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“O que vejo na foto quando olho para ela?”

Samara Lima

Créditos da imagem: Saia da frente do meu sol (2023), de Felipe Charbel

Em O trabalho das imagens: conversações com Andrea Soto Calderón (2021), Jacques Rancière aponta que não devemos reduzir a imagem visual a uma semelhança  com o referente ou ao produto de uma ação intencional que meramente desfila seu sentido diante dos olhos de espectadores imponentes. Mas, sim, que devemos pensá-la como algo que resiste, cria deslocamentos por seu aspecto performático e que, muitas vezes, escapa da própria vontade daquele que gostaria de predeterminar seu efeito.

A leitura do livro me interessa justamente pela discussão da imagem fotográfica como uma operação ativa, um saber que foge à prescrição e à representação, que almeja atingir uma dimensão imaginativa e redefinir as noções de legibilidade e visibilidade, possibilitando outra forma de apreender o real. Enquanto a representação tende a imobilizar e fixar os sujeitos retratados em categorias que os definem e submetem, a figuração revela o quão difícil (até mesmo impossível) é reter os sujeitos e suas experiências em uma imagem ou obra.

Segundo Rancière, a fabulação de imagens está relacionada à ficção e uma das principais formas de reivindicação de uma visibilidade muito mais complexa do que está visível é procurar interrogá-las de maneira mais demorada, sempre explorando a tensão entre a realidade e a aparência. É dessa maneira que conseguimos perceber as fraturas e os intervalos necessários ao olhar e à interpretação.

O desafio de desarmar o olhar e fazer trabalhar o imaginário diante da imagem visual me fez lembrar o mais recente livro de Felipe Charbel, Saia da frente do meu sol. A obra é uma investigação sobre a história de vida de seu tio “esquisitão” e doente, Ricardo, que morou de favor no quartinho dos fundos do apartamento de sua família durante cinco anos. O autor lança mão de documentos, fotografias (de seu tio encontradas no armário de sua avó) e uma dose de ficção para tecer conjecturas sobre sua vida anterior ao passo em que escreve sobre si e sobre o “fracasso” que é narrar o outro.

A cada encontro com o acervo de fotos de Ricardo, o narrador indaga: O que vejo na foto quando olho para ela? ou, ainda, O que me interessa nessas fotos?. É a partir desse gesto conversacional que ele busca interagir com a imagem, nivelando-se a ela, a fim de observar o que a superfície apresenta (as pessoas retratadas na cena e como elas se relacionam entre si, suas poses e vestimentas, o ângulo e o ambiente em que se encontram) para especular e construir uma versão sobre quem seu tio pode ter sido. Um aspecto interessante é que o autor parece compreender que não é possível capturar completamente o que é expresso, pois diversos sentidos escapam ao espectador, consentindo, assim, com a ficção constitutiva da fotografia. E, nesse jogo de incertezas, as fotos presentes na obra ampliam ainda mais a obscuridade em torno de Ricardo e de sua vida enigmática.

Assim como os autores, eu gostaria de prezar a ambiguidade como uma propriedade da imagem fotográfica, interpelar o que vejo, mas também fabular junto com elas e a partir delas, no decorrer da minha pesquisa que proponho a ser desenvolvida no mestrado, em que almejo estudar a relação (e tensão) entre foto e narrativa nas obras L’usage de la photo e Os anos, de Annie Ernaux.