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A perda da noção de urgência do HIV/aids em relação à produção narrativa brasileira

Ramon Amorim

Créditos da imagem: Kia LaBeija, Negotiating, 2018

Durante a pesquisa para a confecção da tese, tenho me deparado com uma gama de caminhos possíveis para discutir a questão do HIV e da aids na produção narrativa brasileira. Chama a atenção a reflexão sobre a perda da noção de urgência relacionada à crise de saúde pública que emergiu com a epidemia da década de 1980.

Visando discutir questões relacionadas à produção literária oriunda dos primeiros anos da epidemia, Italo Moriconi estabelece o conceito de “escrita da aids”, tendo a noção de literatura de urgência, associada a uma experiência extrema, como um dos pilares para entender o termo. Nesse texto, publicado em 2006, momento em que já havia a aplicação de Terapia Antirretroviral com relativo sucesso, Moriconi calca seu comentário sobre a morte do autor Caio Fernando Abreu e sobre sua novela Pela noite, primeira produção nacional a fazer referência à aids, ainda no ano de 1983, referindo-se, no  entanto ao período de emergência do HIV e da aids.

É o aumento da eficácia dos medicamentos antirretrovirais que demarca uma nova forma de abordagem dos produtos estéticos na sua maneira de discutir o HIV/aids. As chamadas “Narrativas pós-coquetel”, termo cunhado por Alexandre Nunes de Sousa e apresentado em artigo publicado no ano de 2015, passam a ser a tônica da produção cinematográfica e literária. Considerando os anos finais do século passado como marco histórico que dá início a essa nova forma de ocupar-se da temática aqui citada, o pesquisador cita obras, sobretudo de autores norte-americanos, para indicar como essa nova abordagem aparece.

O que se vê na produção literária a partir da percepção da perda de urgência da abordagem temática da epidemia, é também a perda de centralidade das questões sobre HIV e aids. A partir do momento em que se estabelece que o vírus pode ser controlado com medicação e que assim a doença deixa de se manifestar, transformando-se em uma patologia crônica, como tantas outras, a questão passa a ser abordada de forma colateral, quando não é apagada ou mesmo tratada como temática superada.

Essa discussão ainda carece de reflexão, pois a mudança no manejo do HIV e da aids, com o uso da PREP e da PEP, por exemplo, quase não foi colocada em perspectiva em relação a como a produção narrativa tem abordado a questão. Se a emergência da epidemia e a literatura de urgência, produzida como resposta a esse fato, ofereceram imagens tão contundentes, principalmente pelo protagonismo do vírus e da doença nas obras e nos discursos sobre essa temática, que tipo de imagens estão sendo e serão ainda produzidas diante da perda de centralidade do HIV/aids e da sua perda da noção de urgência, marcada também pelos avanços farmacológicos?

Representações do HIV/AIDS na literatura: ”Narrativas pós-coquetel”

Ramon Amorim

Créditos da imagem: The last supper – Salad (1999), Damien Hirst

Como já discuti em outro post, a descoberta de um conjunto de medicamentos para o tratamento da infecção por HIV possibilitou outros modos de lidar com a AIDS. Essa mudança também é visível no modo de representação da doença pelas produções literárias. Muitos chegam a denominar essas produções como “narrativas pós-coquetel” ou “literatura pós-coquetel”.

Em “Depois de agosto”, de Caio Fernando Abreu, já aparecem menções à descoberta de medicamentos que transformam a representação da doença. Em dois rápidos momentos, a narrativa menciona “drogas pesadas” e nomeia especificamente a zidovudina, primeiro medicamento aprovado para uso no tratamento de infecção por HIV.

De forma diferente ao do conto de Abreu, no romance Nossos ossos de Marcelino Freire, publicado em 2013, a presença do “coquetel” é um pouco mais explícita. Nesse romance, o protagonista, Heleno, um homem que migra do Recife para São Paulo, onde se torna um premiado dramaturgo, “é portador do vírus HIV” e, diferentemente das produções sobre o tema lançadas nas décadas de 80 e 90, lemos que há tratamento para o personagem, pois “já há alguns coquetéis importados”.

Contudo, o modo de abordagem da doença nessa narrativa ainda associa a infecção por HIV à AIDS e à ideia de morte. Isso fica mais aparente quando o protagonista, ao alucinar (talvez porque tenha descumprido o horário estrito de ingestão do medicamento), conversa com um personagem que “morreu de aids”. A presença da morte ronda a menção à doença também na orientação médica recebida por Heleno: “há casos em que o paciente nem sente, sobrevive”, “casos em que os pacientes até hoje não desenvolveram a doença, creia, existe esperança, é preciso paciência, vontade de lutar, viver”.

Os trechos acima parecem demonstrar que mesmo diante dos avanços no campo biomédico, ainda há, em parte da produção literária sobre HIV/AIDS, aquela “sombra” iminente da morte e que algumas imagens muito comuns no passado transitam junto a questões e desdobramentos mais que consolidados no presente.