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“Alguém sabe quem eu sou, alguém espera por mim”

Lílian Miranda

Créditos da imagem: Cena do filme “Marte um” de Gabriel Martins

Meu primeiro contato com o termo afropolitanismo foi durante o desenvolvimento do meu último projeto de pesquisa da iniciação científica, que terminou no ano passado. O pensamento filosófico do autor camaronês Achille Mbembe em sua obra Crítica da Razão Negra põe em xeque a noção de raça e a compreende como “uma ficção útil de uma construção fantasista ou de uma projeção ideológica cuja intenção é desviar a atenção dos conflitos antigamente entendidos como mais verossímeis”.

 A crítica construída por Mbembe sugere que, enquanto construção social, negro é uma classificação relacionada a uma condição de existência subalternizada, uma categoria a quem foi negada humanidade. Para o autor, essa percepção econômica se inicia quando o negro é transformado em mercadoria , “a cripta viva do capital” e segue firme diante do curso neoliberal globalizado. A terminologia “negro” é uma invenção que só significa para simbolizar o “ser-outro”, ligado principalmente à relação de senhor e escravo. 

O trabalho teórico de Mbembe aponta para saídas possíveis a esse cenário que apostam numa realidade futura sem a carga negativa atribuída à raça, “mas isso só seria possível por meio da justiça, da restituição e da reparação”. Atrelado a isso, a noção de afropolitanismo é entendida como uma forma de ser no mundo, uma estilística ou tomada de posição política e cultural que recusa a identidade vitimizadora.

Desde que pensei o afropolitanismo como uma chave de leitura para o livro Um Defeito de Cor, tenho buscado outras obras que optem por um deslocamento da condição de negro vinculada a uma epistemologia branca e colonializada. Nas últimas semanas, pude ler e assistir dois trabalhos que contam histórias centradas em explorar subjetividades, sonhos e personagens-sujeitos negros e desejantes.  

 Sonhei com o anjo da guarda o resto da noite, de Ricardo Aleixo, autor e poeta intermídia, é um livro de relatos pessoais que contam sua infância em Campo Alegre, bairro periférico de Belo Horizonte, mas também narram experiências que o formaram como artista, relações e influências que foram fundamentais para sua identidade como poeta. Embora tenha explicitado na capa o subtítulo “Memórias”, o livro se apresenta quase como um conjunto de ensaios que reúnem reflexões teóricas, interpretações de poemas do próprio autor, e não dispensa uma linguagem literária e poética para relatar os acontecimentos de sua própria vida.

Em entrevista ao podcast “Página cinco”, episódio 148 “o menino que o sistema literário não conseguiu deter”, Aleixo explica que o livro foi resultado de uma sugestão do editor. Seu processo de escrita de uma “memória imaginante” tratou de selecionar os acontecimentos que ele considerou que seriam interessantes para seus leitores e o representavam enquanto artista que se considera afropolita e faz parte do que chama de áfricas dispersas, num sentido de dispersão, como utilizado na botânica (noção próxima à ideia de áfricas espalhadas, que ele atribui a Sheila Walker).  Ao ser questionado sobre os entrelaçamentos entre memória, realidade e ficção, Aleixo responde: “penso que a própria circunstância de ter me tornado escritor numa família pobre na periferia de Belo Horizonte já tem seu quê de ficcional”

Outra produção a ser lida que pode deixar ainda mais claro o modo como Mbembe  pensa o afropolitanismo é o premiadíssimo Marte um, filme de Gabriel Martins. Lançado originalmente no Festival Sundance 2022, o filme retrata a vida de uma família mineira de classe média baixa vivendo no Brasil de 2018 logo após a eleição do ex-presidente Bolsonaro (embora o filme não tematize em primeiro plano esse evento).

Deivinho quer ser astrofísico, enquanto isso, seu pai Wellington sonha que ele entre para um clube de futebol profissional, ao mesmo tempo Eunice, a filha, vive uma paixão e surge nela o desejo de sair de casa, já a mãe, Tércia, sofre com as consequências de uma experiência traumática que lhe ocorreu numa lanchonete. Ainda que se centre num núcleo familiar composto por pessoas negras que vivem com algumas dificuldades financeiras, esse não é o foco da história, cada personagem tem sua própria trajetória e camadas que os constituem, com dilemas complexos referentes a seus próprios sonhos e desejos, tratados com leveza e sensibilidade, numa trama que não propõe soluções mas desenrola numa teia de relações humanas que simboliza bem o que é a própria vida.

Entendo que histórias como essas enunciam um discurso em que a raça não se dissocia dos eventos narrados mas deixa de ser o foco principal. Tanto em Um defeito de cor e Sonhei com o anjo da guarda o resto da noite  quanto em Marte Um emergem gestos autorais que podem ser entendidos como afropolitanistas e desejam contar histórias que subvertem o determinismo ditado pela lógica colonial que ainda insiste em imperar sobre o imaginário brasileiro.