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Escrever o sexo

Nilo Caciel

Créditos da imagem: Shibari VII – James Asher

O livro Kink: Stories (2021, sem tradução no Brasil) reúne contos que narram experiências de pessoas com práticas sexuais fetichistas. Editado por R.O. Kwon e Garth Greenwell, a coletânea traz um grupo diverso de vozes que exploram o ato sexual como um ritual multifacetado, ao qual questões de poder se entrelaçam de forma ambígua.

A coletânea parece ter como ponto central questionar como pautas sociais e identitárias são articuladas em encontros íntimos, especialmente quando estes encontros não se dão a partir do que é socialmente considerado ‘normal’. Essa é, a propósito, a forma menos vaga de definir kink: qualquer coisa que pareça “incomum” ou “estranho” nas concepções de certa cultura sobre sexo.

A riqueza sensorial dos contos é um dos pontos altos da coletânea. Destaco aqui Gospodar, conto do próprio Garth Greenwell, um dos editores, que narra o encontro furtivo de um americano com um homem em Sofia:

Foi doloroso, mas não só para mim, deve tê-lo machucado também. Mas eu dei minha garganta, achei um ângulo que o deu acesso, e eu logo relaxei e veio um jato de saliva e ele conseguiu se mover como queria, como ele fez por um tempo, talvez tivesse prazer para ele no final. Como tinha para mim, o prazer intenso que eu nunca consegui explicar, ele não pode ser explicado mecanicamente; o prazer de servir, eu sempre pensei, ou mais sombriamente o prazer de ser usado, a euforia de ser feito um objeto que fazia falta no sexo com R., apesar de ter seus próprios prazeres, prazeres que eu tinha almejado mas que de jeito nenhum compensavam pela tal falta. Eu quero ser nada, eu tinha dito para ele, e foi uma forma de ser nada, ou quase nada, uma conveniência, um instrumento.

O autor parece estar investido da convicção que expõe em seu artigo publicado no The Guardian. Nesse texto, Greenwell fala sobre sua vontade de fazer algo que seja “100% pornografia e 100% arte elevada”:

Sexo é uma experiência de vulnerabilidade intensa, e é também onde nós estamos no nosso estado mais performativo, então é ao mesmo tempo o mais perto e o mais longe possível da autenticidade. Sexo nos joga profundamente em nós mesmos, nossas próprias sensações, físicas e emocionais; é também, pelo menos quando é interessante, o momento em que estamos mais cuidadosamente sintonizados com a experiência de outra pessoa.

O autor se opõe de forma incisiva à ideia de que não é possível (ou pelo menos muito difícil) fazer boa literatura sobre sexo. Sua defesa se baseia no fato de que sexo é um elemento significativo da experiência humana, sendo, em consequência, um instrumento singular de investigação para a literatura. Como a maioria dos escritores contemporâneos, Greenwell se mostra interessado em contestar concepções arbitrárias transformadas em dogmas, abrindo, assim, novos caminhos possíveis para a escrita literária.

Representar o desejo

Nilo Caciel

Créditos da imagem: Hudinilson Jr, “Performance Narcisse,” Exercício de Me Ver II (Exercise in Looking at Me II) series, 1982. Courtesy of Galeria Jaqueline Martins, São Paulo.

Depois do lançamento de O que te pertence, em 2016, o escritor americano Garth Greenwell publicou em 2020 seu segundo romance, Cleanness (ainda sem tradução). A obra funciona como uma sequência de seu primeiro romance. Acompanhamos o narrador, um professor americano morando na Bulgária, no momento em que está prestes a voltar para os Estados Unidos, ocasião em que  reflete sobre sua experiência no país balcânico.

Orbitando os dilemas relacionados a sua sexualidade na maior parte do tempo, a obra é formada por situações e momentos desconectados, sem um plot central: um romance com outro estrangeiro, sua relação com a mãe, inquietações políticas em Sofia e um encontro casual que envolve sadomasoquismo.

Joshua Barone, crítico do New York Times, apontou que ‘‘apesar de [as situações narradas] não aparecerem em ordem cronológica, há uma simetria em sua organização’’. Acredito que Barone se refere à forma como a experiência do narrador com seus dilemas relacionados a sua homossexualidade irradia por toda a composição dos capítulos: sua sensibilidade que capta o modo como a circulação de poder funciona nas diferentes relações, seu anseio por laços afetivos profundos ao mesmo tempo em que leva uma existência solitária, em constante auto-análise. Estas são algumas questões recorrentes em obras de autores gays, incluindo James Baldwin, cujo romance O quarto de Giovanni foi apresentado aqui.

      Um outro elemento que se intensifica neste romance é a vividez com o qual atos sexuais são retratados. Em um dos capítulos do livro, de forma particularmente ‘‘suja’’ (em contraste com o título, cuja tradução literal é limpeza), testemunhamos um encontro no qual a linha entre consentimento e abuso é borrada. Greenwell é um grande defensor da presença do sexo em obras de arte. Sobre seu próprio livro, ele declarou querer fazer algo ‘‘100% pornografia e 100% arte’’. Sobre a forma explícita com a qual retrata atos sexuais, afirma:

Não é que eu ache que explicitação seja algo intrinsecamente interessante. Nossa cultura está afogada em coisas explícitas, graças à internet. No entanto, sofremos de uma escassez de representações de encorporamento, que quer dizer corpos imbuídos de consciência.

O romance de Greenwell me interessa porque investe na especulação sobre o desejo, explorando os afetos, o corpo e o sexo de uma maneira que cria um desdobramento na representação da subjetividade queer. A “saída de armário” ou a auto-aceitação de sua opção sexual, não estão mais no centro das preocupações das narrativas de Greenwell. Apesar de não ser possível afirmar que estas são questões totalmente superadas pela comunidade LGBTQ, os direitos dos LGBTQ têm avançado grandemente nas últimas décadas (pelo menos no Ocidente), abrindo um amplo espaço para o aprofundamento de discussões sobre sexualidade nas diferentes instituições sociais.   Como parte desta geração, Greenwell explora as nuances dos reflexos de ter crescido em uma sociedade que ainda se esforça para entender seu lugar no mundo, sem se preocupar em se afirmar ‘‘igual’’ nem se moldar a ideais heteronormativos de realização amorosa ou sexual.

O desejo e o sexo

Nilo Caciel

Créditos da imagem: Alair Gomes, cobertura 2726, muito prazer.

O que te pertence é o romance de estreia do escritor americano Garth Greenwell lançado em 2016. O livro é narrado em primeira pessoa e acompanha o protagonista, um professor americano que mora na Bulgária, às voltas com seus dilemas, na maior parte do tempo relacionados a Mitko, um garoto de programa com quem ele tem um tórrido romance. A obra ganhou notoriedade e encontrou uma recepção muito positiva dos principais jornais e revistas norte-americanos. Aaron Hamburger do The New York Times usa adjetivos como ‘‘vívido’’, ‘‘envolvente’’ ao comentar algumas passagens do livro, chegando a se referir a outras como ‘‘tesouros fascinantes’’.

Em meio aos elogios, Hamburger comenta o caráter fragmentário do romance. Os capítulos retratam momentos distintos da vida do narrador, que aparentemente não têm ligação um com o outro . No primeiro capítulo, testemunhamos o momento em que o narrador conhece Mitko, único personagem nomeado, em um banheiro público no subsolo do Palácio Nacional de Cultura em Sofia. Ele é descrito como um jovem búlgaro atraente e carismático por quem o narrador se sente fortemente atraído. As cenas de sexo são descritas com grande minúcia e sem nenhum pudor, mas as descrições são entremeadas às reflexões do narrador sobre a performance do desejo:

Eu sabia que ele estava performando um desejo que não sentia, e verdadeiramente acho que ele estava muito bêbado para sentir desejo. No entanto, há algo de teatral em todos os beijos, eu acho, já que pesamos nossas respostas contra aquilo que percebemos e projetamos; sempre desejamos demais ou pouco demais, e compensamos de acordo. Eu estava performando também, fingindo acreditar que a demonstração de paixão dele era uma resposta genuína ao meu desejo, que não tinha nada de fingido.

Não se pode afirmar com segurança que haja uma trama linear na qual as relações de causa e efeito estejam aparentes para o leitor. Depois do seu primeiro encontro com Mitko, o narrador retrata pormenores de sua rotina como professor, peculiaridades de Sofia e da cultura local, e lembranças de sua infância no sul dos Estados Unidos. Porém, como nota Hamburger, Greenwell se destaca por nunca deixar que sua narrativa soe clichê ou insípida. Além desse arranjo fragmentário na forma de narrar, um tema atravessa a narrativa, como sugere o título: o pertencimento. Também não é difícil perceber que a interrogação sobre esse pertencimento estão relacionadas com a homossexualidade. Sua condição de expatriado (especialmente em um país onde a intolerância com as populações LGBTQ ainda é a norma), suas lembranças de infância no Kentucky (estado altamente conservador do sul dos Estados Unidos), seu anseio pelo afeto de Mitko estão conectados de alguma forma à sexualidade do narrador como parte de seu desejo e de sua identidade.

Greenwell assume estar interessado em explorar a subjetividade queer no momento atual. O narrador de O que te pertence é um homem letrado e tem experiência com ativismo. Ele tem consciência dos processos históricos e culturais por trás da homofobia tão enraizada na nossa cultura, assim como está alerta para os dispositivos que a mantêm tão viva. O romance se torna interessante porque enreda desejo, sexo e identidade em um labirinto que oferece ao leitor muitos caminhos para pensar.