Lílian Miranda

Pensando na preparação do meu relatório final de pesquisa sobre Viva o povo brasileiro e Um defeito de cor, comecei a ler Achille Mbembe e sua Crítica da Razão Negra. A leitura é densa e complexa já que a obra visa um empreendimento grandioso, ao elaborar um percurso histórico-filosófico que desafia o leitor a se debruçar sobre uma outra epistemologia e lógica de funcionamento do mundo: críticas ao colonialismo, a exploração da ideia do negro enquanto “outro” e das relações entre a lógica do capital e o racismo e a proposição do que o autor chama de afropolitanismo.
O historiador e cientista político camaronês Achille Mbembe, autor do conhecido ensaio Necropolítica, reúne na obra Crítica da Razão Negra as reflexões iniciadas em De la postcolonie, seguido por Sair da Grande Noite. Ensaio sobre a África descolonizada. Mas é o conceito de afropolitanismo que me interessa para ler a obra de Gonçalves. Nas palavras do próprio autor, num artigo originalmente publicado no jornal Le Messager de Douala, em 2005, podemos compreender afropolitanismo enquanto:
“uma estilística, uma estética e uma certa poética do mundo. É uma maneira de ser no mundo que recusa, por princípio, toda forma de identidade vitimizadora, o que não significa que ela não tenha consciência das injustiças e da violência que a lei do mundo infringiu a esse continente e a seus habitantes. É igualmente uma tomada de posição política e cultural” (p.70, v.4, n.2, revista Àskesis, 2015)
Para Mbembe, como para Fanon, negro é uma categoria que significa “ser-outro”, que só significa a partir da existência do que seria o referencial, nesse caso, a branquitude. Ainda no início do livro ele afirma “o negro é, na ordem da modernidade, o único de todos os humanos cuja carne foi transformada em coisa e o espírito em mercadoria – a cripta viva do capital.”. É essa mesma ideologia que faz da África um “não-lugar”, sinônimo de atraso e miséria. Na visão desse pensador, a noção eurocêntrica de civilização que determina a construção da inferioridade negra, só começa a ser questionada quando há uma descolonização do pensamento, mas ainda assim persiste a compreensão de que o indivíduo negro deve ser encarado como perigoso.
Em Um defeito de cor é possível visualizar essa movimentação de independência de uma epistemologia branca e de uma linha do tempo narrada pelos colonizadores. Aí, poderíamos sugerir o Afropolitanismo como uma chave de leitura da obra visto que tanto a história narrada quanto seu modo e contexto de produção opta por se distanciar da noção de negro enquanto “o outro” e colocá-lo como protagonista de sua história de uma forma que independe da branquitude. Num movimento sutil, Ana Maria Gonçalves subscreve a história de Kehinde numa malha que não se sustenta pelo racismo nem pelo branco, que aqui vira ainda menos que um antagonista, mas um coadjuvante. Kehinde vivencia inúmeras situações de barbárie e opta por não romantizá-las. Ao invés disso, privilegia a narração de suas atitudes de enfrentamento e das estratégias de sobrevivência e ascensão de vida.
Além disso, a personagem em sua trajetória está em constante travessia. De África à Bahia, passando pelo Maranhão, Rio de Janeiro e mais tarde de volta à África. A travessia é uma das características atribuídas por Mbembe ao afropolitanismo, já que a diáspora é entendida como um movimento de vaivém “capaz de permitir a articulação, a partir da África, de um pensamento da circulação e da travessia” e “à entrada de África na nova era de dispersão e circulação”.
Liana Amorim, em sua dissertação de mestrado intitulada “Pensatempos, cosmopolitismo e afropolitanismo: perspectivas híbridas do pensamento africano”, ao revisar as proposições de Mbembe acerca do afropolitanismo e a noção de escrita de si explorada pelo autor ao analisar as obras de Ahmadou Kourouma em O sol das independências e Yambo Ouolonguem que escreveu Devoir de violence, conclui que nesses escritos “não se tenta mais representar a realidade de maneira mimética, e sim produzir algo novo a partir de montagens e de discordâncias, sem resgatar a origem nem a reconstituição do passado, o que há é a recriação que almeja o protagonismo intelectual”.
É nesse momento que o processo de curadoria que Gonçalves faz não só dos momentos históricos de fundação da nação, mas também da história do racismo em nosso país, pode ser entendido como parte dessa montagem que manipula e rasura o documento, as versões oficiais de nossa História, a fim de contar uma história que não se limita a recriar ou mimetizar os fatos históricos no relato romanesco, mas que aposta na enunciação ficcional a partir de um pensamento afropolitanista: afirmação não vitimizadora pela narrativa que explora a dispersão e a imersão na trajetória de Kehinde, realçando o que Mbembe chama de uma “modernidade africana pré-colonial” que Gonçalves explora com sua “criatividade contemporânea”.