João Matos
Créditos da imagem: Francis Alÿs’s “Leçon de Musique” (2000).
Minha trajetória nos estudos de literatura contemporânea se inicia a partir do meu interesse pessoal no conceito de autoficção. Ou melhor, na recepção negativa por parte de parcela da crítica e de alguns autores que rejeitam o termo. Era intrigante pensar nesse rechaço entendendo, de forma preliminar, a autoficção como tão só um híbrido entre os gêneros autobiográficos (autobiografia, diário, testemunho, etc) e o romance.
Lendo a fortuna crítica que trata do conceito, foi possível perceber que o rechaço era justificado pela associação do termo à exposição exacerbada do sujeito e à forma “espetacularizada” dos temas tratados nas narrativas em que se podia aproximar narrador e autor. A experimentação com a forma também é um fator que contribui para o rechaço, pois a autoficção é tomada por muitos críticos e autores como uma maneira de escrita do romance despreocupada com a elaboração formal e a linguagem, o que reduziria o valor literário dos textos tratados como autoficcionais.
No entanto, o que se comprovou ao longo da investigação foi justamente o oposto: afinal, a apropriação de outros gêneros textuais, em especial aqueles ligados ao autobiográfico (diários, memórias), pode também propor uma experimentação com as formas. Afinal, o princípio que funda o neologismo francês é o de tensionamento dos limites entre o pacto autobiográfico e o pacto romanesco. Para tanto, é necessário tensionar também as formas próprias de cada pacto.
Foi pensando nessa direção, que a pesquisa enveredou para o entendimento de que as autoficções poderiam ser entendidas para refletir sobre o próprio entendimento do que é ficção. E logo nos demos conta de que o termo, dado seu caráter híbrido, também poderia propor uma reconfiguração do entendimento dos gêneros autobiográficos.
Foi, então, que a investigação se dedicou a refletir sobre as possíveis mudanças que ocorrem no entendimento do autobiográfico, estudando alguns textos clássicos sobre a questão.
A autobiografia é entendida sobretudo como a biografia de uma pessoa escrita por ela mesma, conforme Philippe Lejeune propôs defini-la. Um texto que, a partir do pacto autobiográfico, pretende sistematizar memórias e informações sobre a vida do autor, mesmo que eventualmente ocorram enganos, tendo em vista que reconstruir uma vida de maneira narrativa é uma tarefa complexa.
A partir dessa premissa inicial, utilizamos duas posições teóricas que tematizam os gêneros que falam da vida. O conceito de “ilusão biográfica” de Pierre Bourdieu é uma crítica a ideia da exposição das experiências vividas como um conjunto coerente e orientado de acontecimentos, presentes no relato a partir de uma ordem cronológica, visando estabelecer uma ordem lógica “coerente” à vida contada, resultando, por tabela, numa perspectiva inequívoca de si; já a segunda posição teórica, defendida por Georges Gusdorf, aponta que toda escrita de si acolhe os eventuais deslizes que possam ser cometidos na elaboração escrita do “eu” autobiográfico. Essa é uma oportunidade de o sujeito realizar uma espécie de exame de consciência. A essa atitude, Gusdorf chama de “autenticidade” das narrativas autobiográficas.
Embora distintos, os dois modos partilham da referencialidade (ou seja, da confrontação entre o autor e o narrador do texto autobiográfico enquanto escreve, conta sua vida). Para a ilusão biográfica, os elementos narrados adquirem o valor de “verdade”, ancorando-se na autoridade de quem viveu esses fatos, o autor/narrador. Para Gusdorf, a autenticidade é uma maneira de o narrador mostrar a consciência de que esse ancoramento na autoridade de quem viveu não é necessariamente estático, pois o autor, enquanto “sujeito de criação” da narrativa, move-se entre o que “é” e o que poderia ser, gerando mais dúvidas que certezas a respeito de si mesmo.
Mas é cada vez mais comum encontrarmos posições críticas que atribuem aos gêneros autobiográficos um caráter ficcional, exatamente em virtude da caracterização que Gusdorf dá à autenticidade autobiográfica. No gesto comum de questionar a referencialidade da autobiografia, há uma tendência a encarar essa (re)elaboração de si no relato sobre o eu como ficção. O mais interessante é observar que esse movimento mais aproxima que afasta a autobiografia da ficção.
Como acontece com qualquer investigação, minha pesquisa não pretendeu esgotar as perguntas ou fornecer respostas definitivas. Pelo contrário, deixou ainda mais interrogações, por isso tenho a intenção de pensar essa tensão entre o “eu” autobiográfico e o “eu” ficcional nas produções da lírica contemporânea. Como os autores de poesia exploram esse limiar? Em especial, estou atento às produções da poeta e tradutora Marília Garcia, que em alguns de seus textos parece apontar para uma tensão semelhante a que reconheço no termo autoficção – só que ainda não sei explicar como.