Arquivo da categoria: Guinada subjetiva

Formas de dizer eu também na teoria

Luciene Azevedo

Créditos da imagem: Lo bil, Flow, 2016.

Basta dar um passeio pelas mesas de exposição das livrarias para nos darmos conta da invasão das narrativas em primeira pessoa na produção editorial recente. Seja reivindicando uma voz coletiva que fala em primeira pessoa em nome de outros e outras ou escarafunchando uma memória pessoal que resgata fatos do passado e põe à prova o sujeito que se revela na narrativa, a primeira pessoa invade a ficção e a desloca.

É instigante e renovador que esse deslocamento na direção da não ficção imponha um problema para pensar a associação comum da literatura com a ficção. Mas quando percebemos que essa recuperação do pronome “eu” também avança no espaço da teoria, da reflexão presente em textos que aliam o (auto)biográfico à matéria sobre a qual se debruça o sujeito que se intromete no texto, ocupando um lugar de destaque ao lado das especulações que lança sobre o objeto a que se dedica, tudo torna-se ainda mais interessante.

Como Beatriz Sarlo não deixou de perceber, é surpreendente como depois do recalque do sujeito subjacente a tendências estruturalistas e pós-estruturalistas que dominaram as ciências humanas no final do século XX, a primeira pessoa retome a primazia não apenas invadindo a produção chamada de literária, mas também outros campos de saber como a história, como nota Enzo Traverso ao mapear a incidência cada vez maior da primeira pessoa na produção historiográfica dos último anos: “O objetivo não era, portanto, questionar o princípio da objetividade, que permaneceu no cerne da disciplina, mas sim notar que a objetividade histórica exigia estudiosos maduros, conscientes do seu envolvimento pessoal, capazes de se verem no espelho em meio ao seu trabalho, alertas para o caráter ingênuo e ilusório do positivismo historiográfico.”

Esse gesto já aparece no cenário americano com o nome de autoteoria. O termo sugere que há uma guinada subjetiva presente na própria produção do conhecimento que envolve uma especulação sobre o sujeito que também é objeto de si mesmo, além do objeto que investiga.

Ao traçar uma genealogia desse campo de estudos, Laurie Fournier reconhece que os textos de feministas negras como Audre Lorde ou bell hooks, dentre outras, contribuíram para o pontapé inicial e consolidando o lema “todo pessoal é político”. Mais recentemente, textos como Argonautas de Maggie Nelson, que reconhece que retira o termo autoteoria de uma entrevista e do procedimento metodológico de Paul B. Preciado, ou as publicações de Chris Kraus têm sido tratados como formas exemplares de obras nas quais a primeira pessoa crítica não dissocia sua autobiografia, a contingência das pequenas experiências vividas no cotidiano, das discussões teóricas que empreende, muitas vezes na forma de comentários, digressões, especulações que se desviam da forma de conclusões bem acabadas, modificando, portanto, não só o conteúdo, mas também a forma de fazer e pensar a crítica, a teoria.

Me ocorre que o livro recém-publicado de Paloma Vidal, Não escrever [com Roland Barthes], que reúne uma série de palestras-performances da autora sobre a investigação que realizava sobre o projeto inacabado de Barthes para escrever um romance, pode funcionar como um exemplo brasileiro de autoteoria.

No entanto, pra mim, não importa a novidade da nomenclatura ou a existência de exemplos para ratificá-la, mas me interessa pensar a ativação de uma outra maneira de escrever e pensar a crítica e a teoria como uma mescla de interpretação, análise, posição crítica, experiência cotidiana e pessoal.

O que pensar desse retorno da primeira pessoa? Ao contrário da rejeição mais ranzinza que acusa um cenário de espetacularização e narcisismo generalizado, talvez essa guinada subjetiva na teoria signifique uma abertura para uma forma de pensar que “integra a própria prática de fazer teoria como forma de pensar”, como diz Mieke Bal, e dessa forma oferecer uma compreensão matizada, diversa, ambivalente do que significa falar em primeira pessoa hoje.

Entre exposição e recolhimento

Luana Rodrigues

Créditos da imagem: Imagem registrada pela fotógrafa Mariana Vieira Elek e retirada do perfil no Facebook da autora Natalia Timerman.

No final de 2022, investi em uma pesquisa de iniciação científica que se propunha a explorar as nuances da autoria contemporânea, com um foco particular na escritora Natália Timerman. Além de sua carreira como psiquiatra, ela já havia dado vida a três obras: Desterros: histórias de um hospital-prisão, publicado pela Editora Elefante em 2018; Rachaduras, pela Editora Quelônio em 2019, e seu primeiro romance Copo Vazio, pela Todavia em 2021). Desde o início dessa investigação, a pesquisa teve como objetivo observar os trânsitos entre a atuação da autora na internet e  a  construção de um mundo ficcional acompanhando suas publicações (sobre isso falo em algumas outras publicações aqui no blog). A análise  indicou uma possível guinada autobiográfica, ou seja, uma mudança em direção a uma narrativa mais autobiográfica, na qual a autora se aventuraria a explorar aspectos mais pessoais e biográficos em sua exposição pública.

Durante o período de criação de seu mais recente romance, intitulado As Pequenas Chances, mudanças sutis se desenharam em sua trajetória. Timerman passou a compartilhar, de maneira mais frequente, fotografias e relatos acerca de seus pais, com um foco especial em seu pai, que já havia falecido. A partir desse momento, uma clara transição se delineou, tanto no tom de suas publicações, que se tornaram mais pessoais, quanto no gênero literário do novo livro que estava por vir. Hoje, estamos cientes de que o livro em questão se insere no universo do romance autoficcional, abordando temas de família e luto, com um enfoque especial na experiência de Natália, a autora que também assume o papel de personagem/narradora, diante das complexidades da perda e da memória.

Essa transformação nas postagens nas redes sociais e na temática de suas obras revela também uma interação entre elementos de sua vida pessoal e sua criação literária. É um mergulho profundo na fusão da realidade e da ficção, um território onde a narradora e a personagem se entrelaçam em uma dança intrincada, criando uma rica tapeçaria de reflexões sobre a vida, a morte e as histórias que tecemos a partir delas.

A análise sobre a atuação da autora em suas redes e de sua trajetória literária aponta para uma percepção muito consciente de Timerman de questões que são as de nosso tempo e também estão presentes no campo literário: não apenas a exposição autobiográfica do autor, mas também a exposição da intimidade na internet. Como pesquisadora doutoranda que se dedica ao estudo de autores que colocam em xeque o nome do autor, como Knausgård e Ferrante, Timerman expõe suas inquietantes dualidades: o anseio pela exposição e o desejo pelo recolhimento. Poderíamos pensar que sua incursão no terreno da autoficção em sua mais recente obra é mais um elemento que confirma essa ambivalência, já que o termo é calcado no pacto ambíguo que pede aos leitores para identificar e ao mesmo tempo não identificar autor e narrador/personagem.

Assim, publicando uma autoficção, Timerman parece ter encontrado um terreno fértil que acomoda as ambiguidades que permeiam sua jornada autoral. Este movimento representa, igualmente, um gesto de negociação em relação à exposição de sua própria imagem como autora, como se ela estivesse buscando um equilíbrio delicado entre o revelar e o ocultar, o pessoal e o ficcional, na construção de sua obra e também na construção de seu nome como autora.

A ficção e o documento

Luciene Azevedo

Créditos da imagem: Masahisa Fukase, Frieze, Kanazawa- 1978

A expressão “subjective turn” aparece nas investigações do filósofo Charles Taylor para caracterizar a transformação de uma ideia de sujeito que toma consciência de si e marca o início da era moderna: “uma nova forma de interioridade, na qual pensamos a nós mesmos como seres que têm uma profundidade interior”.

 Esse é o momento em que a ideia de sujeito ganha um novo sentido. As acepções da palavra em português ou espanhol guardam a memória dessa transformação, já que a grande virada de sentido é também o empoderamento da ideia do eu que não é mais resumido a sua condição de assujeitado às leis divinas. Ainda que as Confissões de Santo Agostinho sejam citadas como um momento chave dessa tomada de consciência, é fácil reconhecer que Agostinho é um fiel súdito às leis do seu senhor. É com Montaigne que o sujeito ganha uma autonomia ativa que o habilita a uma autoridade inédita na primeira pessoa. Ao tatear uma forma de escrever em seus Ensaios, Montaigne tateia também a matéria instável de sua identidade e ao lado de anotações e comentários de passagens clássicas sobre quase tudo, revela seu gosto por melões e o sofrimento com sua doença renal. A estranheza causada pela revelação dessas irrelevâncias é o indício mais concreto do que Taylor chama de “guinada subjetiva”.

No âmbito latino-americano, Beatriz Sarlo retomou a expressão para pensar a primazia do testemunho na virada do século XX para o século XXI. Não vou ter tempo de desenvolver a sofisticada argumentação de Sarlo no espaço deste post.  O que me interessa é aproveitar a ideia da virada subjetiva para pensar uma aproximação cada vez mais estreita da ficção com o caráter quase documental do registro da experiência de vida do sujeito que escreve e que está presente em muitas narrativas hoje. Às vezes, para revelar ao leitor o próprio processo da escrita, como faz o uruguaio Mário Levrero em seu Romance Luminoso, mas também para se inserir no próprio texto, sem se preocupar com a distância entre narrador e autor, revelando uma reflexão sobre uma inquietação com a própria identidade (como, por exemplo, as narrativas de Julián Herbert e de Eduardo Halfón). Mas isso que poderíamos chamar de uma desficcionalização do sujeito (e também do que conta, em certa medida) implica também um problema formal.

Mais recentemente em um ensaio escrito para comentar a encomenda para escrever um livro que registrasse as filmagens do último filme da diretora argentina Lucrécia Martel, Selva Almada expõe para o leitor a dificuldade de resolver o que parecia simples:

“Que tipo de livro queria fazer? Tinha claro que não seria um diário da filmagem, mas, então, o que seria? Uma coleção de histórias sobre a filmagem? Uma série de entrevistas com os atores, atrizes, técnicos e outros colaboradores do filme? Uma conversa com Lucrecia Martel? […] Decidí que não seria nada disso e, ao mesmo tempo, seria tudo isso. Crônicas breves, impressões pessoais sobre a filmagem, mas narrados por um narrador em terceira pessoa. Entrevistas convertidas em monólogos”

No pequeno grande livro, há um primeiro sobrevoo panorâmico pela locação de filmagens que registra o caos incômodo da natureza como cenário indomável da rodagem do filme e os diversos e múltiplos obstáculos para a realização do empreendimento. Aos poucos, o texto que se parece mais com notas, um rascunho para aproveitar depois, vão se aproximando dos figurantes, de seus pequenos dramas (“alimentação precária, pobreza e doenças”), abrindo espaço para que falem em primeira pessoa.

É curioso como ao lado da aposta no hibridismo formal, Almada escolhe desaparecer: “Não há uma cronista que seja Selva Almada, nem um personagem de cronista inventado por sua autora”. No entanto, assim como Almada avalia as orientações de Martel para o posicionamento dos figurantes durante a gravação de uma cena, essas indicações a respeito de seu desaparecimento na narrativa “são simples e precisas […] Parecem simples, mas não são”. Quem lê o conjunto de anotações breves (mas densas) sobre o cotidiano das filmagens não pode deixar de notar a presença marcante de Almada na escolha do que observa, no laconismo muito expressivo, das anotações que faz. E talvez essa ambivalência seja também um modo de interrogar a função representativa da primeira pessoa que volta a tantas narrativas hoje e uma tentativa de responder à contraditória convivência entre a espetacularização e a intensa consciência da mobilidade do vivido que marca nosso presente.