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Estratégias da autorrepresentação na literatura brasileira contemporânea

Samara Lima

Créditos da imagem: “Birth of Oshun”, de Harmonia Rosales

Há cerca de um ano, iniciei um projeto de iniciação científica intitulado “A autorrepresentação do negro no conto brasileiro: o retorno do recalcado”.

Longe de pretender fazer um retrato totalizante, a investigação pretendia mostrar a complexidade da ideia de autorrepresentação e a pluralidade do fazer literário dos escritores atuais que escolhemos para o corpus de análise: Cidinha da Silva, Geovani Martins e Cristiane Sobral. Assim, a investigação teve como mote a seguinte pergunta: quais foram os artifícios literários utilizados pelos autores negros para inscreverem a complexidade das maneiras de conceber a negritude?

bell hooks, em seu ensaio o olhar opositor: mulheres negras espectadoras (2019), tece uma discussão sobre como muitas produções fornecem “representações positivas ‘realistas’ que surgem […] como resposta à natureza generalizante das narrativas existentes”. Dentro desse cenário, a partir das leituras ficcionais e teóricas sobre a autorrepresentação foi possível perceber que muitas textualidades produzidas pelos escritores afrodescendentes propunham questionar as representações desumanizantes criadas pela branquitude impostas à sua raça, como a visão da mulher negra enquanto um corpo-objeto, por exemplo. Essa estratégia consiste, então, em tomar os valores da  branquitude para desconstruí-los. A narrativa constrói-se assim num diálogo cerrado entre o preconceito e a afirmação.

Durante a investigação, também nos deparamos com produções que, sem evocar ou se referir diretamente aos preconceitos da branquitude, optava pela atitude afirmativa, de inscrição dos valores capazes de fortalecerem uma (auto) representação positiva da negritude. O objetivo é o mesmo, mas há uma mudança na forma como alcançá-lo.

 Em meu último post, por exemplo, analisei o conto Metal-Metal, de Cidinha da Silva e comentei como os deuses e mitos que perpassam o universo da religião de matriz africana são recorrentes na poética da autora. É curioso notar como Cidinha da Silva não põe em tensão a imagem da religião de matriz africana com a representação negativa, que associa essa religião ao mal, um lugar comum do que há de pior no imaginário coletivo. Neste conto e em muitas outras de suas produções, da Silva produz uma maneira de pensar política e literariamente que explora diretamente o universo das simbologias e expressões africanas. Assim, não encontramos na narrativa nada que evoque os preconceitos correntes contra o candomblé, por exemplo, mas somos apresentados diretamente à lógica de representação de suas entidades, lógica que é incorporada pelos personagens e representada pela narrativa. A incorporação de divindades das religiões de matriz africana em sua literatura não é mero adereço, os deuses interferem na construção do sentido da narrativa e são motores de sabedorias ancestrais, como o encontro, no conto, entre Ogum e a protagonista, no post anterior.

Seja confrontando as representações estereotipadas sobre a negritude ou dando menos importância a essa tensão, o fato é que os autores, através da literatura e de diferentes recursos, questionam as problemáticas do negro na sociedade brasileira e buscam criar imagens humanizadas de suas identidades que, durante muito tempo, foram representadas de forma estigmatizada. 

“Je est un autre”: a autoficção de Héctor Abad Faciolince

Carla Carolina Barreto1

Créditos da imagem: Triple Self-Portrait (1960), Norman Rockwell. Óleo sobre tela e Ilustração da capa para The Saturday Evening Post, 13 de fevereiro de 1960- 113 x 88,3 cm- Norman Rockwell Museum, Stockbrigde, MA, USA.

“Escribir es despersonalizarse, dejar de ser lo que somos y pasar a ser lo que podríamos ser, lo que casi fuimos, o lo que podríamos haber sido”
(Traiciones de la memoria, Héctor Abad Faciolince)

Apresentar-se como tema da própria obra é, sem dúvida, uma tendência do
mundo contemporâneo. Na atualidade, tem sido cada vez mais frequente a presença de uma autoficcionalização do sujeito, uma sociabilização do íntimo, seja na literatura ou em black mirrors,- as escuras e brilhantes telas de monitores e smartphones, onde acessamos as redes sociais.

Nas artes plásticas, temos como interessante exemplo de autoficcionalização o triplo autorretrato (1960), de Norman Rockwell. Nessa obra, Rockwell nos apresenta uma autobiografia visual no momento em que se autorretrata triplamente na obra, materializando o que ele próprio imagina, deseja ou idealiza ser. Na imagem, temos o pintor de costas, seu reflexo no espelho e seu retrato em construção em uma tela, ou seja, temos planos “reais” e fictícios. O Rockwell refletido no espelho possui óculos enevoados, o que representa a dificuldade de enxergar a “realidade” tal como ela é e que, consequentemente, afeta a reprodução de sua própria imagem na tela. Na pintura, temos algumas discrepâncias do real, o que revela uma imbricação entre realidade e ficção. O Rockwell “real” e seu reflexo no espelho se correspondem perfeitamente, diferentemente do Rockwell do autorretrato da tela que se apresenta maior que o “natural”, está sem os óculos e o cachimbo em sua boca encontra-se em posição horizontal e não caído como vemos nas outras duas representações do pintor.

Semelhante ficcionalização de si ocorre, também com bastante frequência, na literatura contemporânea. O escritor colombiano Héctor Abad Faciolince pode ser tomado como exemplo. Traiciones de la memoria, narrado em primeira pessoa, mescla autobiografia, testemunho, romance e ensaio e nos traz reflexões sobre a vulnerabilidade e a efemeridade da memória. Toda a construção da narrativa nos permite interpretá-la como uma autoficção, pois apresenta uma ficção de fatos e acontecimentos reais, como a definiu Doubrovsky. Ou, dito de outra maneira, a autoficção é uma narrativa construída a partir da fragilidade da memória do personagem, que compartilha com o autor alguns detalhes biográficos, ou biografemas, como os chamava Barthes.

Apesar de conservar seu nome próprio e de apresentar elementos de sua própria vida,- como o assassinato do pai, a violência colombiana, seu exílio na Itália-, e incorporar à narrativa muitos documentos – como seu diário pessoal, fragmentos de jornais e revistas, fotografias e cartas-, Faciolince não assume um compromisso com o real, isto é, não firma um pacto autobiográfico com seus leitores. Constantemente, o narrador problematiza a veracidade de suas recordações, afirmando-a e negando-a, movimentando-se da verdade vivida a uma verdade fabulada na imaginação. Com isso, Abad Faciolince nos apresenta uma confusão entre autor empírico e autor ficcional, entre realidade e ficção, entre memória e História.

Ao se autorrepresentar em seu texto, o autor se ficcionaliza, se converte em um personagem de sua própria obra, em um outro elemento de ficção. O narrador constrói um yo ex futuro que, segundo Faciolince, corresponde a um “eu” com características que se deseja ter, um “eu” “que pudimos llegar a ser y que no fuimos” e que pode ser criado dentro da literatura. Dessa maneira, somos convidados a ler o autor não como uma pessoa biográfica, mas sim como um personagem-autor que é construído discursivamente: o “eu” é um outro, conforme a célebre frase do poeta francês Rimbaud.

Em sua obra autoficcional, Abad problematiza a autobiografia como uma
narrativa que apresenta o passado de forma integral, fiel e organizada. Por meio do uso da linguagem, o autor, ao escrever sobre si promove uma reflexão sobre as noções de “verdade” e “realidade”. Assim, percebemos que a autoficção, seja nas artes plásticas, seja na literatura, não está comprometida com mostrar uma verdade absoluta, mas quer explorar a ambivalência de toda subjetividade.

1Mestre em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Roraima (UFRR). Carla defendeu recentemente sua dissertação intitulada “Escrita e reinvenção de si: a memória em narrativas hispano-americanas contemporâneas” sob orientação da professora Tatiana Capaverde. Carla e a professora Capaverde integram o grupo de pesquisa Leituras contemporâneas, narrativas do século XXI.

A autorrepresentação do negro e o retorno do recalcado

Samara Lima

Créditos da imagem: Surreal Portraits – Henrietta Harris

Já faz algum tempo que não é novidade afirmar que os grupos marginalizados foram objetificados e representados na literatura brasileira a partir de visões que destoam da sua realidade social. Domício Proença Filho em A trajetória do negro na literatura brasileira (1998), por exemplo, discute o percurso do negro nas produções literárias e a forma como esses sujeitos foram estereotipados por meio de análise dos personagens de obras, tais como o conto “Setembro” do livro O corpo vivo (1962) de Adonias Filho. Aí, o personagem tomado para análise é a figura do escravo fiel, que encarna o símbolo da antiviolência.

Por outro lado, também não é rara a afirmativa de que a contemporaneidade vem sendo marcada por um contexto de efervescência cultural e política em que movimentos sociais buscam repensar diversas estruturas da sociedade e discursos cristalizados no imaginário coletivo. O campo literário brasileiro, que também se constitui enquanto esfera de produção de discurso, não fica imune a tais tensões.

O fato é que a disputa por representatividade nas esferas sociais e pela autorrepresentação põe em xeque, no cenário da literatura brasileira, as representações negativas fixadas pela tradição literária. Dessa forma, os sujeitos negros, que na historiografia literária foram apresentados sempre sob tutela, subalternizados e, muitas vezes, excluídos da representação, buscam manifestar em seus escritos o comprometimento com a etnia, uma vez que a manifestação literária tem a capacidade de (re)inventar positivamente essas tantas identidades.

Pois bem. É esta postura que os estudos culturais identificam como o retorno do recalcado, o retorno da identidade negra que por muito tempo foi recalcada no âmbito cultural ao condenar qualquer referência às características físicas e culturais dos negros.

É pensando na ideia de que cada vez mais esses sujeitos buscam e afirmam em suas obras a sua condição na realidade brasileira que meu plano de pesquisa atual utiliza-se do termo Recalque, criado por Sigmund Freud para caracterizar um mecanismo de defesa que se baseia na repressão da memória de eventos passados dolorosos.

O que chamamos, portanto, de retorno do recalcado diz respeito ao posicionamento afirmativo cada vez mais recorrente na literatura brasileira recente por parte dos escritores afrodescendentes como Cidinha da Silva, Cristine Sobral e Geovani Martins que reafirmam nos textos literários que produzem valores importantes para sua identidade racial.

Minha pesquisa, então, visa entender como esses escritores, por meio da literatura, discutem problemáticas da sociedade brasileira, como o racismo, e noções, não raras vezes estereotipadas, de identidade.