Allana Emilia
Créditos da imagem: Daniel Garcia, Siirena. Acrílico sobre tela, 2022.
Seguindo os rastros do post anterior,continuo a discutir a atuação de Elena Ferrante sobre a crítica de seus escritos ficcionais. Mas, dessa vez, quero partir do comentário sobre uma obra específica mencionada pela autora, que alterou o curso de sua escrita a partir de sua segunda leitura. Esse processo foi marcado pela (re)leitura de Non credere di avere dei diritti (Não pense que você tem direitos), um volume coletivo publicado em 1987 pela Livraria Feminina de Milão, obra que se tornou muito importante para o feminismo italiano.
Nesse livro, a história de Emilia e Amalia se entrelaça porque, frequentando a mesma escola, ambas mantêm uma relação mediada pela escrita. Amalia é falante e tem facilidade com a escrita, mas Emilia não consegue a proficiência da amiga, por isso Amalia presenteia-lhe com um texto no qual escreve a vida de amiga: «uma vez escrevi-lhe a história da sua vida real, porque já a sabia de cor”.
Em Tu che mi guardi, Tu che mi racconti (Você que olha para mim, você que me diz), Adriana Cavarero, filósofa italiana, retoma a história das duas meninas para compará-las às narrativas épicas de Ulisses. Nos subúrbios milaneses, a trajetória de duas meninas se entrelaça: «a primeira escreve a história da segunda porque esta a conta continuamente e de forma desordenada, mostrando-lhe a sua obstinada vontade de narrar», diz Cavarero em seu livro.
É a própria Ferrante quem desata esses fios em inúmeras oportunidades, não deixando dúvida sobre a importância que a leitura de Cavarero teve para a composição de suas protagonistas, Lila e Lenu: “Para simplificar: eu conto a você a minha história para que você a narre para mim’. Entusiasmei-me. Era o que eu – de forma despretensiosa – estava tentando criar no meu esboço de romance interminável centrado em duas amigas que entrelaçavam, de maneira menos edificante que Emilia e Amalia, os relatos de suas vivências.”
Essa clareza na exposição de suas rotas de composição desvenda um outro movimento: a forte intervenção que Ferrante faz sobre sua fortuna crítica. Em alguns trabalhos, – a exemplo da tese de doutorado de Victor Zarour Zarzar e o livro Finding Ferrante, de Alessia Riccardi – a menção a Cavarero e a seu livro torna-se central para a análise da amizade entre Lenu e Lila e da intensa mediação que mantêm com a escrita, o saber, ao longo de suas vidas.
Em As Margens e o Ditado, um conjunto de conferências escritas por Ferrante, suas “influências” são reiteradas, mas agora também aparecem reafirmadas pela menção a obras que analisam seu trabalho e reforçam a importância da leitura de Cavarero para a composição da tetralogia. Esse reforço é interessante porque sugere, por parte de Ferrante, uma certa supervisão e julgamento dos procedimentos interpretativos sobre seus textos ficcionais. Se for assim, não é possível deixar de notar uma certa ambivalência em relação ao desprezo que atribui à revelação de sua identidade como autora, como reafirma em Frantumaglia, ao negar a importância da revelação de seu nome verdadeiro para a leitura de sua obra: “eu a escrevi; se o livro for de algum valor, isso deve ser suficiente”.