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Sobre a madeleine e o trabalho com as lembranças.

Antonio Caetano

Créditos da imagem: (fonte: internet)

Jeanne Marie Gagnebin,  no ensaio O rumor das distâncias atravessadas, recupera do romance No caminho de Swann elementos importantes e o compara a outros dois textos inacabados do próprio Proust, um “romance de sensações”de título Jean Santeuil e o prefácio de um livro de ensaios de crítica literária, o Contre Sainte-Beuve. A comparação acontece em relação ao famoso episódio da madeleine em que o narrador de Proust, ao comer o bolinho, desencadeia uma avalanche de lembranças que constituem a obra Em busca do tempo perdido. Segundo Gagnebin, os textos inacabados de Jean Santeuil estão repletos de momentos de procura e de descrição de “reencontros felizes entre sensação presente e sensação passada”, que remetem aos sentimentos provocados pelo “acaso”, como o episódio da madeleine. 

Já no prefácio de Contre Sainte-Beuve há um episódio muito semelhante ao da madeleine como narrado No caminho de Swann. Em uma noite fria de inverno, o narrador vivencia um rompante de lembranças, de odores e gostos que o transportam aos dias em que passava as manhãs em sua casa de campo. Porém, tal momento se dá após a degustação de uma torrada molhada no chá, não de uma madeleine. 

Dessa forma, Gagnebin aponta que o No caminho de Swann difere tanto do ensaio quanto do “romance de sensações”, mas que, simultaneamente, 

os reúne, misturando em sua composição os gêneros literários do ensaio e do romance, da autobiografia e da ficção, criando uma unidade nova e essencial para a literatura contemporânea, na qual reflexão estética, invenção romanesca e trabalho de lembranças confluem e se apoiam mutuamente (GAGNEBIN, 2006, p. 148).

considerando, assim, os textos inacabados como parte integrante e ativa de No caminho de Swann. Além disso, em vista do seu caráter autobiográfico e ensaístico, a teórica afirma que em No caminho de Swann é empenhada uma luta contra o tempo e contra a morte através da escrita. Gagnebin também assinala que os “acasos” da madeleine e da torrada empenhados por Proust representam algo muito maior, algo  que não depende da nossa vontade para que nos atravesse, e que, exatamente por isso, demanda um olhar treinado, um olhar que já está esperando por um acaso como aquele, que exercita uma seleção de “provas” que deixam o olhar mais apto para acolher esse “acaso” e suas consequências.

Aproveito, então, para tomar como exemplo o romance O pai da menina morta (2018), de Tiago Ferro, em que o narrador deslinda diversos fatores de sua vida (presente e passado) após a morte de sua filha criança. Nesse caso temos uma escrita de luto de um narrador/escritor que confunde a vida desse narrador com o próprio autor, Tiago Ferro, cuja filha de oito anos também faleceu. 

Acontece que em 2016, antes da publicação do romance em 2018, Tiago Ferro publica na revista Piauí um texto intitulado Já não era mais terça-feira, mas também não era quarta, que é dedicado a suas filhas e à mãe delas. Nesse texto ele escreve sobre os acontecimentos que se seguiram após a morte da filha e sobre a sensação de inadequação à vida, que se transformou de forma trágica. Sobre isso, alguns pontos precisam ser destacados. Entre a escrita do texto e do romance há uma aproximação que não é apenas temática, pois lemos na matéria da revista Piauí uma “conversa” entre o episódio vivido pelo narrador e um conjunto de referências culturais que reaparece no romance, como, por exemplo, referências culturais à música e ao cinema (cantores como Chico Buarque e Djavan; os filmes Sete anos no Tibet e Matrix também são mencionados). Mas há uma diferença importante: no romance os nomes dos personagens são trocados ou não são revelados, diferente do que acontece no texto publicado na revista Piauí. 

Portanto, penso que mais do que relações autoficcionais que confundem o narrador do romance com Ferro, o autor, as referências correspondentes presentes na postagem da Piauí e que vão parar no romance O pai da menina morta podem indicar uma escrita que mescla reflexão estética, invenção romanesca e trabalho de lembranças que se apoiam mutuamente exibindo um trabalho de luto pela filha, trabalho este que põe em prática um exercício que treina o olhar e o deixa mais apto para acolher “acasos”, selecionar provas, que permitam buscar, na escrita de luto, rememorar e ficcionalizar a perda, ou seja, uma forma de lutar contra a morte.

Autoficção: as tensões para além do conceito

João Matos

Créditos da imagem: Maurizio Cattelan Il Super Noi in 50 parts, 1998

 Em outras oportunidades, publiquei aqui mesmo no blog do Leituras Contemporâneas que um dos principais objetivos da minha investigação é entender os motivos da rejeição ao termo “autoficção” por parte significativa da crítica e dos próprios autores de obras que podem ser consideradas “autoficcionais”. É uma tarefa bem difícil, tendo em vista a persistente imprecisão teórica do termo, o que implica numa enorme variedade de perspectivas sobre o assunto e também em diversos motivos para justificar essa rejeição.

Tiago Ferro, autor de O pai da menina morta, objeto de estudo da minha investigação, faz questão de esclarecer que seu romance parte de um acontecimento de sua própria vida, a morte de sua filha vítima de uma gripe, e ainda assim rejeita a associação de sua obra com o conceito de autoficção, alegando que sua obra teria uma “forma própria”. Não pretendo problematizar novamente a justificativa de Ferro, e sim pensar na sua confirmação do acontecimento de sua vida no livro, pois isso nos ajuda a perceber que sua maior preocupação não é o autobiográfico em si, mas o papel que será desenvolvido pelo autobiográfico no texto literário.

Observar isso me fez pensar: “bom, se o problema não é o autobiográfico, por que não pensar os efeitos da autoficção nas autobiografias?”. Parece interessante olhar para o outro lado da autoficção, principalmente pelo meu entendimento de que o termo francês não propõe uma espécie de novo gênero para o campo da ficção literária, tampouco pretende ser apenas um conceito – acredito que a autoficção é essencialmente um questionamento aos pactos de leitura. O próprio surgimento da autoficção, na quarta capa do romance Fils (1977), de Serge Doubrovsky, deixa explícita sua intenção de contestar os pactos de leitura estabelecidos por Phillipe Lejeune em 1975, tanto o pacto ficcional quanto o pacto autobiográfico.

Das considerações feitas por Lejeune a respeito das autobiografias, a que mais me intriga é a ideia que toda autobiografia pode ser uma “invenção de si”, pois o mesmo Lejeune rejeita que essa invenção seja um fator que inscreve a autobiografia no campo da ficção literária. Mas um entendimento básico da noção de autoficção é que ela põe em xeque o pacto autobiográfico ao ser lida primordialmente como uma “invenção de si”. Assim, ao invés de pensar em um tensionamento provocado pela presença do autobiográfico na ficção, gostaria de investigar melhor os efeitos desse hibridismo na autobiografia. Como reconhecer, por exemplo, que uma autobiografia é romanceada?

Para a ficção, o conceito de “romance autobiográfico” é praticamente um tipo de escudo anti-autoficção. O próprio Tiago Ferro é um dos autores que utilizam esse rótulo que reforça o pacto ficcional, justamente porque nesse conceito o papel do autobiográfico é secundário, quase irrelevante, mas será que a leitura de sua obra pode relevar esse dado autobiográfico (exposto meses antes da publicação do livro pelo próprio Ferro em matéria para a revista Piauí)?

Assim, a adoção da nomenclatura “romance autobiográfico” tenta afrouxar os tensionamentos propostos pela autoficção. Mais do que indicar uma resistência ao termo híbrido (“esse conceito já existe”) é um jeito de preservar os pactos de leitura sem os redefinir (ainda que isso pareça necessário), excluindo as nítidas tensões entre textos autobiográficos e textos literários/autoficcionais.

Um projeto, muitas perguntas

João Matos

Créditos da imagem: Liana Finck, instagram (@lianafinck)

Meu projeto de pesquisa nasce a partir de uma polêmica surgida com as discussões a respeito do conceito de “autoficção”. Aliás, o termo inventado por Doubrovsky para designar a obra literária associada à autobiografia já é polêmico por si só, tendo em vista a imprecisão teórica em torno dele e sua recepção negativa por muitos críticos literários. Apesar disso, não é possível negar a grande circulação do termo no presente e sua importância para a teoria literária.

Nas obras de autoficção, a figura do autor assume um papel central, não apenas pela exploração dos dados autobiográficos, mas também pela postura que alguns autores assumem no campo literário. Notei que muitos autores de romances premiados, como Tiago Ferro com seu livro O Pai da Menina Morta, rejeitam a associação de seus livros ao conceito de autoficção, mas por quê?

 Num primeiro momento, imaginei que poderia ser algum tipo de desinformação ou desconhecimento do termo por parte dos autores. Que inocência minha, não é? Tiago Ferro é jornalista, fundou a revista Peixe-elétrico e foi vencedor do Jabuti com seu primeiro romance. Presumir que um autor tão envolvido com o campo literário desconheça a noção de autoficção é uma hipótese que deve ser descartada porque não me dá abertura para explorar melhor as discussões no contexto em que esses autores e o termo se inserem.

Em entrevista a um canal de youtube, Ferro rejeita a associação de seu livro premiado ao termo de Doubrovsky alegando que sua obra tem um tipo de investimento formal “próprio”. Esse foi o ponto de partida de minha investigação: será que a autoficção implica menor investimento formal? E isso retiraria o valor da obra como literatura, reduzindo o livro a mero falar de si? Se as respostas forem positivas, podem explicar a recepção negativa da crítica literária à autoficção?

Ainda que não tenha as respostas, já sinto a necessidade de demarcar minha posição quanto às alegações de Ferro. Penso que o próprio conceito de autoficção já traz consigo uma espécie de empreendimento formal que decorre do tensionamento dos limites entre o pacto autobiográfico e o romanesco, próprio de todo relato que é considerado autoficcional.

Mas as perguntas não param por aí.  Será que ao aderir e reverenciar a autoficção e sua ambiguidade, a crítica literária não estaria reforçando uma rejeição às narrativas autobiográficas que sempre tensionaram os limites ficcionais? Será que essa resistência não é um mecanismo de conservação de um pacto que já foi quebrado, de um limite que já foi ultrapassado, de uma perspectiva do texto literário que vem se transformando no presente?

Essas questões são ainda muito embrionárias e que não querem defender ou fazer o mero elogio da autoficção. Apesar da minha simpatia pelo termo, o que mais me estimula investigá-lo é a tensão que cria em torno da divisão entre obras maiores e menores e seu potencial para ressignificar o que chamamos de literário.

Os convites da autoficção

Antonio Caetano

Créditos da imagem: “London in puddles”, série fotográfica de Gavin Hammond, presente em: https://www.mirror.co.uk/incoming/gallery/london-puddles-photography-series-gavin-866147

No artigo “El lector ante la autoficción”, as análises da teórica Maria José Alcaraz León partem do pressuposto de que ao leitor da autoficção seria impossível ler uma obra  alternando a perspectiva de leitura entre elementos fictícios e factuais. Para ela, a autoficção não deveria se esgotar na querela entre verdadeiro e falso, mas deve consistir em um convite para o leitor refletir sobre a ficção e a não ficção. E esse convite pode ser feito de formas muito distintas.

Ao nos depararmos com a diversidade de textos autoficcionais presentes na literatura contemporânea, talvez seja recomendável não cair na armadilha de começar a análise desses textos considerando as evidências empíricas, que dizem respeito à vida do autor, em jogo na obra. Talvez seja possível entender que a autoficção também convida o leitor para um encontro com a representação.

Mas como se daria a leitura de um texto autoficcional?  Se o jogo entre ficção e não ficção são elementos constitutivos do convite à leitura feito pelo texto autoficcional, rejeitá-lo significa perder uma boa parte do que está em jogo. Mas isso não significa priorizar a caça aos dados factuais explorados no texto, pois mesmo que o escrutínio do texto ou a leitura análitica dele abra mão desse procedimento, isso não significa ignorar ou menosprezar a costura da ficção com o não ficcional, rejeitando-a como uma característica fundadora da ambiguidade da narrativa ficcional.

O que me interessa no argumento desenvolvido por Maria León é que a crítica sugere que a dubiedade entre as identidades do autor e do narrador não precisa ser encarada como se a ficção e a não ficção se alternassem seguidamente durante a narrativa, levando o leitor a decidir a todo o momento se o que está lendo é ficção ou não. O mais importante é que a própria instabilidade é uma condição do texto reconhecido como autoficcional.

Essa reflexão me interessa para pensar a narrativa sob a qual me debruço para produzir minha dissertação de mestrado. Tiago Ferro publica seu primeiro romance, O pai da menina morta, que teve como motivação de escrita a morte de sua filha. O narrador, que é também escritor, perdeu uma filha sob as mesmas circunstâncias relatadas por Ferro em um artigo publicado para a revista Piauí. Tal similaridade une indiscutivelmente esses dois sujeitos.

Nesse romance, que identifico como uma obra autoficcional (diferentemente do próprio Tiago Ferro), acredito que o tipo de convite realizado no texto está intimamente relacionado com o luto e o trabalho de luto experimentados pelo narrador devido à morte da filha. No entanto, me interessa menos identificar e comprovar o que aconteceu ou não, quais os elementos “baseados” na vida e na experiência traumática vivida por Ferro, do que entender a escrita como uma forma de representação dessa experiência, que é pessoal, sem dúvida, mas é também matéria para a ficção, pois, na minha leitura, o luto é o elemento chave da ponte que é possível construir entre a ficção e a realidade, aí, nessa narrativa.

Nesse sentido, a autoficção em O pai da menina morta é um convite para a reformulação de uma experiência traumática, não necessariamente presa aos fatos ou a dados empíricos – a morte da filha do autor Tiago Ferro.  Por serem íntimas, as verdades do luto não precisam possuir laços com os fatos, pois se tratam das expressões de um afeto, e será no texto que essa verdade poderá ser mobilizada. Será no texto, nas estratégias exercidas na escrita, nas presenças e ausências, e nos rastros observados no texto que essas relações de união e afastamento se entrelaçarão de forma mais imbricada, complexa, e rica em possibilidades interpretativas.

Trabalho de luto e metatextualidade em WandaVision

Antonio Caetano Jr.

Créditos da imagem: Divulgação

WandaVision (2021), uma série de TV hollywoodiana, fomentou discussões nas redes sociais e em fóruns na internet. Tal atenção deve-se, também, ao fato de que a história faz parte do lucrativo Universo Cinematográfico da Marvel, que adapta histórias dos quadrinhos da Marvel Comics para o cinema. Somado a isso, o caráter metatextual da série, e o luto que atravessa uma das protagonistas, foram pautas frequentes nos debates sobre a produção.

No percurso da minha pesquisa de mestrado estudando o romance O pai da menina morta, de Tiago Ferro, tenho me concentrado em leituras acerca do trabalho de luto e da autoficção, pois há no romance um narrador-escritor que escreve sobre sua vida — e sobre seu processo de escrita — em que elabora o luto pela morte da filha. Dessa forma, também acredito ser pertinente comentar alguns aspectos da série focando em um trabalho de luto que se dê pela escrita devido às seguintes razões: Wanda está em luto e, nesse processo, passa a ficcionalizar um modo de vida para si e para seu companheiro falecido.

Uma breve contextualização sobre WandaVision se faz necessária para este post: Wanda possui superpoderes, tais como os de moldar a realidade de acordo com sua vontade, enquanto que Vision, par romântico de Wanda, é um robô, de estrutura humanóide, dotado de sentimentos humanos. Em filmes anteriores ao seriado sabe-se que Vision foi morto em batalha, o que faz com que, no tempo atual da série, Wanda se isole da sociedade e crie uma realidade e um “novo Vision” para dividir com ela esse espaço. Tal “realidade” é constituída correspondendo aos formatos das chamadas “comédias de situação”, ou sitcoms (séries televisivas de humor que apresentam famílias e/ou amigos em situações corriqueiras, sendo A feiticeira e Friends exemplos do formato).

Dessa forma, a cada episódio somos expostos a estratégias técnicas e estéticas encontradas nas sitcoms à medida em que Wanda e o novo Vision vivem, através dessas estratégias, como personagens. Tais artimanhas culminam na série que nós vemos e na série criada e estrelada por Wanda, que está contida na primeira. Além do mais, a metatextualidade envolvida reforça ainda mais o caráter narrativo do que Wanda está vivendo, pois personagens que estão fora da realidade de Wanda interceptam,  como sinal de TV, o que se passa dentro da realidade criada por ela: justamente as sitcoms acontecendo. Dessa forma, os personagens de WandaVision conseguem assistir a série de Wanda, assim como nós, o público empírico.

E é para este detalhe que quero chamar atenção. Me interessa observar aqui os jogos estabelecidos com os gêneros narrativos em que as histórias são construídas. Será possível associar essa relação metatextual ao processo de elaboração do luto vivido pela personagem? No romance de Tiago Ferro vemos que o narrador é um escritor, e percebemos como este exibe seu processo de escrita (emails trocados com a editora; listas do que falta escrever; referências úteis ao texto; reflexões sobre escrita).

Já na série, Wanda demonstra paixão por sitcoms e comprova isso ao exibir técnicas por trás do gênero televisivo no seu trabalho de luto (filtros em preto e branco e em cores; mudança de diagramação da tela de um formato mais “quadrado” para um formato widescreen; roteiro; quebra da quarta parede; trocadilhos; risadas gravadas ao fundo das cenas). Assim, o que minha reflexão propõe é que o esmiuçamento e a exploração da técnica (seja ela técnica de escrita ou técnica televisiva) ajudam a, de certa forma, pavimentar um caminho para uma busca pelo que foi perdido. Em outras palavras, nas duas produções artísticas, tanto o trabalho de luto, a exibição da técnica, quanto a construção de sentidos elaborados pelos personagens estabelecem relações tais, que não se sabe exatamente onde começa um e termina o outro.

Em certo momento, Wanda é posta diante da seguinte pergunta: “O que é o luto senão o amor perseverando?”. Inclino-me, então, a pensar tais mobilizações no romance e na série como expressões da subjetividade do sujeito ao elaborarem um trabalho de luto que, por si só, é laborioso e perseverante, pois parte do desejo de um encontro impossível  — sempre evocado, mas nunca realizado plenamente —, do enlutado com o objeto perdido a partir dos entrelaçamentos, ou das reformulações, da realidade e da ficção.    

Autoficção: criação de realidades

Antonio Caetano

Créditos da imagem: “Homem pescando um desejo vazio”, de Susano Correia.

Para aqueles que se dedicam às discussões sobre a autoficção, dois fatores comuns a serem levantados para debate é a confusão entre a realidade e a ficção, e a indistinção das identidades do autor e do narrador. Neste post, gostaria de pensar tais fatores a partir de duas entrevistas que pude ler recentemente dadas por dois escritores (Maria Gabriela Llansol e Tiago Ferro), cujo estilos e propostas são diferentes, em contextos, tempos e mídias distintas, mas que me ajudaram a tecer reflexões sobre as ambiguidades – inerentes ao texto autoficcional – presentes no romance O pai da menina morta, de Tiago Ferro.

Ao responder sobre a ficção e a realidade em sua escrita no livro Entrevistas (2011), da editora Autêntica, me chama atenção o fato de que Llansol diz não encarar seus textos como ficcionais por serem “baseados numa realidade que é vivida e que é uma digamos, observação íntima do meu percurso enquanto corpo, enquanto pessoa”. Porém, mesmo considerando sua escrita como uma observação íntima de si, Llansol acrescenta que só a chamaria deautobiográfica se ela “fosse explicitando os fenômenos visíveis da vida de alguém. […]. Mas, de facto, não é disso que se trata. Do que se trata é da criação, em paralelo e em espelho, de determinadas realidades que vão exprimindo as minhas mutações interiores de energia”.

Associo, então, a imagem que Llansol faz de sua escrita aos processos de escrita observados pelo narrador em O pai da menina morta.  Llansol diz que suas mutações interiores são expressas no decorrer da criação de realidades enquanto escreve. O modo como a autora portuguesa descreve seu processo de escrita pode servir também para caracterizar o trabalho de luto que, no romance de Ferro, opera por meio da escrita de um livro que pode ser lido como uma  tentativa de reconstrução da subjetividade do narrador, de sua vida após a morte da filha.

Em entrevistas (pela razão de ter perdido uma filha como o narrador do romance), Tiago Ferro geralmente precisa elaborar o que pensa sobre autoficção, como se deu na entrevista do autor para o Estadão. Aí, o escritor afirma que considera a autoficção mais como “um rótulo de mercado” e que a leitura de obras como essa “inevitavelmente coteja ficção e realidade, vida e obra”, reduzindo-as a isso. Logo depois, o autor parece tentar afastar-se do rótulo da autoficção ao dizer que seu livro não apresenta duas premissas que, para ele, são básicas e obrigatórias: o “narrador com o mesmo nome do autor estampado na capa e [a] narrativa em primeira pessoa”.

Bom, independente das possíveis classificações dos estilos narrativos de Llansol e Ferro, acredito ser pertinente refletir sobre as indeterminações que dominam suas obras. Enquanto Llansol renega tanto o caráter ficcional, quanto o autobiográfico de sua escrita, Ferro se apega à ficção e aciona estratégias que considera não pertencentes às narrativas autoficcionais.

Será que podemos considerar que escritas que partem da subjetividade do sujeito, e que articulam afetos, são peça chave para pensarmos em uma escrita que promova ambiguidades entre o real e o ficcional? Seria a ficção, citando Igor Graciano, aquilo que não é “passível de ser legitimada pelos fatos”? Mas não são os afetos (e o luto é uma forma de afeto) parte integrante do cotidiano e que, portanto, estão conectados por fatos ocorridos na vida do sujeito?