Arquivo do mês: julho 2023

“Toda fabulação é fabricação de gigantes”

Lílian Miranda

Créditos da imagem: Movement of Meditation, 2022. Cecilia Lamptey-Botchway.

Ao rememorarmos a construção da historiografia do Brasil e de outros países da América Latina, compreendemos que o controle das narrativas que compõem o que temos por história oficial sempre esteve sob o comando dos países colonizadores e ao longo do tempo essa estrutura se mantém refletindo nas mais diversas instâncias das sociedades latino-americanas.

A quem foi negado o direito de narrar? Saidiya Hartman – autora de Perder a mãe (2021) e Vidas rebeldes, Belos experimentos (2022) – em seu ensaio intitulado “Vênus em dois atos” sugere a fabulação crítica como sendo o método-guia de sua prática de escrita que joga com elementos históricos, “rearranjando-os, reapresentando a sequência de eventos em histórias divergentes e de pontos de vista em disputa”.

 Com o desejo de dar continuidade ao percurso de pesquisa que iniciei em 2020 durante meu primeiro projeto de pesquisa de iniciação científica que explorava as relações entre literatura e documento na obra Um defeito de cor, irei investigar no mestrado as noções de fabulação crítica e curadoria, aprofundando um pouco mais a reflexão sobre o romance de Gonçalves e expandindo as discussões da iniciação científica.

Recuperando eventos registrados na história oficial do país e os horrores da escravidão, Gonçalves reconstrói situações e experiências vividas por sujeitos historicamente apagados dos registros documentais oficiais. Minha grande questão é: será possível articular a noção de curadoria (de documentos, narrativas, arquivos) com a noção de fabulação crítica, entendida como uma ferramenta utilizada pela autora para ficcionalizar os “não-ditos” pela história oficial?

A construção da história de Kehinde é uma forma de ficcionalizar o que os documentos não registram: a existência factual de Luisa Mahin, provável mãe do poeta Luiz Gama, mas também toda uma história silenciada de personagens que reaparecem resgatados do esquecimento. Para Hartman, “A fabulação crítica emergiu como um conceito e uma ferramenta para mim porque os arquivos e registros históricos são construídos pelo poder dominante, pela violência e por esses silêncios incríveis. Então, como seria possível narrar a vida dos escravizados, da classe trabalhadora, de quem não tem posse ou quem vive na miséria? Portanto, a fabulação crítica é tanto um desafio ao conhecimento produzido pelos poderosos quanto uma tentativa de honrar as memórias dos dominados”

Daí surgiu a ideia de aproximar um conceito das artes plásticas à literatura para entender a curadoria como um procedimento de elaboração da obra para pensar a relação entre história e literatura no livro de Gonçalves como um exercício de “fabulação crítica”, investigando melhor essa noção.

Tratando de um velho tema, a relação entre a história e a literatura,  minha proposta de pesquisa para o mestrado quer  incorporar as noções de curadoria e a ideia de fabulação crítica para arriscar a possibilidade de ampliar as  perspectivas sobre essa relação.

Créditos da imagem: LOST, Eddy Kamuanga Ilunga, 2015

Elena Ferrante e As Margens da leitura/escrita

Allana Santana

Créditos da imagem: Francesca Woodman, Talking to Vince (1980) IN: https://artsandculture.google.com/asset/talking-to-vince-francesca-woodman/ZwGetftC6OXKpg

Ricardo Piglia, ao falar do escritor enquanto crítico, afirma que o processo de formação do escritor se dá a partir de uma relação particular com a leitura, com o uso de outros textos. E afirma que é a partir dessa posição que o autor, ao estabelecer essa rede de leituras, perlabora sua escrita. No caso de Elena Ferrante, essa rede de leituras aparece de forma bem definida. A autora italiana, em muitos de seus textos, faz questão de marcar autores, leituras e textos que provocam inflexões em seu processo de construção narrativa. É sobre essa relação entre leitura e escrita e a importância dela para a criação de uma assinatura autoral que gostaria de fazer um breve comentário.

Um exemplo interessante para essa reflexão é o poema de Emily Dickinson mencionado por ela em As Margens e o Ditado:

Na história, as bruxas foram enforcadas
Porém eu e a História
temos toda a bruxaria de que precisamos
todo dia entre nós

A relação que Ferrante estabelece com esse poema é, a princípio, semelhante ao do título do ensaio – Histórias, Eu – que sugere uma ligação intrínseca entre o lido, a subjetividade, a reflexão sobre acontecimentos que vão se acumulando ao longo da História e o processo de criação. É a partir dessa interação que a “bruxaria” acontece.

Esse mesmo poema aparece ao final do ensaio, com um comentário curioso:

“Algo mudou recentemente. Enquanto eu projetava A vida mentirosa dos adultos, pensei de novo na poesia de Dickinson que citei no início e percebi com grande atraso um momento importante naqueles versos. […]Não havia prestado atenção em como ‘eu e a História’ gerava um ‘nós’ e um espaço ‘em torno a nós’. […] O fio da narrativa, no tumulto da História, na multidão de personagens femininas com suas vicissitudes, para não correr o risco de se partir, agarrava-se ao eu e você.”

Aqui, Ferrante reconhece o desejo de discutir a condição feminina ao longo dos tempos, presente também na força do protagonismo de suas personagens, e sugere uma ligação para além do texto, da leitura ou da escrita: para além das histórias.

O que me interessa nessa relação entre o lido e o escrito é o fato de que ao comentar sua dieta de leituras e de afinidades eletivas, Ferrante convoca o olhar de sua recepção crítica para a análise do processo de formação de sua assinatura autoral. Nesse mesmo ensaio, Ferrante associa a Tetralogia Napolitana e A Vida Mentirosa dos Adultos à leitura de Dickinson, Elsa Morante e dos folhetins românticos. Esse ecletismo faz pensar não apenas na forma dos próprios romances, mas na maneira singular como se afirma como autora, atuando também fortemente como uma espécie de fonte de consulta para sua recepção crítica.