Arquivo da categoria: Diário

Autoficção e performance em Los diarios de Emilio Renzi

Carla Carolina Moura Barreto

Créditos da imagem:  Foto: Jorge Silva/Reuters. Ilustração: Zé Otávio

“[…] me asombro, como si yo fuera otro (y es lo que soy)”
(Ricardo Piglia, em Los diarios de Emilio Renzi)

Ricardo Piglia, um dos maiores escritores argentinos do século XX, registrou sua vida cotidiana em trezentos e vinte e sete cadernos ao longo de cinquenta anos. O escritor os manteve guardados até 2012, quando decide desarquivá-los e dar início a um trabalho de releitura, seleção e reescritura, transcrevendo e organizando seus cadernos, a fim de publicá-los. Assim, os diários do escritor se convertem em uma série intitulada Los diarios de Emilio Renzi, dividida em três volumes– Años de formación (2015), Los años felices (2016) e Un día en la vida (2017) – que trazem em seu interior memórias íntimas e marcas de uma vida atravessada pela obsessão pela leitura e escrita. Os diários, que podem ser lidos como romance de formação, são construídos a partir de fragmentos, recortes, colagens, metalinguagem e duplos (Piglia/Renzi, realidade/ficção, memória/História), mostrando-se híbridos e complexos.

Piglia publica os diários sob a assinatura do assíduo personagem de suas obras, Emilio Renzi, tido pela crítica como seu alter ego, uma vez que o nome do personagem consta no nome completo do autor: “Ricardo Emilio Piglia Renzi”. Além disso, alguns biografemas da vida de Renzi apontam para a persona extratextual de Ricardo Piglia. Com isso, temos o famoso duplo Piglia/Renzi, visível já nas capas dos livros, escritos por um e assinados por outro. Vemos essa cisão eu/outro com mais nitidez na construção do texto de Piglia, que transita entre primeira e terceira pessoa verbal para falar sobre si, resultando em um distanciamento. O autor, que emprega aspas e citação para dar voz a quem escreve o diário, se afasta do texto, descrevendo-se como outro, apresentando-se como um “biógrafo de si mesmo”, o que torna o texto paradoxal. Com isso, Piglia se distancia da autoria e da responsabilidade do conteúdo dos relatos que apresenta, no entanto, não se desvincula completamente, uma vez que ele coloca em cena seu duplo.

Esse jogo textual ambíguo criado por Piglia, que mais se configura como uma espécie de “mascaramento”, confunde o leitor desprevenido que espera ler a história de um “eu” real e aponta para uma performance do autor, que encena um “eu” e se insinua como uma sombra real no texto. Piglia atua em seus diários, como em uma mise en scène. Ele escreve a partir do reflexo que vê em seu espelho, de modo a eleger o que vai ou não inscrever do real que o cerca, algo próprio da escritura performática do diário, segundo o professor e crítico Seligmann-Silva.

Assim, Piglia constrói uma narrativa autoficcional. Ele afasta-se da experiência para refletir sobre ela e atribuir-lhe novos significados, recriando-a e recriando-se como ficção. Desse modo, essas duas personalidades fragmentadas criadas no texto, Piglia/Renzi, se imbricam, se confundem e nos confundem. Com isso, Piglia joga um jogo performático, de afirmação e negação, que afasta o compromisso com a “verdade” e conspira contra a possibilidade de transmitir a realidade, colocando em cena, de maneira mais evidente, o caráter ficcional da obra. Além disso, em Los diarios de Emilio Renzi, Piglia nos apresenta os mecanismos de construção da memória; problematiza a figura do autor; nos mostra a ficção como estratégia de lidar com a realidade; além de nos revelar os bastidores da criação de algumas de suas obras. Assim, ele escreve, também, para manter ativas as lembranças; para que seu testemunho pessoal perdure; para lembrar e ser lembrado, de modo a escrever para si e para outros, “arremessando-se no vazio para que algum leitor o segure no ar”.

Carla Barreto é doutoranda em Teoria e História Literária no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
Publicidade

A experiência da prática

Carolina Coutinho

Créditos da imagem: Duane Michals, Heisenberg’s Magic Mirror of Uncertainity, 1998

No momento atual da minha trajetória de pesquisa, estou cumprindo talvez uma das etapas mais desafiadoras desse processo: como parte dos créditos para obtenção do título, devo atuar como docente em uma turma da graduação de Letras, aqui na UFBA. Exercer a função de professora no contexto da graduação é uma experiência nova que tem se mostrado muito recompensadora e produtiva para refletir teoricamente também sobre minha prática durante o período de pós-graduação, onde me vejo como discente e docente de Literatura. 

Discutir algumas das questões que desafiam a teoria literária no presente é também falar das questões que cercam e motivam minha própria pesquisa. Privilegiar esse diálogo e construir reflexões em grupo tem provocado um movimento autorreflexivo em minhas investigações.

Uma tendência para a proliferação das escritas de si vem sendo tematizada por muitos teóricos como uma dessas questões que circundam a produção literária contemporânea e desafiam os críticos. Um mergulho no eu que brinca com a instabilidade entre o pacto autobiográfico e o pacto ficcional e instiga a dúvida no leitor sobre os limites entre o que é real e o que é inventado dentro da narrativa. Pensar a tensão entre essas esferas é um dos pontos que temos explorado durante o curso.

Um dos textos que estimula essas perguntas em sala é a tese de Diana Klinger, apresentada na UERJ e que depois se transformou em livro. No primeiro capítulo, Klinger faz um breve histórico da escrita de si e mostra um pouco de como a produção de subjetividade e a escrita possuem uma relação muito próxima. Não tem muito tempo, comentei em um post sobre os commonplace books que funcionam como formadores e organizadores do sujeito que escreve, prática também comentada pela autora.

Klinger resumidamente percorre a história das escritas de si desde a Antiguidade Greco-romana até o contemporâneo para reforçar seu argumento de que “a escrita performa a noção do sujeito”. O discurso autobiográfico, constituído na modernidade a partir dessa ligação tão intrínseca, seria o “pano de fundo” para as narrativas que podemos encontrar hoje, tão permeadas pela presença de traços da vida do autor em sua obra.

Assim, explorar as escritas de si significa explorar as noções de sujeito e autor, o que a autora também faz para então amparar um possível “retorno” do autor após a sua “morte” no contexto estruturalista, embora a noção de autoria já não seja a mesma. O retorno do autor defendido por Klinger se afasta dos ideais anteriores da confissão e do depoimento e tempera a forte vontade de falar de si com a impossibilidade de alcançar uma “verdade” através da escrita. A literatura toma para si a forma da autobiografia, mas para apontar sua falha diante de uma nova concepção de sujeito, caótico e fragmentado.

Situando essas considerações em minha pesquisa, como poderíamos pensar a relação desse sujeito com a prática de escrita da anotação? Como podemos ler um tipo de romance que se constitui nos bastidores de sua própria escrita, como é o caso de o Romance Luminoso de Mario Levrero? O diário, as notas da organização da vida para a escrita literária podem ser considerados literatura, estão no domínio da ficção?

Em sala, levantar essas características e transformações gera observações e reflexões inusitadas, exemplos e comparações surpreendentes, até ousados. A partir deles, o curso muda um pouco, se adapta, toma outra forma. Também a pesquisa. A experimentação com a forma dos gêneros autobiográficos pelo romance é um dos meus interesses de estudo, isso é certo, mas quais possibilidades novas serão sondadas até o final dessa etapa?  

Levrero e seu projeto: escrever

Carolina Coutinho

Créditos da imagem: Capa de La novela luminosa, Editora Random House.

Nos últimos posts, comentei algumas questões que rondam minha pesquisa atual. A anotação e a escrita de si no romance contemporâneo são as chaves dessa investigação e busco explorar esses elementos olhando com atenção para um romance em particular: O romance luminoso, de Mario Levrero.

Mario Levrero, escritor uruguaio, ampliou sua circulação na literatura latino-americana especialmente após a publicação póstuma de sua última obra. O romance luminoso aprofunda um movimento que o autor vinha realizando na direção da escrita de si, o que torna possível ler sua trajetória, considerando suas últimas obras, como o que Paula Klein nomeia de “giro introspectivo e intimista”.

Elvio Gandolfo identifica três fases na escrita de Levrero. A primeira, nos anos 60, é marcada pela presença do fantástico e pela influência da leitura de Kafka. A segunda, sua fase porteña, pode ser associada a sua mudança para Buenos Aires e é caracterizada pelo início de seu investimento na forma do diário.

A terceira é marcada pelo seu total mergulho na experimentação com o gênero do diário e com a anotação. A forma do diário passa a ser o elemento estruturador de seus escritos e sua produção volta a atenção para as rotinas de um eu e sua vida cotidiana. Obras como O romance luminoso e Discurso vazio tomam rumos que reivindicam fins terapêuticos e transformadores tanto desse eu como de seu modo de viver e de sua relação com a escrita.

Em O romance luminoso nos deparamos com o projeto de escrita submetido à Fundação Guggenheim para a correção e finalização de um romance começado por Levrero quase duas décadas antes. O prefácio nos informa que a premissa desse “romance luminoso” envolvia a narração de vivências “extraordinárias” que, quando contadas, inevitavelmente pareciam ao autor perder a sua luz e o seu potencial transcendente.

Tendo obtido sucesso com o pleito, Levrero recebe uma bolsa para terminar o romance inacabado. De certa forma, é isso o que lemos na obra, mas também a distância entre o Levrero que ganha a bolsa e o Levrero que começou a escrever o romance inacabado muitos anos antes e própria forma da narrativa é uma evidência disso, pois o que o leitor como a ler é um longo prólogo ao romance chamado de Diário da bolsa. Aí, o leitor acompanha o relato das trivialidades da rotina do narrador (alguém muito próximo ao próprio autor), seus rituais e manias, assim como a tentativa que faz para recuperar as condições internas e de seu entorno que possibilitem a reconexão com o romance iniciado em 1984.

Assim, o livro que o leitor tem em mãos consiste de um prólogo, de 500 páginas, e da forma inacabada do “romance luminoso” que contém 100 páginas e é composto de 5 capítulos quase intocados (desde a primeira versão escrita em 1984) e de um esboço de um sexto capítulo inconcluso deixado como relato independente. Ao final do período de 1 ano de financiamento para a escrita do romance, o que é entregue consiste principalmente em um longo diário sobre a impossibilidade de sua escrita.

Mariana Urti nos conta que, ao submeter o pleito para a bolsa, Levrero escreveu em uma seção dedicada à descrição do projeto para o qual se pede dinheiro apenas “Projeto: escrever”. Podemos dizer que Levrero escreveu um romance? As anotações para escrever são o romance? O romance é o diário que relata os rituais de procrastinação para escrever?

Diários da AIDS (e do HIV)

Ramom Amorim

Créditos da imagem: Robert Mapplethorpe, Watermelon with Knife, 1985.

Apesar de não ser meu interesse imediato de pesquisa e de não dominar o vasto referencial teórico que trata sobre o assunto, tem me interessado perceber a presença de narrativas (auto)ficcionais em formato de diários, principalmente quando estas tematizam a questão do HIV/AIDS na literatura brasileira. Já falei aqui sobre a produção de Gabriel de Souza Abreu (pseudônimo de Salvador Correa), autor de O segundo armário: diário de um jovem soropositivo (2014). Porém, além dessa narrativa, é preciso destacar ainda Depois daquela viagem (2005), de Valéria Piassa Polizzi; Uma vida positiva (2012), de Rafael Bolacha; e A doença, uma experiência (1996), de Jean-Claude Bernardet, mesmo essa última se assumindo como romance (em forma de carta), apesar de uma estrutura interna que pode ser lida como diário.

Unidas pela mesma temática, as obras chamam a atenção pela diversidade em relação às trajetórias autorais. Na sua maioria, os autores se lançam pela primeira vez na escrita de um livro e não têm sequer qualquer experiência com uma produção escrita de maior fôlego. Por outro lado, mesmo depois de 24 anos de lançamento de Depois daquela viagem, Valéria Polizzi continua como a única autora a lançar um livro de relevo sobre a temática do HIV/AIDS, assim como Jean-Claude Bernardet cuja obra ainda é referência para se pensar o tema em relação a pessoas na terceira idade.

Como disse, mesmo que algumas narrativas possam não assumir o gênero diário, é possível identificar nelas as marcas desse gênero autobiográfico: a simplicidade, a liberdade na forma de expressar, a informalidade, o caráter confessional. Para Philippe Lejeune, principal referência no estudo das produções autobiográficas, um diário é formado basicamente, além das características indicadas acima, por um texto com indicativo de data, que registra o que a pessoa que escreve está fazendo, sentindo e/ou pensando. 

Se a produção ficcional sobre HIV/AIDS não oferece tanta diversidade quanto se deseja e espera da exploração do tema, o investimento em uma dicção autobiográfica por parte de alguns autores pode ser uma forma de observar o tratamento pessoal, quase íntimo, sem ser confessional, de expor-se por escrito de uma maneira muito próxima a anotações em um diário. 

O romance, a anotação e muitas perguntas

Carolina Coutinho

Créditos da imagem: Hisaji Hara’s A Study of ‘The Salon’, 2009.

Desde quando comecei a minha trajetória de pesquisa em literatura, o interesse na imbricação de vida e obra nas narrativas contemporâneas sempre capturou a minha curiosidade. Por isso, minha investigação de iniciação científica explorou algumas produções atuais nas quais as escritas de si predominam. Agora, ingressando no mestrado em meio ao turbulento cenário de pandemia, aprofundo esse caminho em um novo momento de investigação.

Assim, busco lançar um olhar atento para a escrita tardia de Barthes, em especial as anotações de seu último curso ministrado no Collège de France, para pensar  sua relação com a prática da anotação como mais do que um mero instrumento que prepara a escrita. Já na iniciação científica, estudando a noção de romanesco em Roland Barthes, pude perceber como a vontade de um olhar diferente para a narrativa em primeira pessoa demonstrada pelo autor nos cursos A preparação do romance está intimamente relacionada com o interesse pela forma da anotação como um possível caminho para uma “terceira forma” do romance que Barthes tanto desejou escrever.

A anotação está mais comumente vinculada à uma etapa preliminar de elaboração de produções literárias, dado que a sua prática geralmente precede as narrativas como uma forma de registro desse processo em cadernetas e diários. Mas, além de sua relação com a fabricação da obra, a anotação em Barthes se relaciona particularmente com a vida ao se colocar como uma “[…] intersecção problemática de um rio de linguagem, linguagem ininterrupta: a vida – que é texto ao mesmo tempo”, entre a vida e a obra. A anotação captura esse presente intenso, mesmo nas sutilezas e banalidades que compõem o cotidiano, aparentemente sem um critério de seleção, sem razão ou juízo.

Recentemente, ao especular sobre a configuração da primeira pessoa nas narrativas contemporâneas, investi na possibilidade de uma “dicção diarística” como chave de leitura para analisar os procedimentos de criação de um eu especulativo, relacionado com o seu entorno e com o caráter fragmentário dessas narrativas. Nesse sentido, o aproveitamento de anotações cotidianas como produto final das narrativas poderia ser um dos sinais de deslocamento do próprio gênero romance quando aproximado às anotações diárias.

Se a escrita de si atualmente tem apresentado uma ligação maior do eu que se narra com o presente da vida e da obra, isso é alcançado pela adoção da anotação como forma? Alberto Giordano observa uma maior disposição da literatura contemporânea latino-americana para a experimentação com o autobiográfico, uma assertiva que paira sobre minhas indagações sobre a literatura contemporânea.

Seria a investida contemporânea numa aproximação do autobiográfico um reflexo de uma aposta na anotação como forma da narrativa, e não como mera etapa da construção do romance? Poderia a prática da anotação estar conectada a uma renovação das interações da literatura com aspectos geralmente considerados como pertencentes às construções autobiográficas, talvez modificando o que entendemos hoje por ficção? Essas são algumas das questões que pretendo explorar neste novo desafio de pesquisa.

O diário e a (não)ficção

Carolina Coutinho

Créditos da imagem: Peter Doig – Walking Figure by Pool, 2011

Minha pesquisa atual tenta delinear o que venho chamando de romance diário.  Embora já tenha tratado disso em posts anteriores, me dei conta, durante esse período de incertezas em que tantos escrevem os diários de suas quarentenas, de que explorei pouco a forma do diário como gênero autobiográfico.

Após anos dedicando-se a estudar os gêneros autobiográficos, Philippe Lejeune afirma que propositalmente deixou de lado o diário, mas o crítico não só passou a pesquisar sobre essa forma, como também manteve um diário como parte do processo de sua investigação.

Para o autor, o diário é, antes de tudo, uma atividade, uma prática, um “modo de viver”. Como prática, o diário é irregular e não possui nem uma forma única nem objetivos únicos. Por vezes diaristas escrevem em cadernos, outras em folhas soltas. O diário pode ser escrito para o eu que o escreve ou para um interlocutor imaginário; pode incluir imagens, passes de metrô ou outras lembranças do dia.

Como texto, o diário é mais próximo do manuscrito do que do livro, mais próximo da lógica do hipertexto que da linearidade dos livros mais convencionais. Em seu furor de caracterização, Lejeune afirma que diários são repetitivos, descontínuos, fragmentados e neles cabem diversos temas, o que indica uma tendência a divagações tangenciais. As repetições e as variações ficam ao sabor do ritmo de escrita de cada diarista e, segundo Lejeune, isso pode se tornar um problema para o leitor, pois ele encontrará na leitura das entradas muitos implícitos e a ausência dos pontos de referência.

São essas características que fornecem a síntese para a definição do diário pelo crítico: uma série de descontinuidades organizadas de maneira contínua. Uma série de traços que registram um momento, sempre datado, que podem trazer imagens, uma atividade discreta de coleta de vestígios que serve à reflexão, à memória, ao gosto de escrever.

Em The diary as “antifiction,  Lejeune afirma ter criado o termo antificção porque se irrita muito com a compreensão de que a autoficção realça a inventividade dos autores no tratamento que dão aos dados biográficos para criar uma narrativa de si mesmos. Muitas vezes, diz o crítico, o que se chama de autoficção é apenas um modo de escrever a autobiografia dando voltas para chegar à “verdade”, estimulando a dúvida no leitor.

A preferência teórica pelo termo antificção é justificada porque Lejeune diz que prefere  ler textos que se comprometem com o enfrentamento com a “verdade”, que é o que faz o diário na sua opinião. Assim, o diário, como forma exemplar de escrita do presente, rejeitaria a ficção.

Mesmo determinado a tentar separar as esferas da “verdade” e da ficção, da vida e da literatura, Lejeune reconhece que o diário pode ser entendido como um gênero capaz de promover a inovação das formas narrativas, ainda que não se arrisque nessa direção.

E é essa afirmação que interessa à minha investigação sobre a existência de uma possível forma de romance diário.

Diário, não diário

Carolina Coutinho

Créditos da imagem: Chair, de Kim, Seung Young e 김승영, 2011.

Como venho tematizando em meus últimos posts, meu projeto de pesquisa atual está voltado para a investigação de uma certa apropriação do que seria uma “dicção diarística” por algumas das produções literárias atuais, resultando em narrativas voltadas para uma escrita de si exploratória de uma intimidade vacilante a partir da relação desse eu com o seu entorno.

Eu meu último post, comentei um pouco sobre o romance Algum lugar, de Paloma Vidal, e busquei explorar inicialmente como essa produção poderia ser lida ao pensar em sua relação com o uso de alguns dos procedimentos comumente atribuídos ao diário como uma maneira de renovar a escrita de si. Diante desse primeiro comentário sobre o romance de Vidal, acredito que outro projeto da autora também poderia ser interessante para a investigação que estou conduzindo.

Em seu site pessoal, a autora caracteriza o projeto Lugares onde não
estou como:

“diário poético que começou a ser escrito em 2010, no blog
http://www.escritosgeograficos.blogspot.com, é uma experiência literária plural: misto de crônica e diário, poesia e prosa, forma uma espécie de relato de viagem, com textos postados originalmente no meio dos afazeres cotidianos. A descoberta do mundo pelas crianças, as dúvidas e sonhos, o vivido e o imaginado, o visto e ouvido ganham um outro olhar nesses relatos que revelam uma inquietante familiaridade. 4 livros foram publicados a partir deste blog, cada um com 50 postagens: “Durante” e “Dois” (7letras, 2015); “Wyoming” e “Menini” (7letras, 2018).”

A partir da descrição oferecida pela autora, já podemos observar como o caráter experimental da forma literária é colocado como ponto central desse “diário poético” indefinido, identificado com uma mistura de formas, lançado em uma plataforma própria dos blogs. Esse experimento literário é, assim como o romance, marcado pela própria mistura dos papéis exercidos por Vidal: autora, mulher, mãe, professora, pesquisadora e crítica literária.

Pensando em especial na seleção feita pela autora para a publicação dos quatro livros originados das postagens no blog, é possível perceber a predileção por captar a simplicidade por meio de observações e anotações do que é “visto e ouvido” em meio ao cotidiano que se registra em boa parte das postagens:

precaução
antes de cair 
na piscina
a moça faz 
o sinal da cruz” (wyoming, p.25)

Esse espaço literário experimental parece possibilitar um espaço para também explorar o íntimo de uma forma sutil, uma investigação da própria identidade a partir da tentativa de evocar o outro e de colocar os questionamentos do eu num espaço externo, como proposto pela narradora do romance “Constato que se não tenho um espaço meu do lado de fora, meus pensamentos não me pertencem” (Algum lugar, 21).

“[…]
‘nenhum lugar jamais nos pertence’.
quem fala é outro.
a dor é minha.” (durante, p.14)
OU
eu
aquela mulher
com dois filhos” (durante, p.32)

E ainda assim, entre os pequenos flashes do cotidiano, vestígios do dia tão caros ao diário tal como Lejeune afirmou sobre esse gênero, a predominância da presença das crianças, os registros de leitura, o recorte e cola de trechos de outras obras, bem como a inclusão de hiperlinks e imagens (presentes apenas no blog), são marcas do que estou considerando chamar de escrita diarística. Tal denominação no entanto não é capaz de resolver com segurança esse projeto de escrita como um diário online. Apesar de alguns procedimentos semelhantes, o caráter de teste com a forma, em especial literariamente, realiza uma evasão do procedimento de anotação de um diário pessoal, como “discutido” dentro dos próprios posts, em especial por meio da (auto) análise (de si e do próprio experimento):

Ceci n’est pas un journal” (durante, p.49)
“Se isto fosse um 
diário 
eu não saberia 
nem por onde

começar 
mas como é preciso 
ser breve 
basta consignar 
meu acting out 
e sair” (menini, p. 40)

Pandemia e literatura

Marília Costa

Créditos da imagem: Escritório em uma pequena cidade, Edward Hopper, 1953/ Reprodução Wikiarte

Nesse cenário quase pós-apocalíptico de medos e incertezas diante da pandemia que assola o mundo e das providências para tentar conter a transmissão do covid-19 e evitar o colapso no sistema de saúde, notamos uma movimentação das editoras, dos autores, e dos críticos e teóricos na tentativa de se manterem ativos no campo, adequando-se às novas circunstâncias e ferramentas digitais. Ricardo Lísias tem oferecido um curso de literatura francesa contemporânea através de lives no Instagram. A poeta Marília Garcia vem ministrando oficinas online no youtube de escrita criativa em parceria com a editora Companhia das Letras e o escritor Leonardo Villa-Forte ministra oficinas de criação literária online pelo aplicativo Zoom em colaboração com a Casa Contexto. Além disso, muitas editoras e plataformas como a Companhia das Letras e a Amazon estão disponibilizando parte do seu acervo literário digital gratuitamente a fim de incentivar as pessoas a ficarem em casa.

Eu gostaria, contudo, de comentar mais detidamente o projeto “Leia em casa” do blog da editora Companhia das Letras que vem  publicando periodicamente “Diários do isolamento”, produzidos por autores como Jarid Arraes, Fábio Moon, Luisa Geisler e muitas outras vozes que narram suas experiências no contexto da pandemia e do isolamento social. Os relatos, apesar de multifacetários, dialogam entre si e produzem um discurso coletivo sobre essa vivência nova experimentada não só pelos escritores, mas por toda a sociedade. Esse empreendimento fomentado por uma das maiores editoras brasileiras me levou a recuperar algumas inquietações da deliberação barthesiana sobre a conveniência de manter um diário de escritor, ou seja, o valor daquilo que se escreve nessa condição, se seria digno de publicação ou não. “Deveria escrever um diário com vistas à sua publicação? Poderia converter o diário em uma ‘obra?”, Barthes se interroga.

Um diário de escritor é aquele texto que, sem abrir mão de registrar o íntimo ou o particular, é espaço para mostrar a junção entre vida e anotação. O exercício de manter um diário coloca em xeque para os escritores dilemas inerentes ao procedimento literário, pois combina os impasses da linguagem com o desafio de representar elementos da vida. Barthes percebe na prática do diário um encontro entre a escrita pessoal e a elaboração da obra literária, vendo na prática diária da anotação características comuns à literatura como a imaginação e o fetichismo da linguagem, presentes tanto no exercício biográfico quanto na ficção.

Procedimentos on-line muito utilizados por influenciadores digitais, blogueiras e youtubers são cada vez mais presentes na atuação dos escritores nas redes. Se, na literatura como em outras artes, o século XXI é considerado uma época de grande valorização da intimidade, um período de verdadeira obsessão pelo vivido, em que muitos autores têm investido na exposição da intimidade como matéria literária, como a exposição nas redes no período de isolamento social pode potencializar a criação de poses e transformar a figura do autor e os textos que esses autores produzem?

A anotação diária, o exercício com o fragmento de escrita e o ensaio de si podem ser pensados também como um laboratório que testa novas formas de contar e  funciona como experimentação com a autofiguração do escritor.

O romance, o diário em “Algum lugar”

Carolina Coutinho

Sally Mann (American, born 1951), Semaphore, 2003, gelatin silver print.

Minha investigação atual está interessada em refletir sobre o número cada vez maior de obras que se aproximam do que poderia chamar de uma “dicção diarística”, ou seja, de ficções que se parecem com um diário, cujas características poderiam ser o fluxo e o ritmo de anotações que acompanham a rotina cotidiana, a dicção pessoal, a atenção ao banal.

Foi assim que comecei a ler Algum lugar, romance escrito por Paloma Vidal em 2009. A narradora, que não recebe um nome, muda-se para Los Angeles para escrever sua tese de doutorado. Esse mote fornece também uma estrutura para o romance que parece se aproximar do ritmo da escrita de um diário, pois vamos acompanhando o dia a dia da personagem, suas impressões, suas frustrações, pequenas alegrias e descobertas: “Nossa vizinha colombiana comprou uma gata, apesar da proibição de ter animais no prédio”; “M trocou o dia pela noite: janta diariamente às 3 da manhã”.

Muitos pequenos fragmentos separados graficamente por espaços vazios na página podem funcionar como entradas, à maneira de um diário, pois ainda que não datadas, deixam perceber uma cronologia bem marcada.

Embora esteja tentando justificar porque li a narrativa de Vidal aproximando-a à forma do diário, não é exatamente a simulação de um diário que busco identificar, mas sim o aproveitamento da forma desse gênero biográfico como porta de entrada de algumas ficções produzidas no presente para explorar uma intimidade vacilante, não investida puramente de uma subjetividade narcisista.

Um romance que se aproxima da maneira de escrever um diário não se esgota apenas na anotação de contingências e pode ser um bom artifício para investigar um modo de dizer o eu frente ao mundo e à vida, um método de escrita que se dá a ver em processo: “ o movimento da caneta sobre o papel me guia por um circuito que assim deixa de ser totalmente estranho para mim”, como diz a narradora.

Me arriscaria a dizer que é possível ler na própria construção da narrativa um investimento na escrita íntima nos moldes em que Barthes a desejou. O procedimento narrativo de alternância entre a primeira, a segunda e a terceira pessoas que permeia e molda todo o romance poderia ser interpretado como um deslocamento para uma multiplicidade de eus, assumindo uma forma de contar de si como algo mais que mero umbiguismo, abrindo a possibilidade de se estar “contando a história como se não fosse dela”, como lemos em um dado momento da narrativa.

Uma outra pista para essa leitura poderia ser a diversidade de temas abordados nas anotações que compõem o romance. Mais do que apenas idiossincrasias e um fluxo de acontecimentos do que poderia ser um diário pessoal, privado, a narradora está ligada ao mundo e ao seu entorno, buscando se relacionar com o território e seu contexto político, como na única entrada datada do romance sobre uma matéria do jornal sobre a guerra do Iraque.

Lendo as entrevistas concedidas pela autora, sabemos que Vidal também esteve em Los Angeles durante o período em que escrevia sua tese de doutorado. Essa convergência entre vida e ficção também poderia referendar a aproximação entre o gênero diário e a forma romance. Esse embaralhamento das fronteiras, cada vez mais presente hoje, e não apenas na literatura, também é um problema para a narradora que não sabe como responder à pergunta que lhe parece uma charada sem resposta: “por que você mistura tudo?”

Assim seria possível pensar que apelar a um gênero biográfico como o diário, por exemplo, para provocar uma fricção com o literário, pode significar uma vontade de experimentar contar em primeira pessoa sem voltar às armadilhas do século XIX.

Romance que é diário

Carolina Coutinho

Créditos da imagem: Rossana Feudo, La maschera e il volto

Pensando na relação complexa que Barthes manteve com o gênero diário e em como certos aspectos dessa tensão parecem fazer parte do nosso cenário literário contemporâneo, comecei a investigar as relações entre o diário e o romance, para testar a hipótese de que algo da forma do diário está presente em muitos romances da atualidade.

Em The Diary Novel, Lorna Martens propõe investigar o que seria um diary novel, um tipo de narrativa ficcional que se vale de traços da forma dos diários. Para a autora, o diário, como escrita de si, não visa a um leitor específico, é um gênero que cultiva o segredo e que registra os acontecimentos vividos pelo autor. Martens afirma que é interessante pensar como a ficcionalidade se vale das características desse gênero (auto)biográfico e as contraria. Na sua opinião, a escrita de um romance diário implica sempre na preocupação com um leitor imaginado e adentra uma zona de reflexão sobre a própria escrita, que está ausente no diário “puro”.

Martens está trabalhando sob a premissa de que é possível fazer uma distinção fundamental entre a primeira pessoa do diarista real e do diarista ficcional. Um romance que se vale da forma do diário seria marcado pela falta de correspondência entre o diarista ficcional e o autor. Enquanto o diarista “real” escreveria sobre si, para si, o diarista ficcional (um personagem da narrativa) é uma criação do autor do romance (que assume a forma de um diário), ou seja, estamos diante da velha proposição de que o narrador não é o autor.

Ainda assim, escrevendo em 1985, Martens já levanta considerações sobre as narrativas que colocam em xeque as fronteiras, já não muito estáveis, entre realidade e ficção, e sobre o uso da forma do diário como um terreno fértil para produções interessadas em problematizar a distinção entre autobiográfico e ficcional, apontando não somente exemplos contemporâneos, mas também exemplos mais antigos, de quando essa distinção era, se não bem resolvida, menos problemática. Apesar desse movimento, a autora ainda considera que esses sejam casos limítrofes e aposta na diferença intrínseca entre a primeira pessoa não ficcional (própria ao diário como gênero autobiográfico) e a ficcional (própria das narrativas literárias).

Pensando em minha investigação, essa proposição abre janelas para diversas reflexões: como essas interações são modificadas em um momento em que diversos diaristas passam a escrever seus diários na internet, através de blogs, e essa escrita, antes secreta, passa a contar com interlocutores? Vivemos um momento em que há uma incidência mais alta de autores que brincam com essa correspondência entre autor e narrador em primeira pessoa e ainda assim reivindicam para o que escrevem a condição de literário? Será que é possível pensar o mergulho da vida na obra, a mistura entre essas primeiras pessoas, entre autor e narrador, não apenas como meras exceções, como aponta Martens, ou dignas apenas de descrédito ou acusações de narcisismo, motivo constante de preocupação para Barthes?