Arquivo da categoria: Literatura Contemporânea Brasileira

Entre exposição e recolhimento

Luana Rodrigues

Créditos da imagem: Imagem registrada pela fotógrafa Mariana Vieira Elek e retirada do perfil no Facebook da autora Natalia Timerman.

No final de 2022, investi em uma pesquisa de iniciação científica que se propunha a explorar as nuances da autoria contemporânea, com um foco particular na escritora Natália Timerman. Além de sua carreira como psiquiatra, ela já havia dado vida a três obras: Desterros: histórias de um hospital-prisão, publicado pela Editora Elefante em 2018; Rachaduras, pela Editora Quelônio em 2019, e seu primeiro romance Copo Vazio, pela Todavia em 2021). Desde o início dessa investigação, a pesquisa teve como objetivo observar os trânsitos entre a atuação da autora na internet e  a  construção de um mundo ficcional acompanhando suas publicações (sobre isso falo em algumas outras publicações aqui no blog). A análise  indicou uma possível guinada autobiográfica, ou seja, uma mudança em direção a uma narrativa mais autobiográfica, na qual a autora se aventuraria a explorar aspectos mais pessoais e biográficos em sua exposição pública.

Durante o período de criação de seu mais recente romance, intitulado As Pequenas Chances, mudanças sutis se desenharam em sua trajetória. Timerman passou a compartilhar, de maneira mais frequente, fotografias e relatos acerca de seus pais, com um foco especial em seu pai, que já havia falecido. A partir desse momento, uma clara transição se delineou, tanto no tom de suas publicações, que se tornaram mais pessoais, quanto no gênero literário do novo livro que estava por vir. Hoje, estamos cientes de que o livro em questão se insere no universo do romance autoficcional, abordando temas de família e luto, com um enfoque especial na experiência de Natália, a autora que também assume o papel de personagem/narradora, diante das complexidades da perda e da memória.

Essa transformação nas postagens nas redes sociais e na temática de suas obras revela também uma interação entre elementos de sua vida pessoal e sua criação literária. É um mergulho profundo na fusão da realidade e da ficção, um território onde a narradora e a personagem se entrelaçam em uma dança intrincada, criando uma rica tapeçaria de reflexões sobre a vida, a morte e as histórias que tecemos a partir delas.

A análise sobre a atuação da autora em suas redes e de sua trajetória literária aponta para uma percepção muito consciente de Timerman de questões que são as de nosso tempo e também estão presentes no campo literário: não apenas a exposição autobiográfica do autor, mas também a exposição da intimidade na internet. Como pesquisadora doutoranda que se dedica ao estudo de autores que colocam em xeque o nome do autor, como Knausgård e Ferrante, Timerman expõe suas inquietantes dualidades: o anseio pela exposição e o desejo pelo recolhimento. Poderíamos pensar que sua incursão no terreno da autoficção em sua mais recente obra é mais um elemento que confirma essa ambivalência, já que o termo é calcado no pacto ambíguo que pede aos leitores para identificar e ao mesmo tempo não identificar autor e narrador/personagem.

Assim, publicando uma autoficção, Timerman parece ter encontrado um terreno fértil que acomoda as ambiguidades que permeiam sua jornada autoral. Este movimento representa, igualmente, um gesto de negociação em relação à exposição de sua própria imagem como autora, como se ela estivesse buscando um equilíbrio delicado entre o revelar e o ocultar, o pessoal e o ficcional, na construção de sua obra e também na construção de seu nome como autora.

Resenha de As pequenas chances, mais recente livro de Natalia Timerman

“é preciso estar pronta para escutar as pequenas chances que o passado dá…”

Luana Rodrigues

Créditos da imagem: Ana Elisa Egreja. Natureza morta com ovos, 2023. Obra de arte concebida especialmente para a capa do livro As pequenas chances.

 “A morte é abstrata mas dói em detalhes concretos, e essas duas instâncias, a concreta e a abstrata, nunca se encontram, daí a estranheza”.

Após imergir nos sentimentos que permeiam os relacionamentos contemporâneos em Copo Vazio, Natália Timerman agora se aventura por um outro caminho, narrando em seu novo livro uma ausência ainda mais difícil. Em As Pequenas Chances, Timerman explora a tensão entre a ficção e a vida, desfiando as lembranças que envolveram a morte de seu pai e o nascimento de seu primeiro filho: “parir é partir: ir embora de si mesma, e então poder chegar de novo depois de morrer”. As páginas desta obra esculpem um caminho sinuoso que vai do luto profundo à celebração da vida, no qual as lembranças e o amor se entrelaçam como fios de um tecido emocionalmente denso.

As Pequenas Chances se desdobra em três capítulos que adotam uma tonalidade por vezes ensaística, tecendo uma intricada mescla do pessoal e do coletivo. Nas duas primeiras partes da obra lemos a intensidade dos sentimentos de luto, acompanhamos a autodescoberta de Natália e o retorno angustiado da irmã Gabi que, do outro lado do mundo, espera chegar a tempo de ver o pai com vida. A terceira parte vai ao encontro da dimensão coletiva da narrativa. Nessa etapa, a trama desloca-se para o panorama mais abrangente da história judaica, numa tentativa de traçar as linhas que conectam não apenas a família de Natália, mas também diversas outras famílias judias que encontraram abrigo no Brasil no início do século. Através dos emaranhados da realidade e da ficção, as lacunas da história coletiva e as memórias do pai de Natália podem tornar-se presença viva.

A narrativa nos conduz, então, desde as tentativas da protagonista de encontrar uma ordem interna diante da inescapável realidade da morte de seu pai até a jornada de Natália, personagem central, através de terras romenas e ucranianas em busca de uma possível reconstrução das memórias de seus avós. Esses avós, judeus que emigraram para o Brasil antes da Segunda Guerra Mundial, surgem como figuras que continuam a ecoar no tecido de sua existência e nas páginas desta narrativa multifacetada.

Assim, a autora, através de sua escrita, encontra uma voz que ressoa na intensidade de seu próprio luto, uma voz que reverbera na tessitura das palavras que constrói. O eu narrativo se manifesta como um agente ativo, utilizando a escrita não apenas como um meio de expressão. A narrativa explora os matizes da perda e reelabora a própria subjetividade da protagonista a partir da consciência brutal da mortalidade: “A morte é abstrata porque nunca vivemos o tempo todo na presença de alguém. A ausência das pessoas faz parte da vida, sempre se dá, cotidianamente; nada indica que seja definitiva dessa vez. A pessoa estava longe porque ia trabalhar, viajava, ficava na sua casa ou dormia. Tudo está mais ou menos no mesmo lugar, vive-se na mesma cidade, a mesma rotina, então a consciência repentina e aleatória que nos assalta de tempos em tempos, de que a ausência agora é definitiva, causa também algum tipo de culpa, como se, ao nos depararmos com o definitivo da morte, a estivéssemos provocando de novo”.

“Alguém sabe quem eu sou, alguém espera por mim”

Lílian Miranda

Créditos da imagem: Cena do filme “Marte um” de Gabriel Martins

Meu primeiro contato com o termo afropolitanismo foi durante o desenvolvimento do meu último projeto de pesquisa da iniciação científica, que terminou no ano passado. O pensamento filosófico do autor camaronês Achille Mbembe em sua obra Crítica da Razão Negra põe em xeque a noção de raça e a compreende como “uma ficção útil de uma construção fantasista ou de uma projeção ideológica cuja intenção é desviar a atenção dos conflitos antigamente entendidos como mais verossímeis”.

 A crítica construída por Mbembe sugere que, enquanto construção social, negro é uma classificação relacionada a uma condição de existência subalternizada, uma categoria a quem foi negada humanidade. Para o autor, essa percepção econômica se inicia quando o negro é transformado em mercadoria , “a cripta viva do capital” e segue firme diante do curso neoliberal globalizado. A terminologia “negro” é uma invenção que só significa para simbolizar o “ser-outro”, ligado principalmente à relação de senhor e escravo. 

O trabalho teórico de Mbembe aponta para saídas possíveis a esse cenário que apostam numa realidade futura sem a carga negativa atribuída à raça, “mas isso só seria possível por meio da justiça, da restituição e da reparação”. Atrelado a isso, a noção de afropolitanismo é entendida como uma forma de ser no mundo, uma estilística ou tomada de posição política e cultural que recusa a identidade vitimizadora.

Desde que pensei o afropolitanismo como uma chave de leitura para o livro Um Defeito de Cor, tenho buscado outras obras que optem por um deslocamento da condição de negro vinculada a uma epistemologia branca e colonializada. Nas últimas semanas, pude ler e assistir dois trabalhos que contam histórias centradas em explorar subjetividades, sonhos e personagens-sujeitos negros e desejantes.  

 Sonhei com o anjo da guarda o resto da noite, de Ricardo Aleixo, autor e poeta intermídia, é um livro de relatos pessoais que contam sua infância em Campo Alegre, bairro periférico de Belo Horizonte, mas também narram experiências que o formaram como artista, relações e influências que foram fundamentais para sua identidade como poeta. Embora tenha explicitado na capa o subtítulo “Memórias”, o livro se apresenta quase como um conjunto de ensaios que reúnem reflexões teóricas, interpretações de poemas do próprio autor, e não dispensa uma linguagem literária e poética para relatar os acontecimentos de sua própria vida.

Em entrevista ao podcast “Página cinco”, episódio 148 “o menino que o sistema literário não conseguiu deter”, Aleixo explica que o livro foi resultado de uma sugestão do editor. Seu processo de escrita de uma “memória imaginante” tratou de selecionar os acontecimentos que ele considerou que seriam interessantes para seus leitores e o representavam enquanto artista que se considera afropolita e faz parte do que chama de áfricas dispersas, num sentido de dispersão, como utilizado na botânica (noção próxima à ideia de áfricas espalhadas, que ele atribui a Sheila Walker).  Ao ser questionado sobre os entrelaçamentos entre memória, realidade e ficção, Aleixo responde: “penso que a própria circunstância de ter me tornado escritor numa família pobre na periferia de Belo Horizonte já tem seu quê de ficcional”

Outra produção a ser lida que pode deixar ainda mais claro o modo como Mbembe  pensa o afropolitanismo é o premiadíssimo Marte um, filme de Gabriel Martins. Lançado originalmente no Festival Sundance 2022, o filme retrata a vida de uma família mineira de classe média baixa vivendo no Brasil de 2018 logo após a eleição do ex-presidente Bolsonaro (embora o filme não tematize em primeiro plano esse evento).

Deivinho quer ser astrofísico, enquanto isso, seu pai Wellington sonha que ele entre para um clube de futebol profissional, ao mesmo tempo Eunice, a filha, vive uma paixão e surge nela o desejo de sair de casa, já a mãe, Tércia, sofre com as consequências de uma experiência traumática que lhe ocorreu numa lanchonete. Ainda que se centre num núcleo familiar composto por pessoas negras que vivem com algumas dificuldades financeiras, esse não é o foco da história, cada personagem tem sua própria trajetória e camadas que os constituem, com dilemas complexos referentes a seus próprios sonhos e desejos, tratados com leveza e sensibilidade, numa trama que não propõe soluções mas desenrola numa teia de relações humanas que simboliza bem o que é a própria vida.

Entendo que histórias como essas enunciam um discurso em que a raça não se dissocia dos eventos narrados mas deixa de ser o foco principal. Tanto em Um defeito de cor e Sonhei com o anjo da guarda o resto da noite  quanto em Marte Um emergem gestos autorais que podem ser entendidos como afropolitanistas e desejam contar histórias que subvertem o determinismo ditado pela lógica colonial que ainda insiste em imperar sobre o imaginário brasileiro.

“O que vejo na foto quando olho para ela?”

Samara Lima

Créditos da imagem: Saia da frente do meu sol (2023), de Felipe Charbel

Em O trabalho das imagens: conversações com Andrea Soto Calderón (2021), Jacques Rancière aponta que não devemos reduzir a imagem visual a uma semelhança  com o referente ou ao produto de uma ação intencional que meramente desfila seu sentido diante dos olhos de espectadores imponentes. Mas, sim, que devemos pensá-la como algo que resiste, cria deslocamentos por seu aspecto performático e que, muitas vezes, escapa da própria vontade daquele que gostaria de predeterminar seu efeito.

A leitura do livro me interessa justamente pela discussão da imagem fotográfica como uma operação ativa, um saber que foge à prescrição e à representação, que almeja atingir uma dimensão imaginativa e redefinir as noções de legibilidade e visibilidade, possibilitando outra forma de apreender o real. Enquanto a representação tende a imobilizar e fixar os sujeitos retratados em categorias que os definem e submetem, a figuração revela o quão difícil (até mesmo impossível) é reter os sujeitos e suas experiências em uma imagem ou obra.

Segundo Rancière, a fabulação de imagens está relacionada à ficção e uma das principais formas de reivindicação de uma visibilidade muito mais complexa do que está visível é procurar interrogá-las de maneira mais demorada, sempre explorando a tensão entre a realidade e a aparência. É dessa maneira que conseguimos perceber as fraturas e os intervalos necessários ao olhar e à interpretação.

O desafio de desarmar o olhar e fazer trabalhar o imaginário diante da imagem visual me fez lembrar o mais recente livro de Felipe Charbel, Saia da frente do meu sol. A obra é uma investigação sobre a história de vida de seu tio “esquisitão” e doente, Ricardo, que morou de favor no quartinho dos fundos do apartamento de sua família durante cinco anos. O autor lança mão de documentos, fotografias (de seu tio encontradas no armário de sua avó) e uma dose de ficção para tecer conjecturas sobre sua vida anterior ao passo em que escreve sobre si e sobre o “fracasso” que é narrar o outro.

A cada encontro com o acervo de fotos de Ricardo, o narrador indaga: O que vejo na foto quando olho para ela? ou, ainda, O que me interessa nessas fotos?. É a partir desse gesto conversacional que ele busca interagir com a imagem, nivelando-se a ela, a fim de observar o que a superfície apresenta (as pessoas retratadas na cena e como elas se relacionam entre si, suas poses e vestimentas, o ângulo e o ambiente em que se encontram) para especular e construir uma versão sobre quem seu tio pode ter sido. Um aspecto interessante é que o autor parece compreender que não é possível capturar completamente o que é expresso, pois diversos sentidos escapam ao espectador, consentindo, assim, com a ficção constitutiva da fotografia. E, nesse jogo de incertezas, as fotos presentes na obra ampliam ainda mais a obscuridade em torno de Ricardo e de sua vida enigmática.

Assim como os autores, eu gostaria de prezar a ambiguidade como uma propriedade da imagem fotográfica, interpelar o que vejo, mas também fabular junto com elas e a partir delas, no decorrer da minha pesquisa que proponho a ser desenvolvida no mestrado, em que almejo estudar a relação (e tensão) entre foto e narrativa nas obras L’usage de la photo e Os anos, de Annie Ernaux.

Sobre a fotografia transversa

Samara Lima

Créditos da imagem: Duane Michals, The spirit leaves the body, 1968

Em seu livro Fotografia & Poesia (afinidades eletivas) (2017), o crítico e poeta Adolfo Montejo Navas, dentre tantas outras coisas, comenta que cada vez mais a fotografia contemporânea vem assumindo uma nova relação com o real, cujo foco encontra-se em articular um maior espaço para o imaginário em detrimento do estatuto de verdade. Pensando nessa nova maneira de entender a imagem visual, Navas traz um conceito bastante interessante: fotografia transversa.

O conceito está pautado na ideia de que as imagens do presente buscam romper com os limites impostos que predominam em boa parte da teoria da fotografia. Já comentei que a imagem fotográfica, desde o seu surgimento, foi compreeendida como captura da realidade, servindo ao uso documental, à informação e à memória e valorizada por seu status de autenticidade.

Nesse contexto contemporâneo de dissolução das fronteiras entre as diferentes linguagens, em que cada vez mais as artes tensionam a especificidade de seu meio, seria interessante pensar em um deslocamento da fotografia para fora de um certo modo de compreensão de seu funcionamento. Segundo Navas, a fotografia transversa é pensada a partir de um trânsito entre o que está dentro e fora da imagem fotográfica e procura formas de hibridização artística em favor de uma visualidade mais viva, mais contaminada. A aposta do crítico sugere que as imagens do presente distanciam-se da esfera representacional, a fim de apostar em outras intenções estéticas e contextualizações que proporcionem outras funções simbólicas.

No decorrer do livro, o autor se debruça sobre fotografias que nomeia como plásticas, aquelas construídas não só a partir da exploração de truques técnicos que visam tornar a foto difusa, mas principalmente por meio de intervenções de outras práticas artísticas, como a pintura. Ainda que as imagens fotográficas reproduzidas no meu corpus ficcional não sofram tais intervenções, acredito que a reflexão proposta pelo autor possibilita diversas maneiras de lidar com a maioria das imagens presentes nas obras ficcionais contemporâneas.

Como vimos nos posts anteriores, as fotos de infância de Isabela Figueiredo e da cidade de Lourenço Marques buscam jogar com a ideia da imagem como prova e superar a mera confirmação do pacto autobiográfico. O fato é que elas são utilizadas como artifício de uma prática ficcional. Gostaríamos de apostar, então, que a transversalidade da foto está na relação e tensão que ela mantém com o texto literário ou com o próprio lugar em que se insere em meio à narrativa. Ao embaralhar as noções de ficção e realidade e não compactuar com o dizível, a fotografia questiona seu caráter de registro indiscutível e permite significações múltiplas, abrigando experiências que, muitas vezes, estão além da própria imagem.

A lógica de Kassel são as experiências que a arte proporciona

Allana Santana

Créditos da imagem: William Kentridge: The Refusal of Time, 2012.

Vila-Matas é um escritor conhecido por produzir “textos híbridos que mesclam diferentes gêneros”. Em Não há lugar para a lógica em Kassel, Vila-Matas escreve sobre sua visita à Documenta 13, considerada um dos maiores eventos de arte contemporânea do mundo sediado em Kassel, na Alemanha. O livro parece uma mescla de ficção, ensaio e relato de experiência e apresenta muitas imagens que parecem sugerir maneiras de interpretar a obra. Esse experimento parece similar ao que Sussekind chama de OVNI, ou objetos verbais não identificados, expressão que é empregada por Christophe Hanna ao tratar “dos processos, dos contextos, e do funcionamento crítico de certos experimentos literários de difícil classificação”.

Sob uma ótica similar, outro termo interessante é cunhado por Florência Garramuño ao comentar que obras com esse padrão promovem “desenquadramentos (…) e parecem compartilhar um mesmo desconforto em face de qualquer definição específica ou categoria de pertencimento em que instalar-se”.

Descrito a partir dessas categorias, o livro de Vila-Matas pode parecer que impõe um obstáculo à leitura. Entretanto, sua escrita é simples, se assemelhando a uma conversa ou à leitura de um relato facilmente encontrado nas redes sociais. Mas essa mesma fluidez da leitura pode caracterizar um obstáculo, pode constituir uma estranheza e desestabilizar a maneira como estamos acostumados a ler o que se entende como literatura, desde a modernidade.

O livro parte do convite de Carolyn Christov-Bakargiev e Chus Martínez, organizadoras da documenta 13, para a participação de Vila-Matas em uma intervenção no evento. O convite é para que ele se coloque à disposição por algumas horas em um restaurante chinês, nas cercanias do parque Karlsaue. Esse seria mais um dos muitos eventos simultâneos que aconteceriam durante a Documenta 13.

O comentário sobre a arte contemporânea, a menção a muitas das obras, como The Invisible Pull, de Ryan Gander e This Variation, de Tino Sehgal, e a reflexão sobre o que é visto na exposição são o principal ponto que reforça a inespecificidade da obra, como já mencionado. Muito da obra comenta as próprias impressões que o escritor tem ao se deparar com as instalações, como no comentário sobre a obra Untilled, de Pierre Huyghe:

A fumaça foi a primeira coisa que vi quando, em um caminho enlameado, começamos a nos aproximar da curva do parque onde se encontrava untilled, a incrível e inesquecível instalação de Huyghe. Terras a serem aradas, lavradas, sulcadas? O que mais pude apreciar, nessa minha primeira de muitas visitas a esse espaço que tanto me perturbou, foi a profunda estranheza do lugar. Era impossível ficar indiferente ali. […] O artista francês tinha conseguido transformar uma zona de jardim francês, ou seja, uma zona da ordenada natureza do parque, em uma espécie de espaço em processo de construção/desconstrução; um processo paralisado no tempo, com elementos vivos e inanimados.

Esse comentário também é uma posição de Vila-Matas sobre a arte contemporânea, pois segundo o narrador o público deve experimentar a “lucidez de assumir que quando menos entende tudo [o que acontece], melhor entende”. Vila-Matas sugere, então, que não é recomendável se aproximar da produção contemporânea com uma lógica pré-definida.

Outro aspecto importante é a presença de um jogo entre personagem e autor, um procedimento associado à autoficção, pois autor e personagem partilham o mesmo nome e a ida a Kassel aconteceu de fato e é matéria da narrativa:

“Dado o meu hábito inveterado de escrever crônicas sempre que me convidam para ir a algum lugar estranho para que lá eu faça algo de singular (com o tempo, me dei conta de que, na verdade, todos os lugares me parecem estranhos), tive a impressão de estar vivendo mais uma vez o começo de uma viagem que poderia acabar transformando-se em um relato escrito no qual, como era comum, mesclaria a perplexidade e a vida em suspenso para descrever o mundo como um lugar absurdo aonde se chegava através de um convite muito extravagante.”

Dessa forma, Não há lugar para a lógica em Kassel apresenta eixos de compreensão que configuram a obra como um exemplo de múltiplos procedimentos da literatura recente e que podem orientar a leitura. O comentário sobre a arte, a forma estranha de sua composição e o jogo autoral parecem dar uma marca particular à narrativa, cativando e intrigando o leitor.

A fotografia como “documento de ficção”

Samara Lima


Créditos da imagem: Francesca Woodman – Space², Providence, Rhode Island, 1976. 

No meu post anterior, comentei que a pergunta inicial da minha pesquisa diz respeito ao estatuto da imagem fotográfica na cena literária contemporânea. Nesse sentido, encontrei na obra Depois da fotografia: uma literatura fora de si (2014) de Natalia Brizuela uma boa contribuição para meu estudo, uma vez que a autora analisa o cruzamento entre a literatura e as outras artes, em especial, a fotografia.

A crítica argentina pontua que o dispositivo fotográfico, desde o seu surgimento, não era visto como criação, mas como um instrumento capaz de reproduzir com “fidelidade absoluta […] tudo o que fosse exposto ao olho observador” da máquina. Por conta disso, inicialmente, a fotografia esteve a serviço das ciências, do jornalismo e das instituições devido à crença na imagem como “prova incontestável de que determinada coisa aconteceu”, como afirma Susan Sontag, em seu livro Sobre fotografia (2004).

Mas, em outro momento do mesmo livro, Brizuela tece uma discussão sobre como as transformações decorrentes dos novos usos da fotografia, preocupadas em inseri-la no campo artístico, na segunda metade do século XX, permitiram um deslocamento do seu estatuto “como portadora de uma verdade documental” para o caráter inventivo da imagem. Nesse sentido, dando por certo que a fotografia é um dispositivo capaz de desarticular relatos e expor as contradições das representações, a autora se debruça sobre diversas produções de escritores latino-americanos visando entender como a fotografia aparece em meio à escrita.

Um dos exemplos comentados é a obra Shiki Nagaoka: una nariz de ficción de Mario Bellatín. Aí, o leitor é apresentado a uma biografia fictícia de um escritor obcecado pelo imbricamento entre a linguagem, a literatura e a fotografia. O livro também traz um dossiê fotográfico. O leitor é atraído para a armadilha de considerar as imagens fotográficas como cópia fiel da realidade, acreditando que as imagens confirmam o que está sendo narrado. Porém, também é possível ficarmos alertas para o fato de que se estamos diante de um relato ficcional, a fotografia também pode apontar para um deslocamento e ser tratada como um “documento de ficção”.

É certo que, cada vez mais, os autores contemporâneos utilizam a fotografia como meio de exploração de outras linguagens. Considerada mero registro documental ou como artifício de uma prática ficcional, é instigante pensar em como esses autores questionam e embaralham as noções, antes tão bem definidas, de ficção e realidade. E é essa incerteza, segundo Natalia Brizuela, que o “terreno da ficção” instaura, apoiando-se na potência imaginativa da imagem.

“Tantas fiz”: os vários retratos de Ana Cristina Cesar

Raquel Galvão1

Créditos da imagem: The swan collective. O começo do fim do mundo (2007)

Eucanaã Ferraz, ao organizar Inconfissões: Fotobiografia de Ana Cristina Cesar (IMS, 2016), propõe a exposição de um álbum daquilo que não se revela (o íntimo), assumindo, previamente, a obra como “um documentário errático e parcial”. Trata-se de um teatro fotográfico extenso e imperfeito? Limitado, mas raro!

Para quem pesquisa Ana Cristina Cesar, a obra funciona como um acesso facilitado à parte do acervo pessoal da escritora, que sai dos arquivos do Instituto Moreira Salles para vir a público com um tratamento editorial sofisticado e uma tiragem inicial restrita a 3 mil exemplares. Como registro do percurso de uma poeta, tradutora, professora e pesquisadora, observando a relação com sua época (Brasil, décadas de 1970 e 1980) e classe (média, intelectual), a fotobiografia oferece, à primeira vista, o movimento de curiosidade em torno dos retratos de família e de viagem. Mas sua potência, para os estudos acadêmicos, está na presença de documentos históricos (publicações em jornais, edições da geração marginal, fotos de happenings e lançamentos de livros) e da cronologia sobre a formação e a atuação de Ana Cristina Cesar no campo da cultura, traçada por Elizama Almeida e Manoela Daudt.

Com a pretensão de gerar comentários sobre algumas fotografias de Cesar, a edição se coloca entre o pessoal e o artístico, publicando textos inéditos do círculo de amigos de sua convivência e de outros escritores e intelectuais contemporâneos. Marcos Siscar, respondendo à proposta do organizador, expõe uma descrição criativa e, ao mesmo tempo, filosófica sobre um dos retratos de Ana Cristina Cesar, uma espécie de perfil contraluz em relação à janela de um apartamento (Foto de Cecília Leal, 1979), a partir do qual reflete: “Se a nomeação do mundo se dá pelo contorno, o contorno de um sujeito é seu perfil. O perfil é a assinatura visível de um corpo. O sujeito perfilado não é aquele que abre mão do sujeito real, mas que coloca em primeiro plano a questão de uma possibilidade.”. Frequentamos, então, a escritora, cuja assinatura já é conhecida no campo literário brasileiro, amparados por retratos de diversos e novos ângulos. Variados corpos, em momentos distintos da infância até a fase adulta, fazem saltar na leitura a experiência literária e o sentido precoce da poesia na vida.

A edição da fotobiografia desemboca em uma exposição técnica da intimidade? Fora da academia, para os apreciadores e amantes da produção da escritora, a obra possibilita a entrada em um ambiente pessoal, em uma narrativa biográfica composta por fotogramas, mas, como sugere Siscar, a representação da autora dada pelos retratos também aponta para o desejo de se reinventar literariamente, sujeito real, sujeito inventado.

CESAR, Ana Cristina. Inconfissões: Fotobiografia de Ana Cristina Cesar. Organização e prefácio de Eucanãa Ferraz – São Paulo: IMS, 2016.

1 Raquel Galvão é doutoranda em Teoria e História Literária (Unicamp). Pesquisa “A crítica jornalística de Ana Cristina Cesar”, é bolsista FAPESP e realizou um sanduíche na Sorbonne Université em 2019.

A autorrepresentação do negro e o retorno do recalcado

Samara Lima

Créditos da imagem: Surreal Portraits – Henrietta Harris

Já faz algum tempo que não é novidade afirmar que os grupos marginalizados foram objetificados e representados na literatura brasileira a partir de visões que destoam da sua realidade social. Domício Proença Filho em A trajetória do negro na literatura brasileira (1998), por exemplo, discute o percurso do negro nas produções literárias e a forma como esses sujeitos foram estereotipados por meio de análise dos personagens de obras, tais como o conto “Setembro” do livro O corpo vivo (1962) de Adonias Filho. Aí, o personagem tomado para análise é a figura do escravo fiel, que encarna o símbolo da antiviolência.

Por outro lado, também não é rara a afirmativa de que a contemporaneidade vem sendo marcada por um contexto de efervescência cultural e política em que movimentos sociais buscam repensar diversas estruturas da sociedade e discursos cristalizados no imaginário coletivo. O campo literário brasileiro, que também se constitui enquanto esfera de produção de discurso, não fica imune a tais tensões.

O fato é que a disputa por representatividade nas esferas sociais e pela autorrepresentação põe em xeque, no cenário da literatura brasileira, as representações negativas fixadas pela tradição literária. Dessa forma, os sujeitos negros, que na historiografia literária foram apresentados sempre sob tutela, subalternizados e, muitas vezes, excluídos da representação, buscam manifestar em seus escritos o comprometimento com a etnia, uma vez que a manifestação literária tem a capacidade de (re)inventar positivamente essas tantas identidades.

Pois bem. É esta postura que os estudos culturais identificam como o retorno do recalcado, o retorno da identidade negra que por muito tempo foi recalcada no âmbito cultural ao condenar qualquer referência às características físicas e culturais dos negros.

É pensando na ideia de que cada vez mais esses sujeitos buscam e afirmam em suas obras a sua condição na realidade brasileira que meu plano de pesquisa atual utiliza-se do termo Recalque, criado por Sigmund Freud para caracterizar um mecanismo de defesa que se baseia na repressão da memória de eventos passados dolorosos.

O que chamamos, portanto, de retorno do recalcado diz respeito ao posicionamento afirmativo cada vez mais recorrente na literatura brasileira recente por parte dos escritores afrodescendentes como Cidinha da Silva, Cristine Sobral e Geovani Martins que reafirmam nos textos literários que produzem valores importantes para sua identidade racial.

Minha pesquisa, então, visa entender como esses escritores, por meio da literatura, discutem problemáticas da sociedade brasileira, como o racismo, e noções, não raras vezes estereotipadas, de identidade. 

Quando os caminhos da pesquisa e da sala de aula se cruzam

Milena Tanure

Créditos da imagem: Locked, Victoria Ivanova.

Partindo das bases da narratologia e da teoria da lírica, tentei certa vez em sala, na busca por análises mais elaboradas de meus alunos, diferenciar narrador, eu lírico, personagem e autor…e essa foi a oportunidade perfeita que minha aluna de 14 anos teve para, com sua formação leitora, sem uma discussão teórica sobre o pacto ficcional de Lejeune ou as discussões sobre a autoficção, questionar: “Mas na literatura contemporânea há uma equivalência de nomes entre narrador e autor em vários livros, professora!”. É bom observarmos que aí não há um questionamento, mas uma convicção de leitora. No mesmo sentido, falando sobre aspectos biográficos de certo autor brasileiro, a aluna manifestou que tal história estava parecendo uma fanfic…termo, aliás, muito citado pelos jovens alunos que, no espaço das redes, se reconhecem autores e grandes leitores.

Escrevo esse relato no blog em um momento em que o trabalho de sala de aula parece se sobrepor ao exercício da pesquisa e quase que impossibilita as investigações da pesquisadora. Nesse momento de angústia, me deparo com situações e falas em sala de aula sobre a literatura brasileira que me devolvem ao campo da investigação e me deslocam de lugares comuns, como a falaciosa percepção de que só na academia se desenvolve o fazer científico em toda a sua constituição. Não é a sala de aula também o espaço para se pensar a literatura brasileira contemporânea? Não é a ação docente espaço para se questionar a publicação e circulação de obras entre jovens leitores?

As inquietações do trabalho docente, para além de me colocarem diante do
debate sobre o contemporâneo e a literatura, me fez relembrar uma postagem nesse blog da professora Luciene Azevedo intitulada O professor e a  literatura. A postagem problematizou os lugares da literatura e da teoria literária na formação docente, bem como a formação leitora dos estudantes de letras e futuros professores de literatura e língua portuguesa. Em especial, me chamou atenção, naquela oportunidade, não apenas o modo pelo qual a leitura literária não é uma prática comum na vida de muitos alunos de Letras, mas sobretudo como as colocações deles costumam ser no sentido de apontar a formação escolar como um dos grandes fatores que contribuíram para isso.

As colocações dos estudantes apresentam como a experiência no ambiente
escolar cria, muitas vezes, uma relação quase que traumática com a leitura literária. Além da leitura obrigatória e avaliativa dos paradidáticos, a literatura ainda costuma ser apresentada “como um conjunto enfadonho de nomes de autores, datas, características de períodos literários e pouca ou quase nenhuma experiência de leitura dos próprios textos apresentados a eles como literários”.

Há, então, um círculo vicioso na medida em que, estudantes de letras desestimulados para a leitura tornam-se professores que, muitas vezes, dominam a teoria e a historiografia, mas não conseguem avançar na discussão do próprio texto com os alunos, deixando de oferecer a eles a possibilidade de construirem uma leitura. Mas há também um outro lado da questão: o professor também pode negligenciar a formação leitora de seus alunos, e isso não significa apenas desconhecer os bestsellers pelos quais eles se interessam, mas, sobretudo, negligenciar o fato de que os alunos leem o que lhes chama a atenção. Nesse aspecto, cito a inocente surpresa que tive em algumas aulas ao me deparar com alunos que leem desde os clássicos europeus à literatura brasileira e norte-americana dos nossos dias sem que isso seja uma exigência da disciplina. Em que pese tal realidade não seja a regra – obviamente que não tenho essa utópica percepção- ela nos coloca diante do fato de que há uma formação leitora que nos instiga a pensar a literatura produzida em nossos dias, assim como os modos de leitura dos sujeitos contemporâneos.

Pensando o agir da pesquisa e a ação docente, relato, ainda, como os alunos,
reconhecidamente leitores, apresentam indagações e colocações sobre a literatura brasileira contemporânea. Ao falar sobre as escolas literárias, por exemplo, sempre surge a pergunta sobre qual seria a escola de agora e quais as características da produção do contemporâneo. Nesses momentos, retomo o lugar da pesquisa e, conforme afirmou Suely Rolnik em palestra proferida no concurso para o cargo de professor titular da PUC de São Paulo, percebo que o pensamento “[…] não é fruto da vontade de um sujeito já dado que quer conhecer um objeto já dado, descobrir sua verdade, ou adquirir o saber onde jaz esta verdade; o pensamento é fruto da violência de uma diferença posta em circuito, e é através do que ele cria que nascem, tanto verdades quanto sujeitos e objetos […] Assim, neste tipo de trabalho com o pensamento o que vem primeiro é a capacidade de se deixar violentar pelas marcas […]”. Nesse ponto, distanciada, em tese, do fazer acadêmico, identifico cada vez mais como o meu objeto de pesquisa, o fazer literário, atravessa, também, o fazer docente e pode se fazer provocativo em diferentes cenários e circunstâncias.