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Novos desenhos no tapete

Nivana Silva

Créditos da imagem: Blind light – Antony Gormley

No final do século XIX, Henry James escreveu uma grande novela intitulada O desenho no tapete e que foi apropriada pelo alemão Wolfgang Iser como mote inicial para a discussão empreendida em seu livro O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Narrada em primeira pessoa por um crítico literário encarregado de escrever uma resenha sobre Hugh Vereker (um famoso autor contemporâneo do crítico), o texto de James tematiza a incansável procura do narrador por certo “sentido oculto” no trabalho sobre o qual se debruça, procura essa motivada pelo próprio autor que, num encontro com seu resenhista, diz a ele “há em minha obra uma ideia sem a qual eu não daria um tostão pelo trabalho inteiro. […] é o ponto que cabe ao crítico encontrar”.

Disposto a decifrar “algo como um desenho complexo num tapete persa”, o narrador empreende sua busca incessante nas páginas impressas para captar uma suposta significação que estaria nelas, o que se revela infrutífero ao longo da narrativa. E é a partir daí que a novela dá espaço para que Iser, décadas depois, endosse seu argumento a respeito da apreensão do sentido como imagem, que não está dada de antemão, pois se materializa no ato da leitura e é resultado de um efeito experimentado pelo leitor. Sendo assim, o texto literário estaria aberto a diferentes preenchimentos de significados, colocando em xeque as visões imanentistas e as crenças em possíveis interpretações “corretas” daquilo que se lê.

Recentemente, pensando a relação entre autor e leitor na literatura contemporânea, a discussão de Iser me chamou a atenção por um motivo pouco enfatizado em sua análise: em O desenho no tapete, a procura do narrador pelo “verdadeiro sentido” impresso na obra é impulsionada pelo próprio Vereker, cuja fala, já citada, funciona como um gatilho para a investigação desenrolada em seguida. Quero dizer com isso que, para o resenhista, ouvir a declaração do autor foi fundamental para, mesmo sem sucesso, tentar perseguir “o ponto que cabe ao crítico encontrar”, questão que me remete aos modos como a recepção, atualmente, tem sido impactada pelas inúmeras exposições autorais.

Antes de qualquer coisa, é preciso levar em conta que o leitor, especializado ou não, exerce um importante papel na circulação de um nome de autor, pois a obra também vai sendo moldada com a influência do público, ou seja, à medida que a figura autoral vai construindo uma recepção, uma assinatura vai sendo forjada. É como se o autor, quando começasse a escrever, não tivesse uma ideia precisa de qual é a sua marca, porém ela pode se consolidar concomitantemente à ampliação da obra, porque o público contribui para que esse “estilo” seja delineado, sendo “fruto das avaliações dos leitores, dos pares e da crítica” (como afirma o crítico francês Jèrôme Meizoz) e não apenas de uma autocriação. Dito isso, vale notar como, na literatura contemporânea, as apropriações da obra (ou a produção de sentido como imagem, se quisermos usar os termos de Iser) são bastante influenciadas pelos posicionamentos autorais fora dela, pela performance do autor por meio de suas aparições físicas e virtuais.

Para exemplificar, voltemos aos últimos posts aqui do blog. Em “A autora, a entrevista e o romance”, Caroline Barbosa sinaliza a recorrência de análises literárias baseadas na performance autoral, atentando para o fato de que entrevistas de Carola Saavedra e resenhas sobre ela lançam mão de suas falas como norte para sugerir uma aproximação entre vida e obra da autora. Algo semelhante tem acontecido por ocasião da publicação de A ocupação, de Júlian Fuks, cujas entrevistas, como a citada por Luciene Azevedo em “O que é uma literatura ocupada?”, têm funcionado como chave de leitura para muitas análises sobre o último romance do autor. E ainda sobre as declarações dos autores fora da obra, Carolina Coutinho não deixa de mencionar em seu comentário sobre Algum lugar, de Paloma Vidal, que, a partir das entrevistas concedidas pela autora, tomamos conhecimento de um dado biográfico que se estende para o texto.

Dessa maneira, é possível arriscar que as exposições dos três autores são, de algum modo, apropriadas pelo público para estabelecer uma relação entre o que é dito nas aparições midiáticas e questões acionadas nos livros, ou seja, parece não bastar que a obra forneça elementos para que o leitor “preencha” seu sentido, porque os posicionamentos do autor também têm operado como porta de entrada para as formas como seu trabalho é lido e avaliado pela recepção. Nesse caso, ainda que o papel do leitor continue sendo imprescindível para “desvendar” o desenho no tapete dos textos literários, a figura autoral está, hoje, cada vez mais realçada nesse processo.

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Teatro ou literatura?

Nivana Silva

Créditos da imagem: Mask of day by day – Paulo Zerbato (2011)

No meu último post, citei uma fala de João Paulo Cuenca, numa mesa da FLIP de 2016, em que declarava: “O que estou fazendo aqui agora é teatro, uma performance teatral, não tem nada a ver com literatura…”. Se no texto anterior o trecho me serviu para ilustrar o modo como o autor divulgou seu último romance, também de 2016, gostaria de utilizá-lo aqui como mote para o desenvolvimento da relação entre performance e assinatura.

  A declaração de Cuenca faz referência à própria performance e talvez essa declaração possa ser pensada em relação à atuação de autores que em entrevistas ou aparições públicas comentam a própria obra e, como uma espécie de “farol” para os leitores, “iluminam” ou orientam a leitura de suas obras. Cuenca, ao contrário, parece chamar a atenção do público para o fato de que o autor quando fala sobre sua própria obra também pode estar utilizando uma máscara, construindo uma persona autoral. Há ainda um outro aspecto que gostaria de realçar: não deixa de ser curiosa a ênfase dada, na afirmação, à dissonância entre performance e literatura. Se o autor está falando sobre seus livros, se está teatralizando “ao vivo” sobre sua obra literária, mas fora dela, não está mais fazendo literatura?

A questão me remete à outra, que vai além da exposição de Cuenca na FLIP: será que a performance dos autores contemporâneos é apenas uma espécie de apêndice desnecessário e nada tem a ver com literatura? Uma resposta negativa pode parecer óbvia, porém o que tenho pensado ultimamente é que talvez exista uma diferença, ainda que sutil, entre a performance operar como “efeito” de uma obra ou de uma assinatura e ser, por outro lado, utilizada como ponto de partida para a fatura do texto, configurando um elemento criador da assinatura.

No primeiro caso, acredito que a figura autoral, posicionando-se publicamente sobre o trabalho literário, revela um autor que se constitui fora do texto como projeção dele, isto é, como consequência de uma assinatura que está se formando ou que já circula. Referindo-se ao que chamam de a “máscara” e a “pose” de Paulo Leminski, Aguilar e Cámara, em A máquina performática: a literatura no campo experimental (2017), aludem à performance do poeta, destacando que ele “foi uma figura midiática [e] fez um efetivo desenho de sua pose […]. Durante sua vida, esculpiu-a em jornais, programas de televisão, entrevistas, leituras e recitais.[…]. O bigode basto parece encarnar o signo de uma vida exuberante que combinou o excesso e a tragédia, mas também uma espécie de assinatura singular para uma produção singular”, ou seja, uma performance  singular como desdobramento de uma assinatura singular, poderíamos dizer.

Sendo assim, como pensar a singularidade da performance num cenário no qual um bom número de autores lança mão dela, como um procedimento comum para aproximar-se do público leitor, divulgar a obra e aparecer comentando o texto? Se a “saída do papel” para ganhar os espaços midiáticos da contemporaneidade é algo que resulta da obra de vários autores hoje, então a performance, nesse contexto, não pode ser tomada como uma marca de exclusividade que detém a mesma singularidade da assinatura, como no caso de Leminski. Mas se formos para o outro lado da sutil diferença que expus e consideramos que a performance pode ser um dispositivo criador de uma assinatura e, em sentido mais amplo, “fazer parte” da literatura?

O que estou querendo dizer é que a performance do autor, suas poses e máscaras, podem contaminar a obra, como se impregnasse o texto e contribuísse para a circulação da assinatura. Essa, então, não seria apenas o estilo autoral, a marca identificatória que emerge com o texto, de dentro do texto, mas algo forjado também como resultado da movimentação do autor em torno e fora da obra, o que muitas vezes repercute numa performance textual.

Um bom exemplo disso é a série Delegado Tobias (2014), de Ricardo Lísias, para a qual o autor diz ter se aproveitado das repercussões sobre seu livro anterior, Divórcio (2013): “Me ensinaram como fazer um boato. […]. Eu incorporei o boato a minha criação artística”. Mais do que isso, é possível arriscar que Lísias incorpora a própria performance à “criação artística”, uma vez que sua disposição em “bagunçar o coreto” entre fato e ficção, catalisada pela extensão da história no Facebook, repercute na confusão narrativa que é Delegado Tobias, que leva ao extremo uma sátira sobre, nada menos do que, a autoficção. A série, não custa lembrar, culminou na suposta denúncia anônima sofrida pelo autor por “falsificação de documentos”, bastante disseminada por ele nas redes sociais e levada para as páginas de Inquérito policial: família Tobias (2016).

Desse modo, a performance fora do texto e, ao mesmo tempo, a propagação desse fora dentro da “obra”, demonstram uma estratégia do autor para  ser visto, lido, para chegar ao público, em nome de uma assinatura. Em outras palavras, demonstram uma forma de “fazer literatura” não restrita ao teatro autoral apenas como extensão dos livros, quando quem assina sai do papel para falar a uma plateia, o que reforça a porosidade das fronteiras do literário neste século XXI.

Notas sobre assinatura e performance

Nivana Silva

Créditos da imagem: imagem do filme A Morte de J.P. Cuenca, 2015.
 - Será que você vai escrever um livro sobre isso aí? 
-Não.
(Descobri que estava morto, João Paulo Cuenca)

Considerando o “retorno do autor” e a emergência das novas tecnologias, podemos dizer que a formação de um nome de autor hoje se dá não somente por meio da obra, mas também encontra solo fértil fora dela, especialmente quando o autor se dispõe a lançar mão de estratégias para alcançar leitores, firmar-se no mercado editorial e ganhar reconhecimento da crítica. Nesse contexto, acredito que a performance autoral contribui, de maneira significativa, para a promoção de uma assinatura ou para mantê-la ativa no campo literário.

Muitos exemplos da produção literária atual apresentam narradores-personagens cujas identidades se confundem com as do autor empírico, trazendo-o para a trama textual como matéria prima da ficção e arrastando de roldão referências factualmente rastreáveis, o que não deixa de ser uma performance que dialoga com um certo fetiche exibicionista próprio da contemporaneidade. O leitor que quer ser espião da “vida real” de quem escreve e do processo de criação daquilo que lê coloca-se como um “cúmplice voyeurista” (SIBILIA, 2015) do autor, que, por sua vez, parece capitalizar essa demanda em prol da performance dos “eus” para explorar o limiar entre realidade e ficção.

Para além disso, a performance também extravasa o nível do texto, pois manifesta-se na disposição autoral para usar as tecnologias, as mídias sociais, participar de eventos literários e divulgar a obra. Assim, a exposição do autor ao lado e fora da obra é, muitas vezes, o ponto de partida para a leitura do próprio texto.

João Paulo Cuenca, nesse cenário, pode ser chamado de um autor “midiático”. Colunista, roteirista e muito ativo nas redes sociais, Cuenca, desde o início de carreira, apoia-se no suporte tecnológico para performar vozes e aproximar-se da recepção. Com a publicação de seu primeiro romance, Corpo presente (Planeta, 2003), o autor alimentava um blog, hoje fora do ar, de nome “Carmen Carmen” – alusão à personagem do livro – no qual trazia os bastidores da escrita e que funcionava como uma primeira janela de divulgação do romance de estreia. Nesse mesmo ano, Cuenca também ganhou visibilidade ao participar de uma mesa na primeira edição da Festa Literária Internacional de Paraty, devido ao lançamento do livro Parati para mim (Planeta, 2003), em que há um conto seu. Voltando à FLIP em 2016, dessa vez para falar do seu livro Descobri que estava morto (Tusquets Editores, 2016), o autor declara que: “O que eu estou fazendo aqui agora é teatro, uma performance teatral, não tem nada a ver com literatura. Estou falando de livros…”.

Enquanto no livro de estreia, a performance do “eu” fora do papel foi importante para chegar ao público e inserir seu nome de autor no campo literário, no último romance de 2016, Cuenca potencializa uma estratégia semelhante para manter a assinatura ativa. O livro, assim como seu contraponto, o filme A morte de J.P.Cuenca (2015) – com direção e atuação do autor – foram muito divulgados por ele no facebook, tanto em seu perfil pessoal, quanto numa página dedicada ao longa.

O investimento na performance percorre o livro cuja história, ambientada no Rio de Janeiro pré-olímpico, é contada pelo narrador-personagem João Paulo Cuenca, que também é escritor e toma conhecimento de “sua própria morte”, pois um corpo foi identificado e reconhecido com os dados pessoais do próprio Cuenca (nome, data de nascimento): “Descobri que estava morto enquanto tentava escrever um livro”, diz ele. O enredo de ficção que o autor garante ter realmente vivido em 2011 culminou na narrativa “baseada em fatos reais”, na qual são apresentados documentos oficiais, como o registro de ocorrência e o guia de remoção do cadáver, e alusões biográficas ligadas a Cuenca. A história não se resume a isso, porém é notável o jogo performático que pulveriza a(s) voz(es) do autor num procedimento de mise en abyme e que envolve o leitor, talvez menos interessado nas pistas sobre o cadáver do que em “procurar o autor” e ouvir essas vozes performadas que falam dentro e fora obra, forjando personas, trazendo referências “reais” e embaralhando as expectativas de quem lê.

As estratégias utilizadas, portanto, vão flertando com o público e fomentando um trânsito que não é apenas de fora para dentro da obra, mas da própria obra para fora: um dentrofora criado por uma performance do autor. Assim, o binômio performance e assinatura parece ter sido exitoso no caso Cuenca, ainda que encontremos, na literatura contemporânea, exemplos não tão bem sucedidos, mas isso fica para outra reflexão.

O não literário da literatura

Nivana Silva

Créditos da imagem: “Phase of Nothingness—Cloth and Stone” – Nobuo Sekine

A noção de “inespecificidade” da arte contemporânea, discutida por Florencia Garramuño, é recorrentemente acionada aqui no blog, a exemplo das reflexões acerca do diálogo da literatura com as artes plásticas e com as novas tecnologias, do encontro das narrativas ficcionais com a dicção ensaística, ou ainda, do estreitamento entre vida e obra.

Embora não mencione diretamente a expressão da crítica argentina, Luciene Azevedo alude ao tema ao apresentar, em um de seus posts, alguns títulos da literatura atual que, analisados na clave de uma suposta saída da ficção, com o hibridismo das formas narrativas e a exposição da obra inacabada durante o exercício de escrita, levam ao questionamento se esse pretenso esvaziamento do ficcional “implica [ou não] uma redefinição da ideia de literatura moderna para renovar os impasses à representação”.

Fazendo referência ao meu objeto de investigação a partir dessas questões, penso no trabalho mais recente de Ricardo Lísias, a série de e-books Diário da catástrofe brasileira, sobre a qual já falei, introdutoriamente, em outro post. Quando o primeiro volume ficou disponível para download, e o autor divulgava a proposta do material, o leitor concluía que não se tratava de uma narrativa de ficção, afinal de contas, a própria voz de Lísias estava sendo impressa no texto que buscava entender como chegamos ao resultado das urnas de outubro de 2018, indo ao encontro dos posicionamentos do autor nas redes sociais.

No entanto, mesmo configurando-se como um trabalho não ficcional, é possível arriscar a hipótese de que os e-books apresentam certa continuidade do modus operandi presente em livros anteriores do escritor paulistano, sobretudo porque, de alguma maneira, ainda estão inscritos no limiar entre vida e obra. O engajamento do “eu” Lísias diante do atual cenário político e social brasileiro, sua crítica e resistência materializadas em Diário da catástrofe brasileira, não deixam de estar relacionados, especificamente, a um investimento na sua própria literatura e na reafirmação do seu nome de autor no campo literário e, de forma geral, à reflexão sobre os modos de produção e circulação dos textos no contemporâneo.

Se a “inespecificidade” dos livros que traziam o nome próprio de Lísias e referências biográficas como parte fundamental das histórias, como O céu dos suicidas (2012), Divórcio (2013) e Delegado Tobias (2014) – sempre chanceladas por ele como ficcionais – estava justamente na performance que embaralhava as fronteiras entre o real e ficcional e entre autor e narrador, nos e-books, o jogo entre o literário e não literário sai da ficção, porém volta-se para questões caras à literatura produzida hoje e que reiteram algumas marcas autorais de Lísias.

Além de expor a descrição sobre a forma do material e como atualizá-lo, o autor reitera o inacabamento do Diário, referindo-se ao processo de escrita e ao próprio texto. Nesse sentido, a voz autoral sinaliza a necessidade de atualização para o acesso à “obra” em andamento que tensiona o lembrar e o esquecer, pois, de um lado, capta o caos político da atualidade para registrá-lo e reprisá-lo, ainda que de forma reinventada e, de outro, apaga o que já escreveu, apoiando-se na volatilidade que o suporte tecnológico pode proporcionar. E aqui é inevitável mencionar a escolha do gênero diário que, tradicionalmente, deveria arquivar a memória, mas é explorado – pelo menos à primeira vista – a partir da efemeridade.

À primeira vista porque, a despeito da performance em torno do apagamento e da isenção da responsabilidade autoral das versões substituídas, muito presente no início do trabalho, Lísias registra, revisa, relembra e, assim, vai criando um arquivo. Esse, apesar do nome, parece querer simular um “ao vivo” da literatura, apelando à receptividade do espectador não só quando o convoca a atualizar o e-book, mas também quando o conduz a refletir sobre a realidade na qual estamos imersos e sobre o contemporâneo.

Dialogando com o público leitor e aproveitando-se das tecnologias, Lísias reafirma algumas de suas marcas autorais, ao lado de um interesse genuíno em temas de cunho político e social que caracterizam sua assinatura desde o início da carreira, quando ainda separávamos em seus primeiros livros, com certa segurança, autor e narrador, realidade e ficção. A disposição em atuar, explicitamente, no limite entre vida e obra se consolida depois, mesmo com a defesa do caráter ficcional dos textos. Com Diário da catástrofe brasileira, nos deparamos com uma espécie de saída radical da ficção, mas é mesmo uma saída? Em nome de quê? Da necessidade do registro documental porque o que estamos vivendo parece ser tão fictício que a literatura não dá conta? Ou não está mais claro hoje o que é o literário da literatura?

As perguntas se multiplicam à medida que seguimos tateando as possíveis respostas, mas, enquanto as antigas certezas não podem ser completamente renovadas, talvez seja frutífero explorar o que o “gesto de sair e estar na literatura ao mesmo tempo, um estar foradentro”, para citar Josefina Ludmer, pode nos oferecer.

“Um e-book não é um livro”

Nivana Silva

Créditos da imagem: Wen Fang – The female book , 2011

Em A máquina performática: a literatura no campo experimental, Gonzalo Aguilar e Mario Cámara (2017) apontam que a performance “transcorre no tempo presente e seu registro é sempre pálido em relação ao aqui e agora que propõe”, ainda que seu caráter efêmero possa ser fundamental para a produção de sentido. Dentre os desafios de fazer pesquisa e escrever sobre o contemporâneo está o de acompanhar obras que podem surgir, atualizar-se e até mesmo serem apagadas de modo bastante veloz, resistindo à conservação e à reprodução.

Em tempos de tecnologias e de mídias sociais, a natureza duradoura e resistente da escrita está sujeita à efemeridade. Quando publicou a série de plaquetes Delegado Tobias (E-galáxia, 2014), Ricardo Lísias utilizou o facebook como suporte ficcional da história, criando um perfil fictício para um dos protagonistas da série, Paulo Tobias, fazendo circular postagens relativas à narrativa – como a também fictícia decisão jurídica que teria proibido a circulação dos e-books – e estimulando uma interação virtual com os leitores. No entanto, quem lê a série hoje não pode acessar mais o perfil do delegado, pois ele foi retirado da rede e, assim, algumas das possibilidades de apropriação do texto oferecidas pela tecnologia, que funcionava como uma espécie de extensão do texto, se perdem.

Apostando novamente no formato e-book, Lísias encerra 2018 com Diário da catástrofe brasileira I – transição, um trabalho in progress que utiliza como suporte a plataforma de autopublicação do Kindle (Amazon), projetado para ser o “primeiro [volume] de uma série que se estenderá até o final de 2022”. Trata-se de um texto não ficcional, que, como o próprio título indica, traz as entradas de um diário escrito por Lísias a partir de 28 de outubro de 2018, data do segundo turno das últimas eleições presidenciais. O exercício de “rememoração” a respeito de como chegamos ao início da catástrofe nacional é feito por uma voz autoral que apresenta informações e análises organizadas com o intuito de refletir sobre a atual situação político-social do país, bem como direcionar uma crítica ferrenha e irônica aos intelectuais que falharam em seus diagnósticos pré-eleitorais. A despeito do conteúdo pertinente, é notável a atenção dada pelo autor à forma do material – não só no texto, mas nos posts de divulgação nas redes sociais – com referências ao processo de escrita e, sobretudo, ao funcionamento do e-book.

A proposta de Lísias é que, a cada mês, o e-book seja atualizado e, de três em três meses, ocorra a publicação de um novo volume. Sendo assim, ao publicar a segunda versão de Diário da catástrofe brasileira I – transição, em janeiro de 2019, a primeira deveria ser automaticamente apagada, ou seja, o leitor que adquiriu o volume de número um teria seu exemplar atualizado, enquanto os novos leitores apenas poderiam ter acesso ao texto mais recente. Conforme esse planejamento, o autor se isenta da responsabilidade autoral do e-book que foi substituído, afirmando, em nota na segunda versão, que “a primeira foi publicada há um mês. Já não me sinto seu autor. Se você está lendo essa nota, continua no âmbito da criação. Quem não atualizar o Diário está fora do meu trabalho e portanto torna-se o único responsável pela versão anterior. Ela já não me diz respeito”.

A princípio, a atualização automática da versão do texto pela plataforma não ocorreu, e Lísias tem se empenhado em tentar reverter o problema com a Amazon, munido do argumento de que “um e-book não é um livro”. Contornado o imprevisto tecnológico, o leitor agora tem acesso à versão revisada mediante solicitação à empresa. Assim, há alguns aspectos interessantes que envolvem o empreendimento, sendo que um deles diz respeito à própria disposição do autor em testar a tecnologia e lançar mão da plataforma em prol de um modo de produção específico. Nesse contexto, a mise-en-scène em relação à autoria pode não funcionar, já que, na versão modificada, Lísias estabelece uma ponte com o volume anterior, indicando os trechos em que houve modificações e acréscimos. Logo, existe uma alusão direta à responsabilidade autoral de ambos os textos, sem contar que o leitor também pode encontrar uma maneira de salvá-los e cotejar o conteúdo por conta própria, burlando seu suposto caráter volátil.

Por outro lado, parece haver eficácia em incluir, no “âmbito da criação”, o leitor, pois esse tem diante de si os modos como o material vai sendo escrito, publicado e editado pelo autor, quem sabe outra maneira de lidar com seu manuscrito, que vai se alterando praticamente em “tempo real”. Aqui, então, uma pretensa efemeridade parece ser importante para impulsionar a reflexão em torno da forma, além das condições de produção e circulação do e-book, e talvez nessa reflexão resida um dos grandes interesses de Lísias, embora não esteja tão explícito quanto sua recorrente inclinação para a abordagem de temas de cunho político e social dentro e fora da obra.

Os lances de um enxadrista

Nivana Silva


Créditos: “To become a queen” – Victoria Ivanova

Ao problematizar brevemente, em meu último post*, a insuficiência do termo ficção para a análise de diversas obras contemporâneas, afirmei que isso se deve, dentre outras coisas, ao exercício de leitura que tais textos têm requerido do leitor, fazendo transbordar os limites da autonomia estética e da verossimilhança, já que trazem para a cena da interpretação elementos que se encontram externos ao material textual. Lançando mão do questionamento “Por que ficção?”, Luciene Azevedo, também aqui no blog, pondera que o romancista contemporâneo, ademais de arriscar-se a outras técnicas de referencialidade e de redimensionar as fronteiras entre o verossímil e o verdadeiro, fornece ao leitor uma narrativa diante da qual não se pode mais, simplesmente, sustentar a impossibilidade de acreditar na realidade do representado, tal como assegurado pela ficção moderna.

Retomo a reflexão para tentar desenvolver a análise sobre uma importante peça que tem contribuído para o jogo interpretativo e que se manifesta para além do texto: a presença autoral. No referido processo de redimensionamento de fronteiras da ficção contemporânea, essa presença pode influenciar nos modos como a obra é recebida, sendo fruto “de uma atuação, de um sujeito que ‘representa um papel’ na própria ‘vida real’, na sua exposição pública, em suas múltiplas falas de si, nas entrevistas, nas crônicas, nas palestras […]”, como elucida Diana Klinger ao tratar do chamado “retorno do autor”, à luz da ideia defendida pelo crítico americano Hal Foster.

Consideremos, assim, que o papel da recepção tem sido impactado por uma suposta intencionalidade autoral, cujo funcionamento, contudo, não seria aquele atrelado à noção romântica de autoria, relacionada à ideia de unidade criativa e pretensa origem que iluminaria o leitor por meio da obra. Menos que uma garantia para a interpretação ou uma inconteste chave de leitura, a presença autoral, no contemporâneo, parece expor o leitor a mais riscos que certezas, suscitando mais perguntas e ambiguidades e esticando, ao máximo, a tensão entre o real e o ficcional.

Nesse contexto, não poderia deixar de mencionar a literatura de Ricardo Lísias, pois me chama a atenção como sua presença autoral influencia a recepção de sua obra. Numa entrevista em 2014, ao referir-se aos seus romances O céu dos suicidas (2012) e Divórcio (2013), ambos narrados por personagens homônimos do autor, Lísias afirma que, embora suas histórias partam de “experiências pessoais e traumáticas”, “isso não significa que o livro [seja] de não-ficção”. E completa: “A leitura que alguns grupos da imprensa fizeram do meu livro Divórcio confirma a crítica que o livro faz a eles. O que eu não esperava era que as pessoas fossem cair como patos nas minhas esparrelas. Ingenuidade minha? Talvez… No romance O Céu dos Suicidas, Ricardo Lísias foi campeão Pan-americano de xadrez aos 13 anos. Eu nunca fui campeão de nada, sou um jogador canhestro […]”.

No caso de Divórcio, a confusão estabelecida pela imbricação entre o verossímil e o factual é acentuada se o leitor lê, por exemplo, “Sobre a arte e o amor”, texto que não foi publicado, mas circulou em uma lista fechada de e-mails. O que temos aí é uma carta enviada ao “Senhor Arnaldo Vuolo” (advogado que mantém um escritório em São Paulo, Vuolo Advogados Associados) como resposta à “Notificação extrajudicial subscrita pelo senhor em nome da minha ex-mulher”, conforme lemos no cabeçalho do texto. Anexas à carta, uma procuração assinada pela demandante, além da própria notificação endereçada a Lísias pela Vuolo Advogados Associados. É fácil, portanto, o leitor tomar como verdadeiros os elementos com os quais o autor brinca de fazer ficção, mas um tipo de “ficção” que se ancora de maneira recorrente em referências factualmente rastreáveis.

Mas sem querer cair na esparrela do que é ou não real e ficcional em Lísias, talvez seja mais produtivo pensar como o autor demonstra ter consciência de todo esse jogo e, em uma série de lances intencionais – embora não haja certeza sobre suas consequências – vai tensionando esses limites ao extremo com sua presença marcante dentro e fora da obra. Nesse sentido, arrisco dizer que há uma disposição de Lísias em atuar rastreando as apropriações e especulações críticas que são geradas a partir de sua literatura para assim tirar proveito da precipitação dos leitores quando caem na armadilha de que tudo está fundamentado na verdade.

Em outras palavras, a presença – que, a princípio, arrastaria o pressuposto da credibilidade e do esclarecimento – é uma peça a mais que infla e embaralha as possibilidades de interpretação. Lísias, então, vai flertando com tais equívocos da recepção e antecipando outros lances, os quais, ao que parece, são usados em prol de suas futuras estratégias narrativas e das formas como vem inscrevendo uma assinatura no campo literário.

*Este texto foi modificado em 23/02/2021

A literatura contemporânea e seus pactos

Nivana  Silva

Equilibrium-Under The Dust Studios - Londres 2011

Créditos da Imagem: Equilibrium – Under the Dust Studios (Londres, 2011)

No processo de pesquisa e de escrita sobre o contemporâneo, frequentemente estamos diante das consequências relacionadas à análise de objetos literários, os quais, a despeito da denominação, ultrapassam os contornos daquilo que, na modernidade, se convencionou a ser chamado de literatura. Uma das consequências está relacionada à sensação de insuficiência que certas noções e terminologias nos trazem para lermos, teoricamente, esses objetos, pois eles mobilizam questões que indicam a improdutividade de impor um arcabouço moderno para pensar tais “frutos estranhos” – usando a expressão de Florencia Garramuño – e, ao mesmo tempo, sinalizam a impossibilidade de prescindirmos de uma tradição que está bastante consolidada.

De modo específico, me chamam a atenção dois pontos que tocam na inserção do não literário na literatura e que não deixam de estar conectados. Primeiro, o questionamento do estatuto ficcional de muitas obras (substantivo que também acaba sendo posto em xeque nesse contexto) e, em segundo, a necessidade de problematização das implicações éticas que emergem de algumas manifestações do contemporâneo.

Tenho pensado que as interpretações e apropriações críticas de diversos desses textos requisitam um exercício de leitura que parece extrapolar os limites do pacto ficcional e colocar em cena elementos que, além de muitas vezes encontrarem-se exteriores ao universo literário, estão fundidos à própria figura autoral, não somente àquela que atua no campo e performa máscaras e posições de sujeito, mas também ao que poderia ser chamado de autor empírico, que arrasta de roldão para dentro da obra os supostos fatos sobre sua vida.

E é aí que a questão ética pode ser alvo de reflexão, principalmente quando essas menções biográficas se capilarizam da instância do “eu” para a do “outro” e põem em tensão as fronteiras entre o público e o privado, revelando pessoas e situações, ligadas a referências rastreáveis fora do literário, no interior de histórias recorrentemente chanceladas como (auto)ficção. A título de exemplo, basta lembrarmos de alguns casos envolvendo a exposição da intimidade alheia na literatura e que têm final trágico, como a acusação pública feita a Serge Doubrovsky de que a morte de Ilse Doubrovsky, com quem era casado à época, teria sido provocada pela leitura da narrativa de cunho autoficcional – Le Livre Brisé – que trazia detalhes do alcoolismo da mulher.

No Brasil, Ricardo Lísias fez circular por e-mail, em uma lista de “admiradores de literatura”, uma carta de resposta a uma suposta intimação judicial (que aparece anexada à carta com a assinatura dos advogados e da demandante). Depois da publicação de Divórcio, que relatava detalhes do fim do casamento do protagonista que mantém o mesmo nome do autor, sua obra foi questionada eticamente pela exposição da intimidade que pertence também à outra pessoa envolvida, já que havia rumores de que o autor tinha se separado recentemente. Um dos elementos que atravessa esses exemplos e tantos outros da literatura contemporânea parece ser o mecanismo da referencialidade, o que reverbera nos protocolos de leitura das obras.

Nesse cenário, talvez seja possível levantar a hipótese de que tais expressões literárias têm colocado em conflito a história contada com a ideia de verdade, o que vai de encontro à definição do ficcional como entendida na modernidade, em que a “pretensão de verdade e uso da ficção não estavam em contraste: os escritores descobriram que a validade geral do romance dependia da natureza explicitamente fictícia de seus detalhes”, como afirma a crítica inglesa Catherine Gallagher no ensaio intitulado “Ficção”.

O que estou tentando dizer nessa breve reflexão é que a natureza de muito do que ainda é chamado de ficção hoje tem requerido do leitor um exercício que frequentemente faz minar o conhecido pacto ficcional – que nos faz aceitar o texto literário como internamente coerente e verossímil, independente de uma referencialidade externa – já que traz à tona elementos que forçam o textual na direção de um “fora” do texto.

No entanto, por mais que o referido pacto se apresente de outra maneira (ou até inexista do modo como tradicionalmente o conhecemos) em um bom número de exemplos da literatura contemporânea, ainda nos falta uma ancoragem teórica consolidada para analisarmos o fenômeno, e nesse lugar reside a sensação de insuficiência à qual me referi no início do post. Usar o termo ficção para obras que fraturam o perímetro da autonomia estética ainda é uma confortável saída, embora saibamos que é menos frutífero nos debruçarmos sobre a aplicação da terminologia, do que problematizar a questão e tentar renovar as chaves de leitura.

*Este texto foi modificado em 23/02/2021

Nome próprio, nome de autor

Nivana Silva

Equilibrium - Tim Head - 1975

Créditos da imagem: Tim Head – Equilibrium (1975)

Nomear, conferir um nome a alguém ou a algo, é uma forma de identificação e de referência, sobretudo no caso dos nomes próprios dos seres humanos, que designam e particularizam quem é nomeado, estabelecendo um vínculo específico entre o nome e seu portador. No âmbito da literatura, lidamos, constantemente, com o surgimento, a propagação, a repetição e até mesmo o apagamento de muitos nomes próprios associados a obras literárias, caso em que, para além de um nome próprio, somos colocados diante de um nome de autor.

Em sua famosa conferência “O que é um autor?”, Michel Foucault afirma, a título de exemplo, que uma carta privada possui um signatário, mas não um autor, isso porque pondera que um nome de autor não é um nome próprio como os outros, ou seja, seu funcionamento está imbricado a discursos (não se tratando de um discurso cotidiano, como ressalta o francês), que detêm certo estatuto e devem ser recebidos de determinada maneira em uma sociedade. Sendo assim, poderíamos dizer que um nome de autor estaria entrelaçado a certos tipos discursivos de caráter singular, remetendo, na literatura, a traços de identificação, presentes na obra, que contribuem para construir uma assinatura.

Comumente, esses traços que permitem identificar uma assinatura literária são relacionados a procedimentos de escrita, que estão disseminados, de modo particular, nos textos atrelados a nomes de autores, quer dizer, configuram marcas que se referem a um sujeito autoral, permitindo identificá-lo, especificamente, e distingui-lo em meio a outros nomes. De certa forma, é desse entendimento que parte a reflexão do crítico português Abel Barros Baptista em A formação do nome (2003), quando advoga que na inscrição de um nome de autor ocorre, simultaneamente, a alusão àquele que assina e à sua obra, fazendo emergir o que nela se repete e/ou o que a torna única, ou ainda, em outras palavras, o que nela faz apontar para um determinado autor e não para qualquer outro.

Vale ressaltar que a argumentação de Baptista se desenha de maneira a restringir a obra (e a formação do nome) ao texto literário, isto é, às manifestações escritas assinadas por um autor, questão que parece ser revista na literatura contemporânea. Nesse sentido, tenho apostado na hipótese de que a construção de uma assinatura, dizendo respeito a um nome próprio e, mais do que isso, a um conjunto de marcas identificatórias atinentes à autoria, transpõe os limites do “dentro” do material textual.

O que quero afirmar é que em um contexto no qual o autor está propenso a se envolver com a mídia e manter uma comunicação pública, como um modo de se engajar na “vida real” e de seduzir uma audiência maior (como trouxe em outro post), temos um sujeito que se dispõe, intencionalmente, a atuar não só no texto – quando, por exemplo, cria personagens homônimos, ou fragmenta sua voz autoral em múltiplas personas– mas também no engendramento de um eu, que transita também fora do material textual,  que cria e influencia as interpretações e especulações críticas vindas do público leitor (abarcando também uma parcela ampla e indistinta oriunda da Internet), cujo papel pode ser determinante para a formação do nome de autor e de sua obra.

Não posso deixar de mencionar, nesse cenário, o nome de Ricardo Lísias, que remete não somente ao sujeito que assina os romances (?), mas à performance do autor nas redes sociais, à sua atuação marcante como divulgador do próprio trabalho e, é claro, aos imbróglios jurídicos e políticos, que atravessam a sua literatura. Esse conjunto de traços que ultrapassam o texto, amalgamados ao próprio material textual (que, de maneira recorrente, lança mão do “fora”), é relacionado, quase de imediato, ao nome de Lísias, permitindo que identifiquemos e façamos referência ao seu nome de autor para além dos limites das manifestações escritas e da assinatura impressa na capa dos livros.

 

 

 

“Troque o jornal pelo e-mail”

Por Nivana Silva

Tabula Rasa_Charles Sandison

Créditos da Imagem: Charles Sandison – Tabula Rasa

Em seu recente post sobre as intrincadas relações entre autores e editores, Neila Brasil comenta o fenômeno da autopublicação por meio das plataformas de financiamento coletivo para observar como a atividade editorial vem sendo impactada pelas novas tecnologias. Podemos dizer que a Internet configura-se como um lugar profícuo para os escritores do contemporâneo, seja no que diz respeito à circulação e publicação independente, seja em relação à divulgação de suas obras e à possibilidade de estreitar o diálogo com o público leitor.

Nesse cenário, o escritor, iniciante ou não, pode encontrar vantagem nos espaços virtuais para que seu trabalho circule, sobretudo se contar com os meios para alcançar leitores através da rede. De modo exemplar, nos deparamos com os vários blogs de literatura que também são, hoje em dia, interessantes veiculadores do que é produzido na contemporaneidade. Alguns deles, já citados aqui (como em um post de Davi Lara),  dedicam-se ainda à crítica e à tradução, estreitando os laços entre o leitor e a emergente produção do nosso tempo.

Contribuir para essa aproximação parece ser uma das propostas do projeto “Para ler escritoras”, que, recentemente, foi bastante compartilhado nas redes sociais. Idealizado pela escritora e professora curitibana Gabriela Ribeiro, a iniciativa nasce com o objetivo de divulgar a literatura contemporânea de autoria feminina, recebendo textos escritos por mulheres que, em seguida, são enviados, semanalmente, aos leitores que cadastram seus e-mails na página do projeto, cuja frase de abertura, “Troque o jornal pelo e-mail”, sinaliza a influência do meio digital sobre os tradicionais suportes e formas de leitura. A cada domingo, então, um novo texto ficcional chega à caixa de entrada do usuário, que também pode submeter textos à curadoria do “Para ler escritoras”, conforme informação na nota de rodapé das mensagens.

Até o momento, os contos de Natalia Borges Polesso, Moema Vilela e Sheyla Smanioto foram encaminhados ao correio eletrônico dos leitores cadastrados e as produções ficam disponíveis também on-line. As três autoras dividem a experiência de já terem livros publicados, serem finalistas de importantes prêmios literários e graduadas ou pós-graduadas em Letras e, apesar da incipiente carreira literária e do desconhecimento de suas obras por um público mais amplo, o compartilhamento de suas produções nas mídias digitais pode contribuir para a circulação de seus nomes como autoras.

A proposta de Gabriela Ribeiro faz parte de um empreendimento maior, a Escola de Criação Ficcional Escrevo, sediada em Curitiba, que oferece cursos da chamada escrita criativa. No site da escola, em que é possível encontrar detalhes sobres as aulas, informações sobre a Escrevo e alguns textos variados na sessão “Etcetera”, temos o link para acessar o “Para ler escritoras” e registrar o e-mail. Se não podemos identificar exatamente uma relação direta entre o suporte de publicação e a produção dos textos, já que dois dos textos ficcionais enviados ao e-mail dos leitores fazem parte de livros já publicados em papel pelas autoras, o projeto é uma indicação de que as plataformas virtuais podem ser exploradas para novas formas de divulgação literária e buscam conquistar novos e outros leitores.

Fragmentando identidades autorais

Por Nivana Silva

Créditos da imagem: Quantum Cloud V – Antony Gormley (1999)

Não é novidade afirmar que uma das marcas vinculada ao nome de Ricardo Lísias diz respeito ao modo como o escritor transita entre a ficção e a realidade. Essa característica é muito recorrente nas obras do paulistano circunscritas sob a chamada autoficção, que, ao trazerem narrativas com personagens homônimos ao autor, além de fatos biográficos, tornam difusas as fronteiras entre o real e o ficcional, como acontece em O céu dos suicidas (2012), Divórcio (2013) e a série de plaquetes Delegado Tobias (2014). Lembremos que essa última, devido às referências mais que literárias, culminou no (ficcional) Inquérito Policial: família Tobias (2016), um livro-objeto, reunindo documentos de uma investigação, sobre o qual fiz um comentário em outro post.

A exposição de Lísias em Delegado Tobias e nos desdobramentos reais que circunstanciaram a obra é um elemento que – ao lado de outros movimentos, calculados ou não, do autor – contribui, de algum modo, para a inscrição e o reconhecimento de seu nome no campo literário, ao mesmo tempo em que favorece a fragmentação da identidade autoral em múltiplas personas e subjetividades. Para pensar a questão, podemos considerar, inicialmente, que um nome de autor está ligado a uma pluralidade de discursos, firmando um gesto signatário ou, nas palavras do professor Leonardo Pinto de Almeida (2008), “o nome do autor é a marca que possibilita unificar, delimitar, referenciar saberes sob a lápide de um território específico: a assinatura”.

Desenrolando um pouco mais, é possível dizer que, na contemporaneidade, esse nome de autor, ao conectar-se a uma pluralidade discursiva, faz emergir uma multiplicidade de facetas e de posições de sujeito que contribuem para liquefazer uma suposta identidade estável por trás de sua assinatura. Ao que parece, os trânsitos dentro e fora do universo literário, sintetizados na performance autoral, corroboram a fragmentação do autor em várias vozes que subjazem a seu nome.

Sendo assim, as obras que embaralham as fronteiras entre o real e a ficção são emblemáticas, pois, performando “eus”, tendem a inflar ainda mais o jogo entre as identidades e a assinatura. Nesse contexto, talvez possamos arriscar a seguinte hipótese: a pulverização e a sobreposição de vozes do autor colaboram para diluir uma pretensa unidade da identidade autoral, apesar de, ao mesmo tempo, alicerçarem o lugar singular da assinatura, imortalizada no gesto de escrita.

Voltando a Delegado Tobias e desdobramentos, nos deparamos com pontos de dissolução da identidade autoral, na medida em que ela se ramifica e revela personas, ora por meio da ficcionalização do “eu”, ora por meio da exposição do escritor, que insere o registro do “real” no texto, mas, simultaneamente, declara o status puramente ficcional da narrativa. A título de exemplo, cabe mencionar a performance do autor/personagem Ricardo Lísias, no booktrailer que divulgou Inquérito policial: família Tobias, declarando “É um texto de ficção […]. Meu, é literatura policial, eu inventei tudo, não é verdade!”.

Nessa manifestação de facetas e vozes, a identidade do autor encontra-se indecidível, dentro e fora da obra. Entretanto, creio que esse movimento de fragmentação e diluição reverte-se na recepção do trabalho, nas especulações críticas sobre ele, nos protocolos de leitura e, desse modo, vai favorecendo a construção da particular (e imortalizada) assinatura do autor. Trata-se, conforme Almeida, de uma marca que unifica, delimita e referencia, fixando, portanto, um nome. Temos, assim, uma lápide que, apesar da superfície fixa, traz, na profundidade, a fluidez da(s) identidade(s) do sujeito que assina.