Arquivo da categoria: Produção autobiográfica

“Infiel – a história da mulher que desafiou o Islã”: quando a autobiografia é um aval para xenofobia

Jô Santos

Créditos da imagem: AMAZONE-BEHANZIN, de omer ba, 2017. Disponível em: https://www.vice.com/pt/article/ywnddj/pintores -estao-a-confrontar-a-xenofobia-na-europa-em-convulsao)

Publicado em 2006, originalmente com o subtítulo “My life”, “Infiel – a história da mulher que desafiou o Islã” é uma autobiografia – ainda no formato tradicional reafirmado por Lejeune, na qual a literatura aparece no movimento da vida para o texto e conta a trajetória de alguém já conhecido – de Ayaan Hirsi Ali, uma ativista, escritora e política somali-holandesa.

A obra narra a vida, desde a infância na Somália, abordando temáticas extremamente relevantes para discussões contemporâneas, como a misoginia violenta em países sob domínio do fundamentalismo religioso e a profunda pobreza imposta aos Estados com grande desigualdade social. Os relatos são fortes e expõem as agressões sofridas por muitas mulheres muçulmanas que vivem sob o patriarcado religioso, impondo, inclusive a clitoridectomia – a mutilação genital que visa ao controle sexual e comportamental das mulheres.  Aos olhos da tradição, o pai de Ali conseguiu um casamento com o par ideal, forçando a aceitá-lo. Resistindo à ordem tradicional, a jovem foge para Holanda e tem sua vida transformada. É a partir daí que o livro começa a se tornar problemático.

A autora exalta a liberdade e o desenvolvimento da Holanda, da Europa e do Ocidente como um todo, e atribui as mazelas do seu país e de outros países à religião e ao jugo ao comunismo, influenciados pela antiga URSS. No entanto, a autora ignora a história da construção dessa riqueza que se deve, ironicamente, à exploração e à colonização de diversos países da África, o que gerou graves consequências e provocou o aprofundamento de desigualdades.

Ayann Hirsi Ali segue uma carreira política na Holanda e usa seu discurso contra o islã para angariar votos, atacando os princípios religiosos de Maomé e adotando o discurso da extrema direita em ascensão para defender pautas como o fim do salário mínimo e a redução do auxílio aos desempregados. 

“Quando se diz que os valores islâmicos são a compaixão, a tolerância e a liberdade, olho para a realidade, para as culturas e os governos reais, e simplesmente vejo que não é assim. No Ocidente, as pessoas engolem tais mentiras porque aprenderam a não ser excessivamente críticas ao examinar as religiões ou culturas das minorias, por medo de ser acusadas de racismo. E ficam fascinadas porque eu não tenho medo de fazê-lo.”.

Por ser um texto autobiográfico, a autora ganha “autoridade nativa”, fala de sua experiência e consolida o pacto autobiográfico, o que segundo Lejeune, criador do termo, dá credibilidade às afirmações e ideias disseminadas na obra. Mas o que  relata Ali quando fala de sua experiência?  Divulgando sua infidelidade ao Islã, Ali atua a favor do  cristianismo (ler “Why I am now a Christian Atheism can’t equip us for civilisational war”) e pela exaltação do Ocidente frente ao atraso dos países africanos. Aí, então, descortina-se outro problema, pois quando essa “autoridade” e essa experiência reforçam a xenofobia e assumem um posicionamento acrítico indicando apenas uma radicalidade construída sobre o avesso do que recrimina, as mazelas do mundo atual parecem se conformar ao que sempre foram.

Conflitos difusos em Philip Roth

João Daniel Oliveira[1]

Créditos da imagem: Gespenst eines Genies, Paul Klee

            Quando saiu no ano passado, pela Companhia das Letras, o livro Por que escrever? Conversas e ensaios sobre literatura 1960-2013, de Philip Roth (falecido em 2018), considerei-me afortunado. Eu ingressara no Programa de Literatura e Cultura da UFBA um ano antes, para iniciar meu Doutorado, e me questionava, como ainda hoje me questiono, se o meu projeto não seria lá muito audacioso. Insinuei – no anteprojeto – e continuo insinuando – em artigos de disciplinas, em conversas e reuniões de orientação – que Roth sustentou uma espécie de projeto literário difuso e em conflito com ele mesmo. Devo dizer que o meu projeto para escrever a tese também me parece difuso, em geral; e eu também me flagro, vez ou outra, em conflito comigo mesmo quanto a essa questão. Por isso, vislumbrei em Por que escrever? a possibilidade de pescar informações fornecidas pelo próprio Roth que pudessem validar a ideia.

            Um dos seus ensaios mais famosos, que naturalmente consta na coletânea, fornece uma pista: em Escrevendo ficção nos Estados Unidos, Roth sugere que a vida real estaria tão insana que já teria superado a capacidade imaginativa da ficção, pondo os escritores em uma sinuca de bico. Essa foi uma reflexão feita em 1960. Até então, Roth havia publicado um único livro (Adeus, Columbus). Era como se ele estivesse dando permissão a si mesmo para chutar o balde literário, uma vez que a sociedade americana, tresloucada, estaria apta para lidar com isso. A reação hostil da comunidade judaica tradicional ante os contos de seu primeiro livro nada mais seria que uma manifestação de nicho. Mas, como se sabe, algumas coisas acabaram saindo do eixo.

            Com O complexo de Portnoy (1969)– um romance potente, erótico, polêmico –, Roth sentiu na pele a reação do país que, afinal de contas, fez Hawthorne escrever A letra escarlate. Penso que o ressentimento de Roth com o puritanismo americano (e, em certa medida, com a questão judaica), que já se encontrava demarcado em Adeus, Columbus, passou a polvilhar com ainda mais intensidade toda a sua obra subsequente, não apenas no conteúdo, mas também na forma. Esse ressentimento – o alicerce do seu suposto projeto difuso – parece estar presente, também, nos textos de Por que escrever? Praticamente todas as entrevistas que constam no livro tocam no assunto Portnoy; há uma específica sobre este livro, na qual seu autor está particularmente passivo-agressivo. Há conversas com outros escritores; há palestras; há ensaios bastante inusitados (em um deles, Roth imagina um Franz Kafka imigrante, morando nos EUA, em contato com sua família); e a sombra do ressentimento parece alcançá-los todos.

            Talvez Roth tivesse ojeriza às pretensões taxonômicas do seu trabalho, e eu também não gostaria de ficar à mercê da possibilidade de ter que empreender leituras e análises de todas as suas obras para poder escrever a tese. Mas devo confessar que, quando cheguei na leitura do texto Suco ou molho?, mais de 400 páginas depois, fui tomado de súbita emoção. Nessa palestra de 1994, Roth nos conta que, certa feita, em 1956, numa lanchonete qualquer, encontrou perdida numa mesa uma folha de papel com 19 frases datilografadas. As frases – que ele lê na palestra – seriam nada menos que os 19 inícios dos seus 19 romances publicados até então. Fiquei perplexo. Não seria isso um indicativo robusto de que houve uma tentativa de projeto literário rothiano? Se esse papel existiu de fato, se ele mente ou não, é o que menos importa. Eis sua descrição: “Esse documento – essa brincadeira, essa dádiva, essa coisa incompreensível, seja lá o que fosse, esse nada” – palavras, devo dizer, assustadoramente atribuíveis a vários de seus livros.

Inclusive, não deixa de ser irônico – este elemento tão caro ao discurso rothiano – o fato de que essa mesma palestra acabou sendo publicada como posfácio à edição comemorativa dos 25 anos de O complexo de Portnoy, a obra de cuja sombra inexorável ele tentou tantas vezes escapar (e, pelo visto, falhando), o texto cuja recepção de público e crítica, ao longo dos anos, aparentemente só fez intensificar a sua matéria-prima talvez mais frutífera: seu próprio ressentimento.  


[1] João Daniel Oliveira é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da UFBA. É mestre e especialista em Estudos Literários pela UEFS, instituição na qual também se graduou em Letras Vernáculas. É professor do ensino básico, escritor e membro do Conselho Municipal de Cultura de Feira de Santana, representando a cadeira de literatura.

Sobre armários e soropositividade

Ramon Amorim

Créditos da imagem: Keith Haring, sem título, 1983.

O livro O segundo armário: diário de um jovem soropositivo, de Gabriel de Souza Abreu (pseudônimo de Salvador Correa), lançado na versão e-book no ano de 2014 e na versão impressa em 2016, busca se apresentar como uma espécie de diário dos primeiros anos após a descoberta da sorologia positiva para HIV do autor. A coletânea dos textos que formam o livro foi extraída do blog criado e mantido por Abreu depois da confirmação da sua sorologia positiva. Os relatos datam de abril de 2011 a dezembro de 2013 e falam sobre as questões médicas, emocionais, profissionais e familiares vivenciadas pelo autor durante esse período. Além disso, a discussão sobre a revelação de seu estado sorológico ganha protagonismo na narrativa.

Considerado como uma produção autobiográfica, pois a obra cumpre o estabelecido no “pacto autobiográfico”, o livro de Gabriel de Souza Abreu aposta em relatos dispersos (apesar de seguirem uma ordem cronológica) a fim de construir uma narrativa mais ou menos uniforme dos primeiros anos da sua convivência com o HIV. Por se tratar de produção feita originalmente para funcionar como um diário on-line, o conjunto de textos apresenta pouca profundidade e reflete alguns dos preconceitos que o autor possuía a respeito da comunidade LGBTQIA+ e das pessoas que vivem com HIV. Esses preconceitos podem ser vistos, por exemplo, quando o narrador associa a possível descoberta da infecção pelo vírus como uma espécie de castigo pelo comportamento sexual, dado que ser “não reagente” indica que não há “nenhuma penitência a ser paga” (p. 12). Além disso, é recorrente o medo do autor de ter sua imagem associada à de um sujeito soropositivo: “não seria identificado como portador de HIV (esse é, agora, meu maior medo…)”.

O título escolhido para o livro, apesar de assertivo, retoma algumas ideias já superadas a respeito da vida com HIV. Estabelecer a sorologia positiva como uma espécie de armário, é o principal problema da obra, principalmente quando o autor afirma que “o ‘segundo armário’ é aquele para onde são obrigados a entrar os jovens gays quando descobrem que são portadores de HIV”.

Essa posição é duplamente problemática, por fazer uma associação apressada entre os “jovens gays” e o HIV (mesmo que em outros momentos critique essa associação), assim como por inferir que a homossexualidade em si aprisiona sujeitos em um “[primeiro] armário”. O autor parece não pressupor que há sujeitos gays (ou LGBTQIA+) que nunca estiveram em “armários” e que podem viver sua orientação sexual de forma pública, sem a esconder de quem quer que seja. Abreu não conseguiu apontar para uma experiência com HIV que não fosse envolta em segredos, em silêncios.

Essas problemáticas presentes na narrativa apontam para uma dificuldade vivida por muitas pessoas quando descobrem que têm diagnóstico positivo para HIV. Mesmo as mais informadas, escolarizadas e independentes financeiramente ainda sofrem com o medo do estigma que a soropositividade pode acarretar. Esse receio está relacionado ainda a uma crença de que o HIV leva automaticamente à AIDS e a doença, à morte precoce. É nessa relação direta entre vírus e doença que o autor acha que sua família vai se prender caso descubra sua condição sorológica.

Ao narrar suas experiências, crenças e limites no enfrentamento de sua condição sorológica, Abreu cede a estigmas sociais e mantém muitos preconceitos relacionados ao vírus e à doença, perdendo uma oportunidade de problematizar essas formas de representação estereotipada. Isto talvez indique que vale a pena explorar a obra para perguntar o que ela “representa” no universo de produções sobre o tema.