Lílian Miranda
Créditos da imagem: Movement of Meditation, 2022. Cecilia Lamptey-Botchway.
Ao rememorarmos a construção da historiografia do Brasil e de outros países da América Latina, compreendemos que o controle das narrativas que compõem o que temos por história oficial sempre esteve sob o comando dos países colonizadores e ao longo do tempo essa estrutura se mantém refletindo nas mais diversas instâncias das sociedades latino-americanas.
A quem foi negado o direito de narrar? Saidiya Hartman – autora de Perder a mãe (2021) e Vidas rebeldes, Belos experimentos (2022) – em seu ensaio intitulado “Vênus em dois atos” sugere a fabulação crítica como sendo o método-guia de sua prática de escrita que joga com elementos históricos, “rearranjando-os, reapresentando a sequência de eventos em histórias divergentes e de pontos de vista em disputa”.
Com o desejo de dar continuidade ao percurso de pesquisa que iniciei em 2020 durante meu primeiro projeto de pesquisa de iniciação científica que explorava as relações entre literatura e documento na obra Um defeito de cor, irei investigar no mestrado as noções de fabulação crítica e curadoria, aprofundando um pouco mais a reflexão sobre o romance de Gonçalves e expandindo as discussões da iniciação científica.
Recuperando eventos registrados na história oficial do país e os horrores da escravidão, Gonçalves reconstrói situações e experiências vividas por sujeitos historicamente apagados dos registros documentais oficiais. Minha grande questão é: será possível articular a noção de curadoria (de documentos, narrativas, arquivos) com a noção de fabulação crítica, entendida como uma ferramenta utilizada pela autora para ficcionalizar os “não-ditos” pela história oficial?
A construção da história de Kehinde é uma forma de ficcionalizar o que os documentos não registram: a existência factual de Luisa Mahin, provável mãe do poeta Luiz Gama, mas também toda uma história silenciada de personagens que reaparecem resgatados do esquecimento. Para Hartman, “A fabulação crítica emergiu como um conceito e uma ferramenta para mim porque os arquivos e registros históricos são construídos pelo poder dominante, pela violência e por esses silêncios incríveis. Então, como seria possível narrar a vida dos escravizados, da classe trabalhadora, de quem não tem posse ou quem vive na miséria? Portanto, a fabulação crítica é tanto um desafio ao conhecimento produzido pelos poderosos quanto uma tentativa de honrar as memórias dos dominados”
Daí surgiu a ideia de aproximar um conceito das artes plásticas à literatura para entender a curadoria como um procedimento de elaboração da obra para pensar a relação entre história e literatura no livro de Gonçalves como um exercício de “fabulação crítica”, investigando melhor essa noção.
Tratando de um velho tema, a relação entre a história e a literatura, minha proposta de pesquisa para o mestrado quer incorporar as noções de curadoria e a ideia de fabulação crítica para arriscar a possibilidade de ampliar as perspectivas sobre essa relação.
Créditos da imagem: LOST, Eddy Kamuanga Ilunga, 2015