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Autoficção: Eu, Dor e Glória

Marília Costa

Créditos da imagem: Imagem do filme “Dor e Glória”, dirigido por Pedro Almodóvar.

O termo autoficção foi forjado pelo francês Serge Doubrovsky em 1977 na tentativa de definir o próprio romance Fils que foi considerado como autobiográfico e ficcional ao mesmo tempo. O vocábulo tem dado certo em diferentes cenas artísticas como, por exemplo, filmes, peças teatrais, performances, poemas, contos, etc. Recentemente, o termo autoficção apareceu no filme “Dor e Glória” do cineasta Pedro Almodóvar.

Na narrativa cinematográfica, Salvador Mallo, o personagem principal, interpretado por Antonio Banderas, é um importante cineasta que está afastado das filmagens por motivos de saúde. Assim como Almodóvar, Salvador anda sempre com óculos escuros, o que dá indícios de uma possível fotofobia, sofre com dores de cabeça e passou por uma cirurgia na coluna: a enorme cicatriz ganha destaque na primeira cena do filme, na qual Salvador aparece nadando em uma piscina. Outros elementos que misturam vida e ficção estão presentes no filme. Por exemplo, o figurino usado pelo personagem principal é composto por roupas do próprio Almodóvar, assim como uma parte do cenário é a reprodução da casa do cineasta. Ficamos sabendo desses “detalhes” porque podemos recorrer a informações que estão espalhadas na rede em entrevistas ou comentários sobre o filme.

Mas, apesar dos elementos biográficos presentes na obra, se nos apoiarmos na Poética de Aristóteles, é fácil concluir que o filme de Almodóvar não se limita a retratar o que aconteceu na realidade, não narra a história de Pedro Almodóvar pessoa civil e sujeito empírico, tal como vivida pelo cineasta, mas sim o que poderia ter acontecido. Essa é uma característica marcante que o distancia da realidade e o aproxima da ficção, inscrevendo a obra no que estamos nos acostumando a chamar de autoficção. O autor é e não é o narrador, conta e não conta a sua vida, fala e não fala a “verdade”, uma mistura de autobiografia e ficção.

Embora o termo autoficção esteja sendo utilizado pelos escritores que se assenhoram da expressão para caracterizar suas próprias obras e o mundo acadêmico esteja atento para apurar, sondar e indagar essa esfera teórica, há quem acredite que o vocábulo está sendo banalizado pelo uso excessivo da palavra autoficção no contemporâneo, que acaba por desgastar o termo quando o mesmo é atribuído indiscriminadamente para designar uma heterogeneidade de produções textuais, tornando-se uma espécie de “passe-partout” como pontua Jovita Maria Gerheim.

Essa questão é problematizada no filme “Dor e glória” de Almodóvar em uma das cenas em que a mãe do personagem Salvador Mallo afirma ao filho que não gosta da autoficção, não gosta que ele a retrate ou retrate suas amigas em suas obras. Ele questiona se ela sabe o que é autoficção e onde ela ouviu esse termo, ela revela que tomou conhecimento do termo a partir de uma entrevista que o cineasta deu para uma revista. A cena indica a popularidade que o termo vem ganhando, mas também sugere a facilidade com que confundimos a autoficção com a escrita biográfica, quando esquecemos que a autoficção, embora também lide com ela, deseja “eludir a própria incidência do autobiográfico na ficção e tornar híbrida a fronteira entre o real e o ficcional”, como afirma Luciene Azevedo.