Arquivo da categoria: Francesca Woodman

“Estas coisas chegaram da minha avó. Elas me fazem pensar onde me encaixo nesta estranha geometria do tempo”

Samara Lima

Créditos da imagem: Francesca Woodman, Untitled, 1979-1980

Uma das perguntas iniciais da minha pesquisa de iniciação científica diz respeito ao regime narrativo de muitas imagens do presente e para isso escolhi como objeto de estudo as produções de Francesca Woodman e Nan Goldin. Nesse sentido, encontrei na obra A fotografia como arte contemporânea (2010) da curadora e escritora independente norte-americana Charlotte Cotton uma boa contribuição para a minha investigação. 

A partir da noção da imagem enquanto arte e não um mero registro incontestável da realidade, o livro busca examinar de que maneira a fotografia vem se desenvolvendo no século XXI. Dentre tantas outras coisas, o que me interessa é a discussão sobre a possibilidade de a fotografia artística contemporânea criar histórias.

No capítulo “Era uma vez”, a autora comenta que essa forma de conceber a atividade fotográfica é conhecida como “fotografia de quadros (tableau photography) ou de quadros-vivos (tableau-vivant photography)”. Nelas, existe uma narrativa pictórica concentrada numa única imagem que conta ou apresenta de maneira velada um evento. Segundo Cotton, os “quadros-vivos” mantêm uma relação direta com a era pré-fotográfica na qual imperava a pintura figurativa. Entretanto, essa relação não é entendida como uma mera ação nostálgica, pois o que importa é a maneira como a pintura oferece estratégias eficientes de criar conteúdo narrativo por meio da composição de legendas, adereços, alegorias, gestos e do próprio estilo peculiar à obra de arte.

Pois bem. Pensando nisso é que me proponho agora a fazer um pequeno exercício de construção de narrativa, tendo como base a fotografia em preto e branco da artista norte-americana Francesca Woodman que abre este post.

Na imagem, podemos visualizar duas jovens bastante semelhantes fisicamente, com o rosto oculto virado para a esquerda, os seios desnudos e uma espécie de pano que as cobre da cintura para baixo. Sentadas, elas seguram com os braços levantados um objeto que parece uma pedra. A pose das modelos e suas vestimentas assemelham-se a de uma escultura grega.

Para além de uma simples imitação de uma determinada estátua do corpo feminino, a fotografia parece sugerir uma reflexão sobre a exposição dos corpos das mulheres e sua constante erotização nas artes e na sociedade. Nesta obra e em outras produções, a partir do seu próprio corpo e do seu olhar enquanto produtora de imagens, Woodman (principal modelo de suas fotos) busca uma libertação metafórica sobre o corpo feminino como objeto de desejo do homem, oferecido para consumo e apreciação. É bem verdade que os corpos da imagem trazem consigo certa ambiguidade, já que eles não permitem maiores identificações, pois as modelos estão com os cabelos presos e os rostos encobertos. Esse gesto contrasta com a tradição da cultura europeia em que as mulheres tinham suas faces expostas e até miravam o espectador. Aqui, é como se as modelos em si não importassem, mas sim o que está por trás da cena.

A foto é estática, mas é curioso como contém uma cadeia de acontecimentos que são importantes para sua leitura. No decorrer de minha pesquisa, pude perceber como a pose, o ângulo da imagem, a vestimenta e os acessórios contêm vestígios e dão margens para narrativas. Cotton afirma que muitos profissionais fazem referências óbvias a histórias que estão incorporadas ao nosso consciente coletivo, mas outros preferem “uma descrição mais oblíqua e inconclusa”. Desta maneira, cabe ao espectador estabelecer relações e investir na imagem suas “próprias narrativas e conteúdos psicológicos”, a fim de construir um significado para a cena que está sendo retratada à sua frente.

“Estou tentando fazer com que outras pessoas reconheçam algo de si e não de mim”

Samara Lima

Créditos da imagem: Cindy Sherman’s Untitled Film Stills (1977)

Já comentei em posts anteriores que Nan Goldin e Francesca Woodman fazem parte do meu corpus investigativo e que ambas as fotógrafas são as principais modelos de suas fotos. Assim, uma das questões que me interessa é justamente o aproveitamento da presença de “eu” dentro da imagem fotográfica e do universo encenado. É pensar o caráter autobiográfico não como mero traço narcísico, mas como uma possibilidade criativa aberta a questões mais amplas, ainda que estejamos diante de uma representação de si.

Em Autobiografías visuales. Del archivo al índice (2009), a crítica de arte Anna Maria Guasch afirma que o gênero autobiográfico não é exclusivo da literatura, mas abre-se para outras artes, como a pintura e a fotografia. Afinal, se existem diversas formas de textualizar a realidade, igualmente haverá múltiplas formas de inscrever a vida no trabalho.

No decorrer do livro, a autora comenta a produção de diversos artistas conceituais que utilizam imagens, textos ou a combinação de ambos, para criar o que ela chama de “autobiografia visual”. Sua proposta é analisar a forma como os artistas desafiam algumas das constantes desse gênero, como “a narração contínua e o culto ao ego”, apostando na “desfiguração” do sujeito, na narração não-linear e fragmentada.

Perseguindo essas possibilidades, Guasch investe em ler nas imagens um esvaziamento do “eu”. É interessante notar como a discussão levantada por Guasch abre margem para pensarmos como esses autores constroem novas formas de lidar com a identidade, por meio de um “eu” mais ambíguo e precário, não meramente fixado no autorretrato, mas que pode materializar o sujeito e sua identidade por meio de objetos e situações representadas, que atuam “não […] tanto [como] o suporte de uma vida, mas [como] o resultado de sua narração”.

Uma das artistas analisadas pela teórica é a importante fotógrafa norte-americana Cindy Sherman, em especial seu trabalho intitulado “Untitled Film Stills”. “Untitled” é um conjunto de imagens, baseadas no vocabulário da cultura popular da América do pós-guerra. O trabalho busca refletir sobre as representações clichês da identidade feminina na cultura ocidental, principalmente sobre aquelas presentes nos entretenimentos de massa. Aí, em cada fotografia, Sherman posa como uma personagem diferente: da dona de casa solitária e infeliz à ingênua perdida na cidade grande.

O argumento de Guasch é que apesar da presença da fotógrafa como modelo, suas imagens não são autorretratos tradicionais, pois “sempre é ela e nunca é ela”. É Cindy Sherman, já que claramente a reconhecemos, mas ao mesmo tempo estamos diante de atuações fictícias que performam uma ideia do feminino. Dessa forma, a imagem visual não indicia a personalidade do sujeito retratado, mas aponta para uma multiplicidade de identidades, exigindo que o espectador relativize a presença da artista como escrita apenas de sua vida, e leia o seu corpo como ferramenta de construção de outras histórias.

Por uma fotografia expandida

Samara Lima

Créditos da imagem: Self-Portrait in Blue Bathroom, London, Nan Goldin

Em “A fotografia expandida no contexto da arte contemporânea: uma análise da obra Experiência de Cinema de Rosângela Rennó”, Patricia Alessandri, pensando as práticas fotográficas contemporâneas, afirma que “a fotografia expandiu seus limites, passando de registro fiel da realidade para a percepção de novos tempos e espaços, estabelecendo diálogo e incorporando em seu fazer outras manifestações artísticas”.

Tendo em vista esse contexto de esgarçamento das fronteiras entre as diferentes formas de expressão, a autora traz o conceito “fotografia expandida”. No início do texto, Alessandri comenta que essa denominação tem como base teórica a noção de expansão da linguagem formulada por Gene Youngblood, no livro Expanded Cinema (onde ele reflete sobre as “novas manifestações do cinema” em comparação com o que era produzido até então) e o estudo do artista Andréas Müller-Pohle, em seu texto Information Strategies, (em que ele busca compreender a prática fotográfica que está cada vez mais comprometida com os procedimentos de produção, circulação e manipulação da imagem).

Se a modernidade discutiu o estatuto artístico da fotografia, muitas vezes compreendida apenas como documento, a produção contemporânea vem aprofundando a exploração das possibilidades inventivas dela. O que o termo “fotografia expandida” almeja evidenciar, então, é uma nova forma de conceber a imagem. Essa possibilidade de invenção pode se dar por meio de intervenções nos diferentes estágios de produção da imagem como, por exemplo, o uso de filtros e a própria auto-encenação do fotógrafo. Mas também por meio do questionamento da crença no caráter autêntico da fotografia para aproximá-la do mundo da ficção. 

Foi pensando no hibridismo entre os diferentes meios artísticos e na ampliação de sua área de atuação como linguagem e representação que, há cerca de um ano, iniciei um projeto de iniciação científica intitulado “A literatura fora de si e o estatuto da imagem fotográfica na narrativa contemporânea”. Aí, eu estava interessada em investigar uma possível “saída da literatura” ao incorporar elementos não-ficcionais como, por exemplo, a fotografia, mas também uma “saída” da imagem fotográfica que, sendo considerada durante muito tempo um documento, cada vez imbrica-se com o texto literário.  Dessa forma, busquei explorar de que maneira as imagens aparecem nas narrativas do meu corpus ficcional e quais funções elas desempenham junto ao texto. 

O fato é que a pesquisa apontou uma pluralidade de modos de relação entre as narrativas e imagens fotográficas, o que colabora com o meu desejo de continuar a investigação em outro plano de iniciação científica. Agora, além de investigar a prática literária que desliza na direção de uma relação imbricada com a imagem, explorando a discussão teórica sobre a expansão dos limites das artes na contemporaneidade (em especial da fotografia), o meu plano de pesquisa quer discutir o próprio regime narrativo de muitas imagens hoje, principalmente nos trabalhos de Nan Goldin e Francesca Woodman.