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“Uma nova forma de escrita?”

Carolina Coutinho

Créditos da imagem: Untitled, Felix Gonzalez Torres, 1991

Como comentei em meu último post, o projeto barthesiano de escrita de um romance parece estar bastante vinculado a uma nova forma de falar do “eu”, de criação de um eu através da escrita, de um escrever que possa fazer emergir um outro, estrangeiro desse “eu”, na sua relação com a vida, com o presente. Para Barthes, uma parte importante dessa escrita afetada (“escrevo me afetando no próprio processo de escrever”) é a distinção entre o íntimo e o privado.

Quando primeiro me deparei com essa separação, “a regra = oferecer o íntimo, não o privado”, comecei a tentar observar qual seria o entendimento de Barthes sobre essa “regra”, qual a necessidade de fazer essa discriminação. Em uma conferência no Collège de France, Durante muito tempo, fui dormir cedo, Barthes lê a obra de Proust a partir de uma sintonia com o momento no qual se encontra, o “meio do caminho da minha vida”. Essa conferência aconteceu algumas semanas antes do início do primeiro momento do curso A preparação do romance, e, de certa forma, adianta alguns dos pontos que serão abordados durantes as aulas.

Barthes anota: “Vou então falar ‘de mim’. ‘De mim’ deve entender-se aqui pesadamente: não é o substituto asseptizado de um leitor geral […] É o íntimo que quer falar em mim, fazer ouvir o seu grito, em face da generalidade, da ciência.”

Barthes então fala sobre o luto da perda de sua mãe que o conduz a esse “meio da vida” e o motiva a uma pulsão de escrita, a uma “nova prática de escrita”.

Observando a incidência das narrativas de si em diferentes gêneros, considero que a distinção feita por Barthes entre o íntimo e o privado pode ser interessante para pensar a forma de exposição do eu nas narrativas contemporâneas. Segundo Barthes, o privado é o substituto asseptizado que é autorizado a ser exposto, uma esfera mais aberta e artificial. Não é por isso que ele se interessa, mas sim pelo que chama de íntimo que define como uma zona incerta do próprio sujeito, que ao tentar se aproximar dela ao falar de si, encontra sempre uma falha, uma falta. Barthes deseja escrutinar isso, que caracteriza como uma dimensão visceral, sem ceder ao sentimentalismo. Quer falar de si sem censura, dos pequenos “incidentes” que causam uma perturbação, de uma certa sensibilidade corporal, de um “sujeito disperso”. Nessa redefinição do que é falar do íntimo, Barthes aposta em uma forma de transformação do autobiográfico.

Talvez um exemplo dessa escrita possa ser encontrado em A invenção dos subúrbios, de Daniel Francoy, um livro quase diário-quase crônica, que mais parece um conjunto de anotações que brincam com a recorrência do olhar atento ao entorno. Nessas anotações, emergem relatos íntimos, e me refiro aqui à definição barthesiana, afetados por eventos do cotidiano que geralmente não se revelam dignos de nota, mas de alguma forma provocam, movem esse sujeito observador, ativam suas memórias, divagações, sensibilidade.

“Muitas vezes o que me fica de uma leitura ou de um filme é um detalhe absolutamente incidental […] Prefiro a vida mínima, quieta, respirável, muito embora todos os dias tenho a sensação de acordar para um universo que vem (mas não vem) abaixo, aquela sensação de falta de ar enquanto se respira, aquele sentimento de crispar os dentes porque se tem um nevoeiro diante dos olhos”

Fica a pergunta: seria possível ler nos incidentes anotados por Francoy, a “nova prática de escrita” tão desejada por Barthes?

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