Arquivo da categoria: Annie Ernaux

“Se não escrevo as coisas, elas não encontram seu termo, são apenas vividas”

Samara Lima

Créditos da imagem: Françoise Janicot, L’Encoconnage, 1972.

Em “A dúvida cava seu sulco dentro de mim: e se o romance acabasse?”, uma coluna publicada em 2020 no jornal Le monde, Nathalie Azoulai problematiza a sua própria prática enquanto escritora ao comentar sobre as novas formas ficcionais e um certo cansaço do gênero romance por parte dos autores e leitores. Ao fazer isso, ela questiona o fato de “dizer a verdade sem recorrer à ficção”, ao mesmo tempo que enfatiza o paradoxo que existe em termos “não-romances que se leem como romances”.

A tensão entre ficção e relato autobiográfico parece bastante atual, mas o questionamento não é recente, pois, no início dos anos 2000, Annie Ernaux já estava definindo seu projeto literário através das seguintes características: “recusa da ficção e da autoficção”, a escrita “como busca da realidade” e a tentativa de inserir seu texto “entre a literatura, a história e a sociologia”. Neste sentido, as imagens fotográficas (reproduzidas materialmente ou descritas) desempenham um papel essencial em suas produções: com as fotografias retiradas de arquivos familiares, ela as questiona durante a história para atualizá-las e revelar a “realidade” em ação. De maneira controversa, são essas fotos que permitem a autora apreender a vida com precisão e objetividade .

O uso da fotografia por parte da escritora francesa em consonância com a sua recusa pela ficção me fez lembrar o livro O trabalho das imagens: conversações com Andrea Soto Calderón (2021), de Jacques Rancière, que eu já citei no post “O que eu vejo na foto quando olho para ela?”. Aí, o autor está menos preocupado em traçar uma definição ontológica sobre a imagem e mais interessado em entender o seu funcionamento, ou seja, o que uma imagem faz.

No decorrer da entrevista com Calderón, Rancière nos convida a enxergar a imagem não como um mero reflexo das coisas ou como algo que é fruto da intenção do autor, mas a compreendê-la como um dispositivo que busca criar uma contravisão, uma perturbação entre o dizível e o perceptível, a fim de construir novos sentidos e regimes de visibilidade.

Nesse mesmo livro, o autor associa a imagem visual, e seus modos de resistência, ao método da ficção. Segundo Rancière, a ficção não é o que se opõe à realidade cotidiana, tampouco resume-se a simples invenção de histórias ou a composição de personagens, como a literatura moderna buscou definir. Mas, sim, uma racionalidade e uma forma de construir relações e reorganizações do campo do visível.

Para ele, há um trabalho ficcional onde quer que seja necessário produzir sentido de realidade, e isso não significa dizer que tudo é relativo e que a realidade não existe mais. O fato é que a ficção, segundo o autor, não é mais privilégio do imaginário, ela é uma espécie de arquitetura que permite a criação de determinada aparência. O trabalho ficcional revolucionário, então, não é afirmar que essa realidade não é a realidade, mas racionalizar o que estava indexado no registro de um único real possível e mostrar que há várias maneiras de se construir o real.

Assim, tendo em vista a recusa da ficção por parte de Ernaux por acreditar que ela é sinônimo de invenção e mentira e seu desejo é inscrever seu texto numa verdade, será que não poderíamos tomar as proposições de Rancière para pensar seu trabalho também como uma produção ficcional que, ao fazer de suas experiências pessoais matéria literária, confere existência ao que foi vivido e explode a ficção dominante

“Não-ficção especulativa” e Annie Ernaux: fabular ou decifrar uma vida?

Samara Lima

Créditos da imagem: Annemarie Heinrich, Autorretrato con hijos, 1947

No mês passado, Jô Santos, uma colega da pós-graduação e do grupo de pesquisa publicou um texto instigante aqui no blog chamado TRAJETOS DE UMA PESQUISADORA EM FORMAÇÃO: a complexidade da escrita de si em Annie Ernaux e Saidiya Hartman. Neste post, ela narra sua trajetória acadêmica e tenta uma aproximação entre duas escritoras contemporâneas que, a partir de universos distintos, desestabilizam as fronteiras de ficção e realidade ao lançarem mão da primeira pessoa para falar de si e sobre os outros: Saidiya Hartman e Annie Ernaux. O objetivo principal do texto foi analisar de que maneira a “não-ficção especulativa”, conceito proposto por Hartman, poderia servir como ferramenta de análise para a produção da escritora francesa Annie Ernaux. Hoje, gostaria de traçar um caminho diferente e comentar por qual motivo eu acredito que o termo não traduz a produção literária da autora.

De maneira resumida, o que a Hartman chama de “não-ficção especulativa” parte de sua observação sobre como a história dos sujeitos negros é constantemente resumida à violência e às razões que transformaram suas existências em mercadorias e cadáveres. Recusando reinscrever suas vidas na “cena de sujeição”, a autora aponta a fabulação com um gesto crítico capaz de compreender os sentimentos e as verdades vividas daqueles a quem foi negado espaço no arquivo, bem como dar a esses indivíduos a oportunidade de se tornarem os agentes de suas próprias histórias. A fabulação é um trabalho, então, que parte de documentos para, através da linguagem literária, dar contorno às suas vidas e criar um espaço propício para que elas possam prosperar.

É bem verdade que Annie Ernaux, muitas vezes, também parte de documentos, principalmente fotos retiradas de álbuns familiares, para narrar suas histórias. Mas será mesmo que a autora busca ensaiar vidas possíveis a partir desses materiais?

Vamos tomar como exemplo seu livro “A outra filha”, que é estruturado em forma de carta direcionada à Ginette, a irmã da autora que morreu aos 6 anos de difteria, dois anos antes de seu próprio nascimento. O fato é que a autora só descobriu a existência da garota aos 10 anos por meio de uma conversa de sua mãe com uma cliente. O livro é uma tentativa de mergulho no trauma familiar e no segredo de família, mas também uma forma de ressuscitar a irmã que nunca conheceu. Porém, como podemos escrever sobre alguém que não conhecemos e, por isso, parece ser “uma forma vazia impossível de ser preenchida com a escrita”?

A obra contém duas imagens, que são reproduzidas em meio à narrativa, da casa onde a narradora morou quando criança e algumas fotos descritas, principalmente de Ginette. O início da primeira parte, por exemplo, nos apresenta a atmosfera de uma infância onde o sigilo prevalece e avança em direção à cena traumática. Essa parte começa com a descrição de duas fotografias emolduradas de meninas colocadas lado a lado, uma foto de Ginette e outra da narradora, introduzindo o tema da duplicação e o dilema do filho substituto: a pequena Annie acreditava que ambas as fotos eram dela, ignorando as diferenças que existiam.

O curioso é que a fotografia confere uma espécie de testemunho à existência da irmã falecida, mas sua história está tão envolta em silêncio que Ernaux é incapaz de fazê-la existir fora da foto, ainda que ela tente, no decorrer do livro, apreender tal figura. Dessa forma, uma vez que ela não conheceu a irmã pessoalmente, não criou memórias o suficiente para que pudesse inclusive reconhecer a garota nas imagens, Ginette permanece sendo “uma imagem chapada” e nenhuma forma de conjectura sobre sua vida anterior é possível: “Não tenho nada que possa te fazer existir, exceto a imagem congelada das fotos […].”

No seu discurso de aceitação do Prêmio Nobel de Literatura 2022, “I will write to avenge my people”, Annie Ernaux comenta que seu projeto literário parte de histórias pessoais não para livrá-la dos segredos ou somente narrá-las, mas para revelar algo que só a escrita pode trazer à luz e à consciência das outras pessoas. Neste sentido, acredito que, ao contrário de Hartman, a escritora francesa não parece tentar preencher as lacunas através da leitura de outras histórias que surgem a partir dos arquivos, usando estratégias do romance para especular sobre suas existências, mas, sim, parece justamente investir nas fraturas, se não para reconstruir as cenas de sua memória, poderíamos dizer que é pelo menos para “decifrar a situação” e  “acabar com a imprecisão do que foi vivido”.

TRAJETOS DE UMA PESQUISADORA EM FORMAÇÃO: a complexidade da escrita de si em Annie Ernaux e Saidiya Hartman

Joázila Santos

Créditos da imagem: imagem retirada do pai de Annie Ernaux, em Yvetot, usada como capa da obra
O lugar (2021) – arquivo pessoal da autora.

Em minha trajetória acadêmica, as mulheres escritoras sempre foram alvo e guia. Na graduação, Virginia Woolf; no mestrado, Sylvia Plath; no doutorado, Annie Ernaux. No entanto, o que constantemente rodeava qualquer fase da pesquisa de graduação e mestrado eram as complexidades biográficas percebidas nos textos lidos. Foi assim que a autora francesa, Annie Ernaux, entrou em minha vida acadêmica, a partir da leitura de Os Anos (2022): apagando a linha que separa escrita literária e vida pessoal, incluindo as complexidades sociais trabalhadas pela memória.

“Não existe um ponto de interseção entre o que acontece no mundo e o que acontece com ela, são duas retas paralelas, uma é abstrata, toda feita de informações que chegam mas são logo esquecidas, e a outra é fixa.”, diz Ernaux, ao refletir sobre si em terceira pessoa e, simultaneamente, sobre seu pai e a França pós-guerra. Quando li esse trecho, em janeiro de 2022, enquanto produzia ainda minha dissertação, um novo horizonte se abriu e o interesse pela escrita de si se aprofundou ainda mais, o que acarretou a construção de projeto para a seleção de doutorado com a ousada escolha de usar o termo “autoficção” para a produção literária de Ernaux.

Porém, ao ler a própria autora negar que sua escrita seja ficcionalizada, mais uma gaveta se abriu na minha estante de horizontes da vida acadêmica. O interessante desse processo é que isso aconteceu pela discordância que tive com a autora e diversas questões surgiram: será que eu tenho cacife para discordar de Ernaux? Será que isso é ser pesquisadora? Será que eu ainda a vejo como autoficção? O que ela entende por ficção? Será que para ela é um mero recurso de invenção?

Essas questões ainda permanecem.

Contudo, em uma das disciplinas do doutorado, conheci a escritora Saidiya Hartman, cujo manejo desse limite entre ficção ou não – ironicamente em um texto considerado não ficção- se dá pela busca para atrelar a memória coletiva à memória individual.

O texto a que me refiro é Perder a mãe – uma jornada pela rota atlântica da escravidão, cujo prólogo expõe o projeto pessoal e profissional da autora, que visa a recuperar por meio de uma viagem à Africa a rota da escravidão que inclui seu passado e o de sua família por meio do que a autora costuma nomear como não-ficção especulativa.

Créditos da imagem: imagem retirada do livro Perder a mãe – uma jornada pela rota atlântica da escravidão (2021)

Na foto, que aparece em meio ao texto, temos a imagem de duas senhoras. Não há legenda. Comentando a absoluta ausência nos arquivos que visitou de qualquer registro de sua tataravó, a foto é um enigma porque desdiz o texto e se expande na direção de uma memória coletiva roubada pela escravidão e pelo colonialismo, apontando para o destino de tantos outros sujeitos apagados e esquecidos pela história.

E por que faço aqui a conexão de Ernaux com Hartman?

Não apenas porque nas obras da escritora francesa há um intenso diálogo (sempre ambíguo) entre fotos e texto, mas também porque, recuperando a história familiar, como a de seu pai, em Os anos, Ernaux está recuperando uma parte da história dos homens operários e microempreendedores da França do século XX. O que significa também uma maneira de falar de si falando de outros.

Talvez, então, a nomenclatura “não-ficção especulativa” (ainda mais pertinente que a autoficção?), possa ser útil para pensar esse deslocamento e a incidência da primeira pessoa em muitos textos do presente.

Continuemos o trajeto.

Formas narrativas de uma vida anônima e impessoal

Samara Lima

Créditos da imagem: Doctor Heisenberg’s Magic Mirror of Uncertainty, Duane Michal, 1998

Em La vida impropria: anonimato y singularidad (2022), a professora e crítica literária Florencia Garramuño analisa diversas produções de artistas plásticos, escritores e cineastas latino-americanos, como Rosângela Rennó, Edgardo Dobry e Veronica Stigger, a fim de comentar sobre algumas práticas estéticas contemporâneas que parecem abandonar a preocupação com a individualidade e a identidade para explorar formas do impessoal e do anonimato.

Segundo a autora, é possível perceber nas produções atuais um drástico esvaziamento das categorias de indivíduo e subjetividade, pois as vozes, os personagens e narradores expressos nessas obras aparecem muitas vezes como meras testemunhas de um acontecimento, buscando abster-se de toda interioridade e propriedade em função da valorização de situações exteriores, das relações afetivas e da cartografia de espaços e coisas.

O fato é que tais práticas não estão interessadas em uma construção de uma personalidade, em relatar a vida de um sujeito ou de um grupo social em específico, mas, sim, desenhar formas de vidas que transcendam as singularidades de cada um para abarcar o que elas têm em comum com os outros. É importante pontuar que as produções que buscam apostar na impessoalidade não estão completamente privadas do “eu”, pois, como a própria Garramuño argumenta, o impessoal não é o contrário do pessoal. Aí, o que parece estar em jogo é a tentativa de fazer das experiências mais íntimas uma possibilidade de experiência de qualquer pessoa.

Durante a leitura do livro tenho vagado pela minha estante à procura de narrativas literárias que incorporam as dinâmicas da impessoalidade como mecanismo de construção de um olhar sobre a macrohistória. Ou seja, que pensam as relações cotidianas e os eventos do mundo para além da perspectiva da vivência individual.

A primeira obra que me ocorreu foi Os anos (2021), que é apresentada ao leitor como uma autobiografia impessoal de Annie Ernaux, a qual narra a trajetória da autora desde 1940, o ano de seu nascimento, até meados da década de 2000. O livro é baseado numa coleção de fotografias da escritora em diferentes momentos de sua vida. Memórias pessoais, referências culturais e tendências sociais, situações ordinárias e história política, unindo a perspectiva de um indivíduo (Ernaux), de uma geração (aqueles que cresceram após a Segunda Guerra Mundial) e de uma nação (França).

Quanto à forma, um dos aspectos do “coletivo” fica evidenciado no traço mais marcante dessa espécie de autobiografia: Ernaux nunca usa a primeira pessoa do singular, pois constrói o relato a partir do “nós”, ou ocasionalmente, do “um” e “ela”. Essa escolha estilística reflete, por exemplo, a descrição da narradora sobre a maneira como os seus familiares contavam histórias da Segunda Guerra Mundial: as histórias eram contadas com o uso do “nós”, dos pronomes indefinidos e construções impessoais, como se todos fossem igualmente afetados pelos acontecimentos.

Em diversos momentos Florencia Garramuño afirma que uma das potências das formas anônimas é imaginar um certo viver-junto (resgatando Barthes), principalmente no contexto atual de crescimento de ideologias fascistas que destroem toda forma de coexistência. Neste sentido, penso que uma das forças do livro de Annie Ernaux é justamente a luta contra os convites ao individualismo consumista gerado por constantes apelos à singularização e a tentativa de reabilitar o interesse e o valor do comum, dado aqui como uma história que, ao fazer do seu corpo de mulher um lugar de encontro com tantas outras vidas pode, sim, ser compartilhável.

“O que vejo na foto quando olho para ela?”

Samara Lima

Créditos da imagem: Saia da frente do meu sol (2023), de Felipe Charbel

Em O trabalho das imagens: conversações com Andrea Soto Calderón (2021), Jacques Rancière aponta que não devemos reduzir a imagem visual a uma semelhança  com o referente ou ao produto de uma ação intencional que meramente desfila seu sentido diante dos olhos de espectadores imponentes. Mas, sim, que devemos pensá-la como algo que resiste, cria deslocamentos por seu aspecto performático e que, muitas vezes, escapa da própria vontade daquele que gostaria de predeterminar seu efeito.

A leitura do livro me interessa justamente pela discussão da imagem fotográfica como uma operação ativa, um saber que foge à prescrição e à representação, que almeja atingir uma dimensão imaginativa e redefinir as noções de legibilidade e visibilidade, possibilitando outra forma de apreender o real. Enquanto a representação tende a imobilizar e fixar os sujeitos retratados em categorias que os definem e submetem, a figuração revela o quão difícil (até mesmo impossível) é reter os sujeitos e suas experiências em uma imagem ou obra.

Segundo Rancière, a fabulação de imagens está relacionada à ficção e uma das principais formas de reivindicação de uma visibilidade muito mais complexa do que está visível é procurar interrogá-las de maneira mais demorada, sempre explorando a tensão entre a realidade e a aparência. É dessa maneira que conseguimos perceber as fraturas e os intervalos necessários ao olhar e à interpretação.

O desafio de desarmar o olhar e fazer trabalhar o imaginário diante da imagem visual me fez lembrar o mais recente livro de Felipe Charbel, Saia da frente do meu sol. A obra é uma investigação sobre a história de vida de seu tio “esquisitão” e doente, Ricardo, que morou de favor no quartinho dos fundos do apartamento de sua família durante cinco anos. O autor lança mão de documentos, fotografias (de seu tio encontradas no armário de sua avó) e uma dose de ficção para tecer conjecturas sobre sua vida anterior ao passo em que escreve sobre si e sobre o “fracasso” que é narrar o outro.

A cada encontro com o acervo de fotos de Ricardo, o narrador indaga: O que vejo na foto quando olho para ela? ou, ainda, O que me interessa nessas fotos?. É a partir desse gesto conversacional que ele busca interagir com a imagem, nivelando-se a ela, a fim de observar o que a superfície apresenta (as pessoas retratadas na cena e como elas se relacionam entre si, suas poses e vestimentas, o ângulo e o ambiente em que se encontram) para especular e construir uma versão sobre quem seu tio pode ter sido. Um aspecto interessante é que o autor parece compreender que não é possível capturar completamente o que é expresso, pois diversos sentidos escapam ao espectador, consentindo, assim, com a ficção constitutiva da fotografia. E, nesse jogo de incertezas, as fotos presentes na obra ampliam ainda mais a obscuridade em torno de Ricardo e de sua vida enigmática.

Assim como os autores, eu gostaria de prezar a ambiguidade como uma propriedade da imagem fotográfica, interpelar o que vejo, mas também fabular junto com elas e a partir delas, no decorrer da minha pesquisa que proponho a ser desenvolvida no mestrado, em que almejo estudar a relação (e tensão) entre foto e narrativa nas obras L’usage de la photo e Os anos, de Annie Ernaux.

“É preciso acercar o rosto à cinza”

Samara Lima

Créditos da imagem: Frances Kearney, Five people thinking the same thing, IV, 1998.

Em “Quando as imagens tocam o real”, Georges Didi-Huberman pontua a força sem precedentes com que a fotografia vêm se impondo no nosso universo, considerando os deslocamentos e as formas de reorganização técnica, como também sua capacidade de sobrevivência, ainda que ao longo do tempo tenha sofrido tantos dilaceramentos, reivindicações contraditórias e tantas […] manipulações imorais.

Didi-Huberman discute imagens que se referem a registros de diversas situações inimagináveis, como foi a experiência dos campos de concentração da Alemanha Nazista, sendo consideradas então atos de resistência e um objeto de memória contra a maquinaria da “des-imaginação”.

O filósofo comenta que os possíveis saberes que as imagens revelam partem de sua relação cruzada com muitos outros dados, com as palavras e os contextos, por exemplo. É nesse contato com o real que a imagem arde. Para o filósofo francês, importa realçar a relação lacunar que a imagem mantém com a realidade e que faz da imagem, sempre faltante, um material “ardente” e inexato, que deve ser pensado em um duplo regime: ao mesmo tempo como documento e como objeto de sonho, objeto de ciência e não saber.

Mas toda imagem arde?

Para Didi-Huberman, se uma imagem mantém-se no completo preenchimento de sentido e no clichê visual, não gera pensamento crítico. O que o filósofo chama de  imagem ardente preza as lacunas, o desconforto e busca encontrar as cinzas.  Neste sentido, o autor aponta a importância de saber olhar uma imagem, uma vez que vivenciar uma experiência de ardência é uma ação complexa, pois para senti-lo, é preciso atrever-se, é preciso acercar o rosto à cinza. E soprar suavemente para que a brasa, sob as cinzas, volte a emitir seu calor, seu resplendor, seu perigo.

No post anterior, comentei que gostaria de estudar, na nova pesquisa que proponho ser desenvolvida no mestrado, a relação entre texto e foto nas obras L’usage de la photo e Os anos de Annie Ernaux. A escritora francesa utiliza em suas produções a imagem como objeto material e estrutura sintática como parte de um projeto estético que rejeita a ficção. Pensando na discussão proposta por Didi-Huberman, me interessa investigar de que maneira a autora francesa lida com a complexidade da inexatidão da fotografia em sua narrativa, mas também de que maneira faz arder o real, o lugar onde a cinza não esfriou e como a relação entre texto e imagem constrói sentidos sobre sua vida e sobre a sociedade francesa que também atuam contra a maquinaria da “des-imaginação”.

Um projeto e um olhar sobre Annie Ernaux e sua escrita “foto-sociobiográfica”

Samara Lima

Créditos da imagem: Sophie Calle. Foto: Jean-Baptiste Mondino

Em agosto deste ano, submeti o relatório final da minha última pesquisa no âmbito da iniciação científica, cujo título era “A literatura fora de si e a expansão dos campos das práticas artísticas contemporâneas”. Um dos investimentos teóricos da pesquisa consistia em refletir sobre a expansão das artes para estudar como a literatura está cada vez mais infiltrando-se em outros campos, inserindo em meio ao texto elementos “estranhos”, tornando possível identificar o que poderíamos chamar de uma “saída da literatura”. Para isso, selecionei a obra Os amantes, de Amitava Kumar, na tentativa de analisar como as fotos documentais estão presentes no enredo (auto)ficcional. Em outras palavras: se ainda estão inseridas no discurso da documentação ou se transcendem a noção da foto como ferramenta de confirmação do relato.

Desde então, tenho pensado em realizar uma pós-graduação no programa de Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia a fim de expandir minhas reflexões sobre a relação entre narrativa e imagem fotográfica nas produções do presente, em especial, nas obras L’usage de la photo (O uso da fotografia), co-escrito com o fotógrafo e ex-companheiro da autora Marc Marie, e Os anos da ganhadora do Nobel de Literatura em 2022, Annie Ernaux.

Em Depois da fotografia: uma literatura fora de si, Natalia Brizuela busca pensar o cruzamento entre a prática literária e as outras artes, como a imagem fotográfica. A autora aponta para o esfacelamento das fronteiras entre as diferentes linguagens e como os limites entre elas estão cada vez mais porosos, caracterizando-se como “um espaço e momento sempre de contágio”. A partir de análise de obras de autores latino-americanos como, por exemplo, Mario Bellatin, Nuno Ramos e Juan Rulfo, a crítica argentina analisa “alguns deslocamentos e metamorfoses nessa atividade da arte que chamamos literatura” e como a fotografia aparece em meio à escrita.

Segundo a autora, o cruzamento entre as linguagens pode acontecer por meio da inclusão de fotos em obras literárias ou como paradigma de uma nova sintaxe e de uma nova literatura utilizando certas características do dispositivo fotográfico – como a indexicalidade, o corte, o ponto de vista, o pôr em cena, a dupla temporalidade (passado-presente/o que foi – o agora), o caráter documental, sua função mnemônica, o ser uma mensagem sem código.

Em L’usage de la photo, um projeto íntimo do casal que consistia em fotografar objetos e escrever depois de fazer amor, as diversas imagens da vida cotidiana são reproduzidas em meio à narrativa e parecem manter um diálogo com o texto. Já em Os anos, tendo como norte fotos e memórias deixadas por acontecimentos, a autora evoca o período pós-guerra até os anos 2000, na tentativa de reconstruir os valores e contradições de sua vida, de sua família e de sua sociedade. Aí, o enredo, a sintaxe e a forma parecem guiar-se pelas fotos, ainda que nenhuma imagem esteja materialmente no livro.

É pensando nessas questões que eu gostaria de estudar a relação entre foto e texto na produção de Annie Ernaux. Mas também em como o uso da imagem visual como suporte ou ponto de ancoragem da história parece corresponder ao desenvolvimento de um projeto estético bastante singular por parte da autora, o qual se baseia na recusa da ficção e na tentativa de desenvolver uma “autosociobiografia”.