Arquivo do mês: novembro 2019

Por uma crítica inespecífica

Luciene Azevedo

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Créditos da imagem: Eikoh Hosoe, Kamaitachi #8, 1965

Já nos acostumamos a ouvir que boa parte das práticas artísticas hoje é marcada pela inespecificidade. Quando a crítica argentina Florencia Garramuño explora o termo, suas análises apontam para obras cujos
gêneros são imprecisos, e a denominação de arte parece imprópria, seja porque os objetos são “pobres”, seja porque a linguagem é sem metáfora ou o escritor e o poeta parecem apresentar apenas um relato do que viveram. Mas será que poderíamos pensar em uma inespecificidade que atinge também os modos de fazer crítica hoje? Aproveitando, então, o mote da inespecificidade seria possível pensar que alguns trabalhos críticos como Rio-Durham (NC)-Berlim. Um diário de ideias e Fragmentos reunidos de Fábio Durão ou O Mundo Inteiro como Lugar Estranho de Néstor Canclini deixam de lado requisitos determinantes para que dada produção seja considerada crítica?

Alberto Giordano, crítico argentino, que recentemente lançou dois livros que consistem em uma compilação de entradas críticas no facebook, plataforma que Giordano transformou em uma espécie de diário on-line para seus comentários, afirma que tem desejo de produzir um tipo de crítica que possa “suprimir as conjunções, as transições, interromper e não concluir, sugerir sem apresentar, afirmar e não oferecer provas”.

Mas vamos tomar o exemplo de Canclini. A própria obra é estranha e essa estranheza é acolhida como experimento. Os textos reunidos não pertencem a um gênero específico. Adotam o tom ensaístico, tateante, mas se valem de anedotas (“Pós-xerox”), fingem-se de entrevistas (“Lugar para a dúvida” e “O que não podemos responder”) e inventam personagens (como a voz do doutorando, presente em “Maneiras de citar” e “Supermercado de papers”). Há pouco aí que pode ser identificado à crítica, tal como estamos acostumados. Embora o autor dialogue com um número grande de fontes e em alguns textos faça citações direta das obras e autores evocados, não encontramos referências precisas, pois a recusa de apontar uma bibliografia é uma decisão metodológica apontada por Canclini: “seria contraditório com o sentido deste livro”, afirma.

 E que sentido seria esse? Embora o autor não faça uma reflexão sobre isso de forma explícita, me parece que a própria organização da obra quer apostar em valorizar mais as perguntas que as respostas (“trata-se de que os debates tornem visíveis as incertezas”…de “trabalhar o irresoluto das explicações”), em colocar em xeque o próprio lugar de autoridade do crítico, em expor situações de embaraço com a própria rotina e com os compromissos acadêmicos e em relacioná-los com a produção intelectual tout court.

Enfim, tudo isso aparece na forma do experimento crítico que quer flexibilizar ou contingenciar “precisões acadêmicas”, apontando-as inclusive como obsoletas em tempos de internet, pois “no fim das contas, na época do Google, basta colocar qualquer frase no servidor para ele nos enviar ao lugar de surgimento”.

Ao afirmar que é preciso então recorrer a uma “tormenta de gêneros” para problematizar a prática crítica e a prática do próprio crítico, Canclini parece sugerir um desejo de sair de um certo fazer crítico, de ir tateando na direção de uma inespecificidade que diz respeito não apenas à própria condição discursiva dos textos, que ao tematizarem episódios e identidades reais da vida acadêmica recorrem à ficcionalização, mas à própria condição do crítico como um pensiero debole: “Nem sempre está claro quem fala”, disse-me alguém que leu o rascunho deste livro. ‘Às vezes falta o sujeito’”.

Assim, a incerteza não deve ser encarada como lugar estranho à atitude crítica, mas pode ser  recuperada como ideia basilar, imanente ao próprio fazer crítico, pois como defende Canclini: “falar sob o ponto de vista da academia ou da erudição de uma disciplina não deveria nos poupar dessas dúvidas”.

A incerteza como estranheza é um estímulo a “imaginar novos modos de indagação”.  Em uma era em que as práticas digitais conduzem a um “novo regime simbólico”, não só o fazer crítico pode se reinventar como prática cultural, mas pode nos dar dicas de como encarar os desafios que nosso presente nos impõe.

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Teatro ou literatura?

Nivana Silva

Créditos da imagem: Mask of day by day – Paulo Zerbato (2011)

No meu último post, citei uma fala de João Paulo Cuenca, numa mesa da FLIP de 2016, em que declarava: “O que estou fazendo aqui agora é teatro, uma performance teatral, não tem nada a ver com literatura…”. Se no texto anterior o trecho me serviu para ilustrar o modo como o autor divulgou seu último romance, também de 2016, gostaria de utilizá-lo aqui como mote para o desenvolvimento da relação entre performance e assinatura.

  A declaração de Cuenca faz referência à própria performance e talvez essa declaração possa ser pensada em relação à atuação de autores que em entrevistas ou aparições públicas comentam a própria obra e, como uma espécie de “farol” para os leitores, “iluminam” ou orientam a leitura de suas obras. Cuenca, ao contrário, parece chamar a atenção do público para o fato de que o autor quando fala sobre sua própria obra também pode estar utilizando uma máscara, construindo uma persona autoral. Há ainda um outro aspecto que gostaria de realçar: não deixa de ser curiosa a ênfase dada, na afirmação, à dissonância entre performance e literatura. Se o autor está falando sobre seus livros, se está teatralizando “ao vivo” sobre sua obra literária, mas fora dela, não está mais fazendo literatura?

A questão me remete à outra, que vai além da exposição de Cuenca na FLIP: será que a performance dos autores contemporâneos é apenas uma espécie de apêndice desnecessário e nada tem a ver com literatura? Uma resposta negativa pode parecer óbvia, porém o que tenho pensado ultimamente é que talvez exista uma diferença, ainda que sutil, entre a performance operar como “efeito” de uma obra ou de uma assinatura e ser, por outro lado, utilizada como ponto de partida para a fatura do texto, configurando um elemento criador da assinatura.

No primeiro caso, acredito que a figura autoral, posicionando-se publicamente sobre o trabalho literário, revela um autor que se constitui fora do texto como projeção dele, isto é, como consequência de uma assinatura que está se formando ou que já circula. Referindo-se ao que chamam de a “máscara” e a “pose” de Paulo Leminski, Aguilar e Cámara, em A máquina performática: a literatura no campo experimental (2017), aludem à performance do poeta, destacando que ele “foi uma figura midiática [e] fez um efetivo desenho de sua pose […]. Durante sua vida, esculpiu-a em jornais, programas de televisão, entrevistas, leituras e recitais.[…]. O bigode basto parece encarnar o signo de uma vida exuberante que combinou o excesso e a tragédia, mas também uma espécie de assinatura singular para uma produção singular”, ou seja, uma performance  singular como desdobramento de uma assinatura singular, poderíamos dizer.

Sendo assim, como pensar a singularidade da performance num cenário no qual um bom número de autores lança mão dela, como um procedimento comum para aproximar-se do público leitor, divulgar a obra e aparecer comentando o texto? Se a “saída do papel” para ganhar os espaços midiáticos da contemporaneidade é algo que resulta da obra de vários autores hoje, então a performance, nesse contexto, não pode ser tomada como uma marca de exclusividade que detém a mesma singularidade da assinatura, como no caso de Leminski. Mas se formos para o outro lado da sutil diferença que expus e consideramos que a performance pode ser um dispositivo criador de uma assinatura e, em sentido mais amplo, “fazer parte” da literatura?

O que estou querendo dizer é que a performance do autor, suas poses e máscaras, podem contaminar a obra, como se impregnasse o texto e contribuísse para a circulação da assinatura. Essa, então, não seria apenas o estilo autoral, a marca identificatória que emerge com o texto, de dentro do texto, mas algo forjado também como resultado da movimentação do autor em torno e fora da obra, o que muitas vezes repercute numa performance textual.

Um bom exemplo disso é a série Delegado Tobias (2014), de Ricardo Lísias, para a qual o autor diz ter se aproveitado das repercussões sobre seu livro anterior, Divórcio (2013): “Me ensinaram como fazer um boato. […]. Eu incorporei o boato a minha criação artística”. Mais do que isso, é possível arriscar que Lísias incorpora a própria performance à “criação artística”, uma vez que sua disposição em “bagunçar o coreto” entre fato e ficção, catalisada pela extensão da história no Facebook, repercute na confusão narrativa que é Delegado Tobias, que leva ao extremo uma sátira sobre, nada menos do que, a autoficção. A série, não custa lembrar, culminou na suposta denúncia anônima sofrida pelo autor por “falsificação de documentos”, bastante disseminada por ele nas redes sociais e levada para as páginas de Inquérito policial: família Tobias (2016).

Desse modo, a performance fora do texto e, ao mesmo tempo, a propagação desse fora dentro da “obra”, demonstram uma estratégia do autor para  ser visto, lido, para chegar ao público, em nome de uma assinatura. Em outras palavras, demonstram uma forma de “fazer literatura” não restrita ao teatro autoral apenas como extensão dos livros, quando quem assina sai do papel para falar a uma plateia, o que reforça a porosidade das fronteiras do literário neste século XXI.

Machado de Assis e a Poética da Dissimulação

Samara Lima

Créditos da imagem: Lost Horizon I, 2008 (detalhe).

Em outro post meu, Falando sobre o silêncio, ao fazer uma pequena análise do conto O Caso da Vara (1899), busquei mostrar como Machado de Assis faz uma crítica à hipocrisia da sociedade e à crueldade do sistema escravagista ao mesmo tempo em que aparenta tratar de assuntos banais. A análise é fruto de alguns meses de leitura, durante os quais venho me debruçando sobre textos teóricos que se propõem a entender as estratégias literárias utilizadas pelo “escritor caramujo”, como o próprio Machado se definiu, para driblar os pensamentos consagrados no período em que vivia e se fazer, dessa forma, um homem de seu tempo e do seu país.

É pensando nessas estratégias e dribles que eu gostaria de discutir brevemente a capoeira enquanto metáfora para a leitura dos escritos machadianos, tendo como disparador reflexivo um trecho do livro Um defeito de Cor (2006), de Ana Maria Gonçalves, que me parece um exemplo emblemático para o debate proposto:

“Um bom capueira nunca deve mostrar tudo o que sabe, ou pelo menos deve fazer parecer que não mostrou, e para isso nem precisa ser forte, mas estar sempre atento e ser esperto. (…) a capueira é como uma conversa, um faz uma pergunta de supetão e o outro tem que ter a resposta pronta, e ganha quem faz a pergunta que o outro não consegue responder.” (p. 666)

Recentemente, ao reler essa passagem, não pude deixar de lembrar do texto A capoeira Literária de Machado de Assis de Eduardo Duarte, no qual a produção machadiana é entendida como uma poética da dissimulação. O que o crítico sugere, com base na ideia de capoeira verbal forjada por Luiz Costa Lima, é que assim como na capoeira existe o ato de gingar, a fim de confundir o adversário para surpreendê-lo de supetão, nos escritos ficcionais e jornalísticos do Bruxo do Cosme Velho, há uma ginga verbal que põe sob disfarce as denúncias muitas vezes propostas pela narrativa ao acomodar, no primeiro plano, amenidades e valores dominantes. Essa necessidade de dissimulação, como a utilização da ironia, do ceticismo e das mudanças do foco narrativo, segundo o teórico, é uma resposta aos leitores e às condições políticas contemporâneas à obra machadiana.

Vamos ver um exemplo dessas condições. O conto Mariana (1971) foi publicado no Jornal das Famílias num momento em que questões, como a instituição da Lei do Ventre Livre, eram discutidas no parlamento. Levando isso em consideração, como se posicionar, em uma sociedade racista e patriarcal, frente à problemática do negro num periódico destinado à família e ao público feminino?

Diante disso, é interessante notar que se, por um lado, o leitor depara-se com um conto que parece tratar de um reencontro entre velhos amigos que não se veem há muito tempo e que trocam confidências amenas, por outro, somos levados a notar como o que parecia um relato banal sobre uma história de amor (considerada, jocosamente, impossível por Coutinho, o narrador), guarda, dentre tantos questionamentos, um profundo debate sobre os problemas raciais no Brasil.

Mariana, a escrava “criada como filha da casa”, apaixona-se por seu senhor. Embora o relato seja narrado do ponto de vista de Coutinho, o protagonismo é assumido por Mariana e seu drama, pois ao contar aos amigos o ocorrido, Coutinho, sempre em tom ameno e jocoso, deixa claro que a paixão da escrava é uma impostura, um absurdo. Nesse sentido, o jogo literário entre o dito e o não dito foi a maneira que Machado encontrou de expor a suposta benevolência do bom tratamento dado à Mariana pela família de Coutinho e de fazer a crítica às mazelas da sociedade escravocrata, atendendo às expectativas de seu público leitor: senhoras e donzelas integrantes da Corte e da elite carioca que podiam se deleitar com um “caso” de amor.

Dessa forma, o leitor, pouco a pouco, é colocado à prova e é exigida dele uma capacidade de lidar com a capoeira verbal machadiana. Seja qual for a estratégia literária empregada por Machado de Assis, minha pesquisa visa estar atenta a cada detalhe da ginga literária no intuito de entender como o autor se compromete com a sua etnia mesmo quando trata de assuntos, à primeira vista, supérfluos.