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Novos desenhos no tapete

Nivana Silva

Créditos da imagem: Blind light – Antony Gormley

No final do século XIX, Henry James escreveu uma grande novela intitulada O desenho no tapete e que foi apropriada pelo alemão Wolfgang Iser como mote inicial para a discussão empreendida em seu livro O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Narrada em primeira pessoa por um crítico literário encarregado de escrever uma resenha sobre Hugh Vereker (um famoso autor contemporâneo do crítico), o texto de James tematiza a incansável procura do narrador por certo “sentido oculto” no trabalho sobre o qual se debruça, procura essa motivada pelo próprio autor que, num encontro com seu resenhista, diz a ele “há em minha obra uma ideia sem a qual eu não daria um tostão pelo trabalho inteiro. […] é o ponto que cabe ao crítico encontrar”.

Disposto a decifrar “algo como um desenho complexo num tapete persa”, o narrador empreende sua busca incessante nas páginas impressas para captar uma suposta significação que estaria nelas, o que se revela infrutífero ao longo da narrativa. E é a partir daí que a novela dá espaço para que Iser, décadas depois, endosse seu argumento a respeito da apreensão do sentido como imagem, que não está dada de antemão, pois se materializa no ato da leitura e é resultado de um efeito experimentado pelo leitor. Sendo assim, o texto literário estaria aberto a diferentes preenchimentos de significados, colocando em xeque as visões imanentistas e as crenças em possíveis interpretações “corretas” daquilo que se lê.

Recentemente, pensando a relação entre autor e leitor na literatura contemporânea, a discussão de Iser me chamou a atenção por um motivo pouco enfatizado em sua análise: em O desenho no tapete, a procura do narrador pelo “verdadeiro sentido” impresso na obra é impulsionada pelo próprio Vereker, cuja fala, já citada, funciona como um gatilho para a investigação desenrolada em seguida. Quero dizer com isso que, para o resenhista, ouvir a declaração do autor foi fundamental para, mesmo sem sucesso, tentar perseguir “o ponto que cabe ao crítico encontrar”, questão que me remete aos modos como a recepção, atualmente, tem sido impactada pelas inúmeras exposições autorais.

Antes de qualquer coisa, é preciso levar em conta que o leitor, especializado ou não, exerce um importante papel na circulação de um nome de autor, pois a obra também vai sendo moldada com a influência do público, ou seja, à medida que a figura autoral vai construindo uma recepção, uma assinatura vai sendo forjada. É como se o autor, quando começasse a escrever, não tivesse uma ideia precisa de qual é a sua marca, porém ela pode se consolidar concomitantemente à ampliação da obra, porque o público contribui para que esse “estilo” seja delineado, sendo “fruto das avaliações dos leitores, dos pares e da crítica” (como afirma o crítico francês Jèrôme Meizoz) e não apenas de uma autocriação. Dito isso, vale notar como, na literatura contemporânea, as apropriações da obra (ou a produção de sentido como imagem, se quisermos usar os termos de Iser) são bastante influenciadas pelos posicionamentos autorais fora dela, pela performance do autor por meio de suas aparições físicas e virtuais.

Para exemplificar, voltemos aos últimos posts aqui do blog. Em “A autora, a entrevista e o romance”, Caroline Barbosa sinaliza a recorrência de análises literárias baseadas na performance autoral, atentando para o fato de que entrevistas de Carola Saavedra e resenhas sobre ela lançam mão de suas falas como norte para sugerir uma aproximação entre vida e obra da autora. Algo semelhante tem acontecido por ocasião da publicação de A ocupação, de Júlian Fuks, cujas entrevistas, como a citada por Luciene Azevedo em “O que é uma literatura ocupada?”, têm funcionado como chave de leitura para muitas análises sobre o último romance do autor. E ainda sobre as declarações dos autores fora da obra, Carolina Coutinho não deixa de mencionar em seu comentário sobre Algum lugar, de Paloma Vidal, que, a partir das entrevistas concedidas pela autora, tomamos conhecimento de um dado biográfico que se estende para o texto.

Dessa maneira, é possível arriscar que as exposições dos três autores são, de algum modo, apropriadas pelo público para estabelecer uma relação entre o que é dito nas aparições midiáticas e questões acionadas nos livros, ou seja, parece não bastar que a obra forneça elementos para que o leitor “preencha” seu sentido, porque os posicionamentos do autor também têm operado como porta de entrada para as formas como seu trabalho é lido e avaliado pela recepção. Nesse caso, ainda que o papel do leitor continue sendo imprescindível para “desvendar” o desenho no tapete dos textos literários, a figura autoral está, hoje, cada vez mais realçada nesse processo.