual o lugar do romance, da própria literatura, caracterizados na modernidade por seu estatuto de ficcionalidade?

“A realidade está continuamente superando nossos talentos, e a cultura lança figuras quase diariamente que causam inveja em qualquer romancista”, afirmava Philip Roth, já na década de 60.

Hoje, os romancistas parecem dispostos a assumir uma postura investigativa, escrutinadora a respeito do papel da ficção em seus textos, fazendo de suas narrativas verdadeiros laboratórios de experimentação por se mostrarem insatisfeitos com o estatuto da ficcionalidade firmado ao longo dos séculos XIX e XX, seja porque a realidade parece invasiva, sugerindo ser constituída e justificada por verossimilhanças de forma mais notável do que na própria ficção, seja porque não se trata mais de construir personagens cuja existência tem validade apenas no universo narrado e que não se referem a ninguém em particular, como Catherine Gallagher afirma ser a grande preocupação de Defoe ou Fielding que afirmava que não pretendia “descrev[er] homens, mas costumes; não indivíduos, mas espécies”. Em uma era em que as redes sociais tornam possível que cada um seja personagem de si mesmo, estimulando o “design de si”, para usar a expressão de Boris Groys, as narrativas parecem casar cada vez mais o interesse pelo mundo externo e a construção autopoética de seu próprio eu.

Pensemos, por exemplo, nos dois últimos romances de Javier Cercas em que o autor elege como protagonistas Enric Marco, personagem histórico e polêmico de O impostor (2015), e Manuel Mena de El monarca de las sombras (2017), tio do autor. Nos dois casos, a reconstrução biográfica dos personagens minuciosamente empreendida na narrativa está atrelada à história política da própria Espanha. O narrador, que em O Impostor é nomeado como Javier Cercas, e também reaparece no último romance em terceira pessoa, expõe, quase à maneira de uma conversa mantida com o leitor, as dúvidas sobre o empreendimento de escrita, suas opiniões e reações à vida dos personagens, o empenho investigativo para trazer à tona histórias que não foram contadas.

Assim como parece ter sido importante para a afirmação do novel afastar-se pouco a pouco da exigência de referencialidade, da proximidade com a veracidade, buscando “novas técnicas de não referencialidade”, como observa Gallagher,  para o romancista contemporâneo é importante arriscar-se a outras técnicas de referencialidade para continuar fazendo ficção, o que também pode significar uma mudança da própria ideia do que é manejar a ficcionalidade. Essa mudança, porém, mantém um padrão reiterativo em relação ao momento de afirmação do discurso ficcional. Se, de acordo com Gallagher, no século XVII, o novel buscava “distinguir-se das narrações plausíveis com referentes reais” e não do modelo romanesco fantasioso da idade média, podemos pensar que hoje também os romancistas não querem se opor ou negar o entendimento do ficcional tal como elaborado modernamente, mas se dispõem a redimensionar as fronteiras entre o verossímil e verdadeiro, entre a ficção e o real, entre a narrativa ficcional e a histórica, entre a invenção e o documento, querem reinventar o universo discursivo ficcional. Por isso, talvez, seja tão importante confrontar o realismo do século XIX, cunhado pela distância objetiva do narrador, com o relato pessoal da vida ordinária do escritor, do manejo atabalhoado de uma massa de documentos com a própria natureza do ficcional, entendido como um ato de fingir e inventar, pois o leitor que se depara com uma narrativa desse tipo é obrigado a contrariar uma expectativa fundamental à leitura de romances que sugere que “diante do estatuto cognitivo das representações de um romance, apenas podemos dizer que ‘simplesmente não as julgamos reais’”, como afirma Gallagher ao caracterizar a ficção na modernidade.

Nos livros de Cercas (mas não apenas, pois poderia mencionar ainda os “romance sem ficção” de Patrick De Ville), a última coisa que passa pela cabeça do leitor quando precisa tomar uma decisão de leitura diante da narrativa é a ideia de simplicidade, pois a própria voz narrativa se encarrega de delinear a perplexidade diante das inverossimilhanças comprovadas documentalmente por intensa investigação. Como aceitar como resolução de leitura desses textos, a “impossibilidade de acreditar na realidade daquilo que é representado” (mais uma vez Gallagher), postura adequada de um leitor experiente diante da ficção, pelo menos até bem pouco tempo atrás, se encontramos no universo narrativo o próprio nome do autor, o relato das agruras no embate com a escrita da mesma obra que lemos, a rotina ordinária de uma vida ao lado do que mais parecem anotações para uma obra futura?

O impasse representa talvez o maior desafio diante dessas formas narrativas que não são exatamente ficções, não no sentido que estávamos acostumados a ler o que chamávamos de ficção, e que continuam a despertar nosso interesse, talvez, exatamente por esse motivo.

Saindo da ficção?

Luciene Azevedo

olafur eliasson waterfall 2016

Olafur Eliasson, Waterfall, 2016

 

          Acho que não é possível negar que nós, leitores, estamos cercados por lançamentos literários que acolhem gêneros não literários como matéria prima das narrativas contemporâneas.  Em muitas obras atuais podemos encontrar o flerte com a dicção ensaística que tem o próprio autor como personagem principal do relato ou ainda a exposição processual de construção da obra que parece inacabada e que se expõe precariamente, oferecendo-nos o que parece ser anotações de preparação para a escrita da narrativa. Os exemplos são muitos. Podemos pensar em Machado de Silviano Santiago, que acolhe tranquilamente as duas caracterizações brevemente delineadas acima, mas também em obras que oscilam entre o auto-ensaio e uma dicção tateante em busca de uma forma para contar e que muitas vezes dão a impressão de estarem saindo da ficção, como é o caso de O Impostor do espanhol Javier Cercas.

            Essa impressão já se materializou ao menos ao olhos da indústria editorial e do jornalismo cultural que fazem circular, por exemplo o rótulo  “romance sem ficção” para nomear as produções de Patrick De Ville, que trabalha a partir de uma ampla pesquisa bibliográfica sobre personagens reais. É assim em Viva! em que explora o affair entre Frida Kahlo e Trotsky, por exemplo, ou ainda em Peste e Cólera quando esquadrinha e revela para o leitor as aventuras e a vida de um discípulo de Pasteur, o médico Alexandre Yersin,  mesclando-as às reviravoltas históricas e políticas da passagem do século XIX para o século XX.

            Esse hibridismo nem sempre é bem visto teoricamente. Muitos estudiosos alegam que a aproximação da literatura e mais especificamente do romance com outros gêneros é uma marca da própria ideia de literatura moderna entendida como ficção e não uma caracterização válida para o que chamamos, imprecisamente, de o contemporâneo.

            Para fazer um breve exercício, vamos pensar aqui em um romancista bissexto, Edgar Allan Poe e em sua  A narrativa de Arthur Gordon Pym.  Poe tateia em meio ao momento de afirmação do romance como gênero e da ficção como sua característica legitimadora. Tal como Defoe e seu Robinson Crusoé, Poe precisa se equilibrar entre o livre jogo com a imaginação, ainda encarado com desconfiança, e o fetichismo referencial de seus leitores. É por isso que ora enfrentamos o ritmo alucinado da narração de aventuras mirabolantes, ora somos reféns da certificação, exaustiva, da verdade, do testemunho do narrador que entremeia aí verdadeiras ilhas de informação obcecadas com latitudes e precisões geográficas. Assim, é possível manter o flerte com os relatos de viagem, tão comuns à época, e ao mesmo tempo abrir espaço à ficção e à legitimação do romance como gênero.

            Já que, então, o romance, desde o início, pode ser caracterizado como um gênero sem forma associado a essa capacidade de incorporar outros gêneros (diários, crônicas de viagem e tantos outros), cujo surgimento está intimamente associado à legitimação da literatura moderna entendida como ficção, como poderíamos pensar o hibridismo das formas narrativas contemporâneas?

            Se o argumento de que no momento inaugural do romance o flerte com as formas não ficcionais era necessário para a legitimação da ficção for válido, podemos pensar que no presente a expansão do romance na direção de formas não ficcionais caracteriza uma saída da ficção e implica  um redefinição da ideia de literatura moderna para renovar os impasses à representação?

            Considerando a lição de Borges, e a possibilidade de reconhecer no Quixote de Pierre Menard um outro Quixote, talvez valha a pena investir no escrutínio das  particularidades históricas, sociais e literárias associadas a esse hibridismo em nosso momento atual debruçando-se sobre obras que imbricam projeto literário, a forma do romance e a vida do eu que se conta ensaisticamente, expondo obra e sujeito de forma processual, esboçada, como se a narrativa fosse a preparação da própria obra a fim de considerar se a literatura pode sair da ficção.