Arquivo do mês: maio 2016

“Dois lados do efeito Ruffato”

Por Larissa Nakamura0,,17148385_303,00

O post desta semana é sobre a matéria de Leonardo Neto, chamada “Dois lado do efeito Ruffato”, publicada em março na Publish News. O texto é muito interessante, principalmente para quem acompanha a carreira de Luiz Ruffato nos últimos anos e seus desdobramentos no mercado editorial.

Neto quer discutir atualmente a repercussão que teve o discurso proferido por Luiz Ruffato na Feira de Frankfurt em 2013. A fala pouco elogiosa ao Brasil gerou uma grande polêmica no próprio evento, na imprensa estrangeira e brasileira, e entre os colegas de profissão. O que também nos importa, para além da recepção polêmica do discurso na mídia e academia, é o fato de Ruffato ter travado, na época, diversos acordos de tradução de suas obras com grandes e pequenas editoras europeias, principalmente alemãs. Três anos depois do ocorrido, qual é o saldo na carreira do escritor?

Leonardo Neto aposta, segundo depoimentos do próprio Luiz Ruffato, que no Brasil nada tenha melhorado em particular (principalmente em relação às vendas, e à recepção crítica da obra do autor) e sugere que o governo brasileiro passou a evitar a presença do autor em eventos oficiais em que o país é convidado ou homenageado. Por sua vez, no exterior, mostra-se crescente a demanda pelo escritor, pois não só está presente em eventos literários, como seus livros traduzidos venderam bem, vem recebendo convites para participar de coletâneas e para novos contratos de publicação de suas obras.

Diante de tais reações, entendemos que o resultado seria a existência de oposição entre a recepção estrangeira e a nacional à produção de Rufatto. Afinal, se o país de origem do escritor reage quase que indiferente (em termos de mercado), ou com o olhar suspeito sobre o artista, como sugere Neto, parece que o exterior o acolhe como uma boa aposta da literatura contemporânea. Sendo assim, uma notícia recente que não pode ser divulgada a tempo por Neto e que parece ratificar a ideia do interesse estrangeiro é o Prêmio Internacional Hermann Hesse a Ruffato e seu tradutor para o alemão, Michael Kegler. Não deixa de ser relevante mencionar que de acordo com a organização do prêmio literário uma de suas principais finalidades seria ressaltar a obra de um artista que não fora ainda devidamente valorizado.

Observando o percurso trilhado por Luiz Ruffato na direção da internacionalização de sua carreira, podemos afirmar que o autor parece investir nos frutos colhidos após a Feira de Frankfurt que podem garantir a ele a construção de um nome sólido e reconhecido em solo estrangeiro.

Link para a matéria:  Os dois lados do ‘Efeito Ruffato’

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Caros leitores do blog,

a partir de hoje estaremos publicando semanalmente um comentário relacionado ao objeto de pesquisa de cada estudante que atua como pesquisador no grupo Leituras Contemporâneas e são orientados pela professora Luciene Azevedo (UFBA), as postagens irão apresentar a indicação de um link, de uma matéria ou de um blog site que instigue o interesse pela literatura contemporânea.  Esses textos servirão como um modo de compartilhar com os leitores do blog  as descobertas de pesquisa dos estudantes e também como um convite a leitura e debate.

Curtos-circuitos e desconstruções

divulgação e-galáxia

Por Nivana Silva

Publicada pela e-galáxia em formato digital, a revista cultural Peixe Elétrico: livros e ideias, desde Julho de 2015, mobiliza, bimestralmente, reflexões e debates no âmbito das artes, trazendo algo sobre a contemporaneidade de forma “diferente”, conforme ressaltam os editores do periódico. O escritor paulistano Ricardo Lísias assina a publicação, ao lado de Tiago Ferro e de Mika Matsuzake, que também são idealizadores da e-galáxia. Inspirados, especialmente, pela extinta revista argentina Punto de Vista, o trio afirma, no editorial de estreia, ter como principal foco o livro, “no que ele tem de mais amplo e universal: o poder de instigar, provocar e fazer a cultura se mover”, endossando, contudo, que a publicação não visa abranger somente a literatura, mas as artes de um modo geral.

Já no seu quarto volume em formato e-book, Peixe elétrico edita, paralelamente, um blog que apresenta entrevistas, artigos de opinião, comentários e resenhas sobre diversos temas do mundo contemporâneo, sem perder de vista, é claro, o universo das artes. Assim como a publicação bimestral impulsiona “choques”, “sustos” e “conflitos” – palavras-chave que aparecem no já citado primeiro editorial – o blog incita discussões e inspira reflexões nas águas culturais a partir do “curto-circuito” do qual advém a eletricidade dos textos.

Navegando pela plataforma, fui fisgada por uma publicação de fevereiro deste ano – que considero, particularmente, com uma voltagem um tanto alta, devido aos meus interesses de pesquisa. Intitulado “Derrida, um egípcio”, o post, encabeçado por Lísias, traz uma entrevista com o pesquisador Evando Nascimento, grande conhecedor da obra do filósofo franco-argelino Jacques Derrida. O livro homônimo ao título da matéria diz respeito à tradução (realizada por Nascimento) de uma obra do filósofo alemão Peter Sloterdijk, dedicada ao pensador da desconstrução. Com o intuito de discutir o trabalho de Sloterdijk em edições posteriores, a Peixe-elétrico trava um diálogo com o tradutor de Derrida, um egípcio, levando em conta, também, a eloquência do legado derridiano, como sugere Lísias, que, na abertura da entrevista, enfatiza: “tudo o que diz respeito a Derrida me encanta e me parece misterioso”.

A conversa que a partir de então se dá entre Evando Nascimento e a revista coloca dois nomes próprios na mesma cena, Sloterdijk e Derrida, abrindo espaço para um tratamento inicial da obra do primeiro e reiterando a importância do arcabouço crítico derridiano para discussões em vários países, inclusive no Brasil. Fazendo jus ao título da revista e aos curtos-circuitos que ela deseja provocar no leitor, Nascimento relembra, brevemente, algumas contribuições do filósofo da desconstrução nos mais diversos campos do conhecimento, mesmo após a sua morte, em 2004. A inquietante –  e eletrizante – obra de Jacques Derrida, com todas as suas rupturas e questionamentos, abre espaço, ainda hoje, para reflexões acerca da contemporaneidade, da linguagem, da literatura, das artes e, nesse sentido, a entrevista e o tema que a permeia configuram apenas uma amostra do que é possível encontrar em Peixe-elétrico, blog ou e-book. Sendo assim, creio que uma das grandes razões para ler o periódico seja a busca por questões e temáticas, na seara das artes, que nos façam mergulhar longe das águas mansas e que, em direção oposta, fomentem o debate, nada monótono, e instiguem o leitor de várias formas, afinal de contas, como salientam os editores, “do conflito talvez surja alguma luz. Produzir cultura é incomodar”.

Fundo Bruno Tolentino: arquivo pessoal e documental de interesse literário

FINALE - MANUSCRITO COM RASURAS BT

por Nívia Maria Santos Silva

Já pensou se você pudesse entrar em contato com fotos, documentos, manuscritos, até mesmo bilhetes e passaportes, cartas e e-mails de um poeta ou de um escritor de que gosta muito ou sobre o qual realiza uma pesquisa?

O Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), da UNICAMP, nos oferece essa possibilidade. Lá se encontra o Centro de Documentação Alexandre Eulalio (CEDAE), no qual podem ser consultados, além de todo esse material que enumerei acima, cartões-postais, cartazes, áudios, recortes de jornais, revistas, livros, anotações, enfim, uma profusão de documentos que formam os Fundos pessoais de escritores, artistas e intelectuais e, até mesmo, de instituições. Foi lá que, em julho de 2015, dei passos importantes para a execução de minha pesquisa ao consultar o Fundo Bruno Tolentino (FBT).

A história arquivística do FBT é recente. Em 2011, o Instituto de Formação e Educação (IFE), detentor dos direitos autorais de Bruno, comunicou sua intenção de doar ao CEDAE o material pertencente a ele. Em 2012, essa doação foi aprovada pela Comissão de Especialistas para a avaliação de mérito e de importância do acervo documental (formado pelos professores Doutores Alcir Pécora, Mário Frungillo e Marcos Lopes) e se consolidou em 2013, quando o presidente do IFE, Marcelo Consentino, e seu diretor, Rodrigo Garcia, efetivaram a entrega do acervo.

O material do FBT ainda não apresenta como instrumento de pesquisa as planilhas de descrição do Fundo, e sim a listagem de documentos, e o sistema de arranjo não foi organizado, pois o acervo ainda não passou pela catalogação técnica do próprio CEDAE. Por isso, as condições de acesso estão sendo realizadas por meio de consulta limitada, e não de consulta livre como ocorre com acervos já catalogados. Isso quer dizer que, para ter acesso ao FBT, diferente do que acontece com os Fundos de consulta livre, foi necessário que eu solicitasse a autorização para consulta e reprodução diretamente aos representantes do IFE. Mas isso não foi problema, eles, prontamente, atenderam meu pedido, e todo esse processo foi devidamente mediado pelo próprio CEDAE que, representado pela sua diretora Flávia Carneiro Leão, deu-me toda orientação e suporte necessários.

Já como a permissão para a consulta, para a reprodução digital e a reserva no CEDAE realizada, parti para São Paulo. Durante a semana em que fiquei na UNICAMP, me deparei com um material rico e de idioma diverso (português, inglês, francês, espanhol e italiano). O FBT apresenta documentos que assinalam as atividades de Bruno enquanto professor, intelectual e, sobretudo, poeta. Em meio a cadernos, impressos, fotos, recortes de jornais e revistas, livros, documentos, cartas, fita cassete etc., há, especialmente, muitos manuscritos de poemas, suas rasuras, reescritas, versões.

O acervo contém, por exemplo, o Indexed Book o qual, chamado de Red Book, é um conjunto de dois cadernos da prisão de Dartmoor, nos quais, podem ser encontrados, escritos a lápis, esboços de poemas, dispostos como em um livro, com capa, epígrafe, dedicatórias e afins, muitos deles escritos e/ou reescritos durante os 22 meses em que esteve preso na Inglaterra por tráfico de drogas. Há textos, inclusive, inéditos e não apenas no Red Book, mas também em papéis avulsos e muitos impressos que trazem poemas que, de tão modificados, passaram a ser versões distantes dos textos publicados, o que nos revela o trabalho de repisar o poema, de retrabalhá-lo, de adiar a sua forma final. Essa prática pode ser confrontada e trazer aproveitamento crítico acerca de seu processo de composição e de sua demora na publicação.

Outro ponto forte do acervo são as correspondências que revelam muito de seu capital social, o contato que o escritor mantinha no campo com conhecidos nomes da literatura brasileira, tanto críticos quanto autores, como Antônio Cândido (que é também seu primo), Antonio Houassis, Nélida Piñon, nomes controversos como Paulo Coelho e, até mesmo, autoridades religiosas como Dom Eugênio Sales. Seus conteúdos evidenciam não apenas a relação que Bruno nutria com outros agentes do campo literário, como também registram sua relação com instâncias de legitimação, como a Academia Brasileira de Letras, e editoras, como Globo. Cabe ainda destacar as fotos, dentre as quais podemos encontrar escritores como Lygia Fagundes Telles, Moacyr Scliar e o poeta Alberto da Cunha Melo. Além de fotos em eventos da/na Academia Brasileira de Letras e de lançamento de seus livros.

Textos críticos sobre o comportamento polêmico de Bruno e sobre sua obra aparecem em recortes de jornais e revistas coletados pelo autor, revelando seu interesse pela recepção crítica. No acervo, há ainda muitas entrevistas que Bruno concedeu para diversos periódicos, sobretudo, nacionais, como O Globo e Veja, assim como clippings que as editoras enviaram para o escritor com toda a citação que sua obra teve nas mídias (matérias, notas, resenhas). De uma forma ou de outra, esse material nos mostra que, ao longo da década de 1990, Bruno Tolentino, era uma presença constante no jornalismo brasileiro, chegando até a ser entrevistado pela revista (para maiores) Ele Ela, com um título de gosto duvidoso, “Bruno Tolentino: a louca espada do verso”.

Uma semana de pesquisa demandou meses de triagem, tamanho foi o material consultado, mas sem dúvida está sendo bastante proveitoso. Os documentos reproduzidos estão sendo agora interpretados e integrados aos capítulos da tese que estão em fase de produção. Sua problematização vem trazendo rendimentos críticos importantes para pesquisa que caminha a passos largos para sua qualificação.

O jogo de espelhos em O motivo de Javier Cercas

Circus - Chaplin

Por Davi Santana

 Resenha

 O motivo

Javier Cercas

Francis, 2005.

         O primeiro livro do escritor espanhol Javier Cercas, O motivo, possui uma relação especial com o livro mais famoso do autor, Soldados de Salamina. Quando este foi publicado, em 2001, Javier Cercas era um escritor quase desconhecido. Lançado em 1987, o livro de contos com que ele estreou na literatura permaneceu numa espécie de limbo, do qual só saiu em 2002, quando Cercas, embalado pelo sucesso imprevisto de Soldados de Salamina, o relançou numa versão reduzida: dos cinco contos que compunham o livro original, apenas um passou pelo crivo do autor maduro, justamente o que emprestava o nome à coletânea.

            Além disto, O motivo é citado em Soldados de Salamina num trecho importante em que Roberto Bolaño, grande escritor chileno que é transformado em personagem por Cercas, fala ao próprio Cercas (que é o protagonista do livro), durante uma entrevista que concede ao escritor espanhol, que havia lido dois dos seus livros, El móvil e El inquilino. Do segundo, ele confessa, não se lembrava de muita coisa, do outro, entretanto, lembrava-se de “um conto muito bom sobre um filho da puta que induz um pobre coitado a cometer um crime para escrever um romance“. Este conto é justamente El móvil, isto é, O motivo (Francis, 2005), conforme a tradução para o português de Bárbara Guimarães que está em minha frente neste momento.

            Se estas obras possuem, como afirmei, um parentesco especial, isso não se dá apenas por causa das relações apontadas acima, que são meramente circunstanciais (muito embora o fato de um livro ser citado dentro do outro, do modo como isso é feito, pareça abrir um espaço interessante de associações, como se o autor estivesse dizendo “Olha, existe algo que une estas obras…”) E. de fato, as obras possuem uma série de semelhanças intrínsecas, muito embora, como afirma Francisco Rico no posfácio a O motivo, quem quer que chegue a esta novela levado pelo livro mais célebre do autor “perceberá mais facilmente as óbvias diferenças do que as não menos claras semelhanças. A principal dessas semelhanças, continua, é que ambos os livros têm como eixo central o ato de escrever uma narrativa – a própria narrativa que se está lendo – em confronto volúvel com a realidade”.

            Assim como Javier Cercas (o personagem) passa todo o relato de Soldados de Salamina preparando a composição de um relato sobre Rafael Sánches Mazas, n’O motivo, acompanhamos o processo de ideação e preparação de uma novela levado à cabo por Álvaro, o protagonista da novela. Álvaro é um advogado de profissão, que elege a literatura como o seu verdadeiro trabalho. Levado por uma ambição desmedida e piegas, ele projeta a escrita de um romance que abalará as estruturas da literatura espanhola.

            Como argumento de seu romance, elege a história de um escritor ambicioso que tenta escrever um romance ambicioso. Além do escritor, sua novela tem mais três personagens, todos moradores do mesmo edifício: um senhor austero que vive sozinho no último andar, onde mantém uma fortuna avaramente trancafiada num cofre, e um casal em crise financeira que mora no mesmo andar do escritor e que vê sua paz conjugal destruída paulatinamente, à medida que o escritor avança na escrita do seu romance.

            A partir daí, o relato desenvolve um paralelismo crescente entre o romance dentro do romance de Álvaro e o que se passa no plano real (i.e., a realidade do universo ficcional), o que cria um jogo de espelhos interessantíssimo. A começar pelo fato de Álvaro escolher como modelos para os personagens de seu romance pessoas reais, que moram no mesmo edifício que ele: o sr. Monteiro, um velho avarento, dono de uma pequena fortuna, que mora sozinho num apartamento do último andar e um casal  (Enrique e Irene Casares) vizinho de andar de Álvaro. Assim, à medida que o relato avança, os acontecimentos que estavam planejados por Álvaro para se darem no romance começam a acontecer também à sua volta.

            Escrito em terceira pessoa num estilo entre irônico e impessoal, esta novela demonstra laivos de virtuosismo no que diz respeito à estruturação do argumento, que é executado de maneira primorosa, a despeito do nível de exigência imposto pela forma. Devido a essa composição rígida, irmã dos romances policiais, eu não poderia revelar o final do romance sem furtar aos leitores do blog que quiserem ler O motivo pela primeira vez o prazer de serem surpreendidos com o desfecho da novela. De modo que me abstenho de uma leitura completa da obra na esperança de que essa resenha estimule novos leitores.

            O que eu posso dizer, no entanto, é que um dos grandes méritos dessa novela é instaurar uma ambiguidade quanto à questão de que se é Álvaro que provoca essas semelhanças, forçando seus vizinhos a agirem conforme o romance que planejara, ou se elas são causadas por uma instância fantástica. Para reforçar essa ambiguidade o autor dá indicações, ao longo do livro, tanto pra uma opção como pra outra. Nesta ambiguidade se percebe a predileção do autor pelo tema do confronto entre a ficção e a realidade; tema que Javier Cercas irá retomar, a partir de outras perspectivas e estratégias, em livros posteriores. O que faz dessa novela uma boa porta de entrada para o universo ficcional do autor, bem como para os interessados em estudar sua obra. Mas o seu interesse não se restringe aos especialistas. Muito pelo contrário, O motivo é uma leitura que tem valor por si só, pela importância dos temas e pela maneira como os aborda.

A língua que cria mundos

larissa

A passagem tensa dos corpos

Carlos de Brito e Mello

Companhia das Letras, 2009.

 

Por Larissa Nakamura

“A morte faz restos, e os restos concernem a mim”

  O texto desta é semana é a resenha do livro A passagem tensa dos corpos de Carlos de Brito e Mello. Trata-se do primeiro romance do autor, vencedor do prêmio  Governo de Minas Gerais de Literatura e finalista do Portugal Telecom,  Jabuti e Prêmio São Paulo de Literatura. Mello é professor universitário e também atua no Coletivo Xepa, associado às artes plásticas.

Antes de tudo, é preciso avisar aos leitores que o livro foge do que se espera de narrativas mais convencionais, principalmente por sua estrutura formal.  Capítulos curtos, linguagem fragmentada, uma pitada de humor negro e cenáriosnonsense. Assim, o leitor percorre a história de maneira vertiginosa e tem uma experiência literária que pode causar estranheza e desconforto. Sem querer darspoilers: é necessário não esperar respostas ou esclarecimentos, pois o livro garante ao leitor somente a possibilidade de diversas suposições e, ao final, ficamos apenas com situações absolutamente irresolutas.

O enredo do livro, que aparenta ser simples, carrega um grande trunfo: o narrador-personagem. A discussão sobre este nos garante a possibilidade de leitura sobre o próprio ato de escrita e o papel que o escritor exige/espera de si enquanto artista.

Mas vamos à trama: o narrador inominado (que aqui pode ser encarado como a Morte ou um espírito fantasma) registra e realiza, apenas com o único órgão/pedaço de corpo que possui, a língua, o trabalho de passagem de pessoas que morreram recentemente nas cidades do estado de Minas Gerais. Tal ofício permite que aos poucos ele possa constituir um corpo e esta é sua principal meta. Certo dia, se depara com a morte de um pai de família. Mas os parentes do morto fazem a vida seguir normalmente, não há enterro e, embora demonstrem plena consciência do que ocorrera, o cadáver continua a apodrecer na sala de jantar dia após dia. Eis que o narrador, não só curioso com o mistério que ronda as condições do falecimento, mas dependente do encerramento do cumprimento do rito da morte pelos familiares para seguir com seu “trabalho”, permanece na casa e, em meio a isso, gradativamente vai revelando o cotidiano esdrúxulo da família, como também breves flashbacks do passado do narrador.

É a figura inquietante do narrador que abre caminhos para uma análise mais densa da obra, embora, claro, haja outros elementos passíveis de investigação. É possível arriscar que embora o argumento principal da trama seja a morte, a leitura nos confere a emergência da vida diante dos despojos do fim. O que resta é muito pouco: o narrador-língua e os fragmentos de histórias são as sobras do que antes fora vivo e persiste por meio da narrativa:  “Sou um excluído que produz um discurso. A palavra é o único indício da minha presença, e é por meio dela que toda ação e toda matéria podem aqui se realizar.”

O narrador é por vezes obcecado ao que é tátil, ao que é vivo e aos restos que os mortais deixam escapar (comida, dejetos, secreções etc.). A língua se apresenta como uma força indispensável à existência, criando mundos e dando sentido a eles, já que o  saldo residual das experiências de vida e de morte é o que alimenta o exercício do narrar.

Mas uma das vantagens do livro é a pluralidade de perspectivas a serem exploradas na leitura. Carlos de Brito e Mello estreia no romance com estilo e linguagem particulares, apresentando um inquietante modus faciendi literário que merece ser apreciado.

Histórias e memórias em Azul-corvo, de Adriana Lisboa

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Por Neila Brail Bruno

Azul-corvo foi publicado pela primeira vez em 2010 pela editora Rocco e relançado em 2014 pela editora Alfaguara. O romance conta a história de uma adolescente de treze anos, Evangelina (também chamada de Vanja), que, após o falecimento da mãe, muda-se do Brasil para os Estados Unidos para viver com o ex-padrasto Fernando no estado do Colorado. O verdadeiro intuito de sua mudança, no entanto, é encontrar o pai biológico. Durante essa busca, Vanja recorda-se de acontecimentos do passado, especialmente no que se refere a fatos relacionados à própria mãe, Suzana, acontecimentos que sempre se destacam, no enredo do livro, pela riqueza de detalhes.

Adriana Lisboa tematiza em Azul-corvo questões históricas diretamente ligadas às operações militares ocorridas na Amazônia durante a Guerrilha do Araguaia. Nesse livro, ao pôr Fernando, um dos protagonistas da história, como guerrilheiro, a autora joga com a mescla entre ficção e realidade, já que muitos outros relatos surgem na narrativa sobre esse período histórico. Tais fatos, apresentados em um texto ficcional, fazem parte de um imaginário coletivo do qual a autora se apropriou para dar mais verossimilhança à história narrada.

 Fernando vai revelando algumas histórias do Partido Comunista do Brasil (PC do B) bem como as torturas impostas aos fundadores da União pela Liberdade e pelos Direitos do Povo (ULDP): “Quem se negava a colaborar apanhava. Às vezes era colocado de cabeça para baixo dentro de tambores cheios d’água. Enfiado dentro de um daqueles buracos do Vietnã, com arame farpado por cima”.

 No romance, o sujeito que rememora a própria história traz as marcas do passado, que é peça-chave da narrativa e constitui o presente das personagens:“Eu tinha treze anos. Ter treze anos é como estar no meio de lugar nenhum. O que se acentuava ao fato de eu estar no meio de lugar nenhum”.

É na sua vivência de trânsito e de deslocamentos que Evangelina cria o tempo da própria história. A narrativa evolui de modo que as situações vividas pela protagonista nos Estados Unidos com Fernando (tempo presente da narrativa) se entrelacem com as memórias de Fernando e da própria Vanja (tempo passado da história).

Essa imbricação entre o passado e o presente também está configurada na trama do próprio romance, já que as memórias da personagem Evangelina se apresentam a partir de recuos e avanços temporais. Um efeito de anacronia caracteriza a narrativa, pois desde o primeiro capítulo, ao anunciar que “o ano começou em julho”, a personagem regressa várias vezes ao passado na tentativa de justificar o fato de estar presente em uma casa, cidade e país que não lhe pertenciam.

LISBOA, Adriana. Azul-corvo. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.