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À leitora com o livro na mão: um ano sem Sylvia Molloy

Ludine Alves1

Créditos da imagem: Imagem retirada da entrevista “Retazos – Una conversación con Sylvia Molloy” realizada pela University of Bergen em 2019. (https://vimeo.com/357527188)

Considerei pela primeira vez a escrita de uma autobiografia quando li Citas de Lectura, de Sylvia Molloy. Neste livro, publicado em 2017, a escritora argentina narra sua vida através dos momentos marcantes que compartilhou com os livros e com a leitura. Não quer dizer que em todos os pequenos ensaios que compõem o volume a autora trate exclusivamente de histórias marcantes que leu nos livros, ou de como determinada narrativa lhe incutiu este ou aquele sentimento. Antes, aborda a maneira como a leitura lhe formou a personalidade e, sobretudo, como o objeto livro e o ato de ler, tão fundamentais em sua trajetória pessoal e profissional, são indissociáveis do contar de sua própria história.

Me pareceu genial a ideia de escrever memórias cujo fio condutor fosse a literatura: o fato é que já li muitos livros e, assim como Molloy, poderia escrever sobre o primeiro romance que li, sobre alguém importante que me presenteou com um livro há muito desejado, sobre um personagem do meu livro favorito, sobre aquela vez em que peguei um livro emprestado na biblioteca da escola e, por ter gostado muito, nunca devolvi. Quando quis escrever essa minha autobiografia de livros, lembrei de uma frase que li certa feita no prefácio da edição brasileira de Léxico Familiar de Natália Ginzburg, escrito por Alejandro Zambra: “É impossível lê-lo sem imaginar este outro livro próprio que ainda não existe, mas que deveríamos, por pura gratidão, escrever.”

No último 14 de julho, completou-se um ano do falecimento de Sylvia Molloy. De herança, ela nos deixou riquíssimas contribuições no que diz respeito à crítica literária hispano-americana, dois romances, além de uma porção de livros com teor autobiográfico/memorialístico, pequenos em extensão, mas de profundidade e complexidade inquestionáveis. Sua obra é marcada por questões de identidade, pertencimento, memória, gênero e sexualidade, e, claro, pelo amor pelos livros. No prefácio de Vale o escrito: a escritura autobiográfica na América Hispânica, uma das publicações mais conhecidas da autora, Silviano Santiago diz que a obra de Molloy é “um elogio ao livro, à literatura e à leitura, independentemente das considerações sobre barreiras geográficas ou linguísticas.”

Por pura gratidão, como disse Zambra, quis escrever meu próprio Citas de Lectura, mas não levei o projeto adiante. Apesar disso, inicio em breve a execução de outro projeto que parte da leitura de Molloy: uma pesquisa de mestrado cujo objetivo é investigar de que maneira o livro e o ato de ler aparecem na obra autobiográfica da autora argentina, como essa “solicitação do livro” se relaciona com sua própria produção crítica acerca da autobiografia hispano-americana, e de que forma esta estratégia textual instala sua produção em meio às possibilidades para a produção autobiográfica contemporânea.

Apesar da sua partida há um ano, triste aniversário que motivou a escrita desse texto, sinto grande contentamento pela possibilidade de trabalhar com uma obra tão valiosa e relevante, que contribuiu e seguirá contribuindo não apenas para a análise e compreensão da literatura e da autobiografia contemporânea, mas sobretudo para a sua apreciação. Ao dar os primeiros passos na minha jornada como pesquisadora, em meio às inseguranças e incertezas, encontro algum conforto na ideia de que estudarei a obra de quem se dedicou à literatura, primeiro, por amor: Sylvia Molloy, que antes de ser crítica literária, escritora, professora, foi, e em seus livros será para sempre, a leitora com o livro na mão.

1 Ludine Alves é mestranda do Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura da UFBA,e seu projeto investiga a solicitação do livro na obra autobiográfica de Sylvia Molloy. É bacharel em Letras (Língua Estrangeira Moderna) pela mesma universidade. Durante a graduação, foi bolsista de iniciação científica (FAPESB), tendo desenvolvido uma pesquisa sobre práticas inespecíficas no espaço biográfico contemporâneo.