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O personagem é a máscara do ator ?

Marília Costa

Créditos da imagem: Brecht, Antígona, 1948

Na minha pesquisa de doutorado, tenho me dedicado a estudar o teatro contemporâneo e suas relações com as escritas de si, especificamente, com a autoficção. Nesse percurso de pesquisa, o teatro clássico atua como um instrumento de orientação que fornece pistas para entender o funcionamento do teatro hoje.

O personagem e o ator são elementos importantes no teatro. Segundo Aristóteles, a tragédia tem sua origem nas festas dionisíacas, em que os devotos do Deus do vinho vestiam-se de sátiros, usavam máscaras, bebiam e dançavam até desfalecer. Nesse ritual, ultrapassavam o “métron” e tornavam-se “hypocrités”, ou seja, um ator. No teatro grego, o uso da máscara continuou, mas não mais como elo entre o humano e o divino, mas como forma de definir o personagem e seu caráter, indicando para o público o tipo interpretado pelo ator. Assim, a máscara servia tanto como elo com o divino como para transformar o ator em personagem.

Nesse contexto, o personagem teatral não se refere a um indivíduo, pois a máscara afasta o público da realidade factual e o direciona para o mito, impossibilitando o personagem de ser apontado como um sujeito específico, transformando-o em um ser ficcional que reflete um universo mítico. Na Poética, o filósofo grego estabelece como objetivo principal da mímesis a fábula, a estrutura narrativa que o autor vai utilizar, principalmente, valorizando a ordem causal dos acontecimentos, que deve respeitar os princípios da necessidade e da verossimilhança.

Na contemporaneidade, nos deparamos com práticas teatrais que ultrapassam o conceito clássico de personagem e colocam em xeque a definição, em que o ator entra em cena sem recorrer à “máscara”, sem representar um outro. Ao longo da história diversos artistas e teóricos (Meyerhold, Brecht, Grotowski) reformulam a concepção de personagem sem, no entanto, romper totalmente com ela, já que mantêm a ideia principal de que o ator representa ações que não dizem respeito a si mesmo, mas a um outro, sua máscara, sua persona encarnada no palco.

No entanto, desde a década de 60, propostas como Living Theatre e Open Theatre apostam na sobreposição cada vez maior entre ator e personagem. Podemos considerar que o projeto conhecido como Biodrama, idealizado pela argentina Vivi Tellas, é herdeiro dessas possibilidades, já que a dramaturga trabalha sobre elementos do real que são desdobrados no palco, cenas que envolvem personagens que não são atores, montadas a partir de suas experiências biográficas para tensionar realidade e ficção.

Muitos teóricos têm refletido a dimensão ficcional do teatro partindo de experimentos com as formas do teatro documental ou teatro do real. Óscar Cornago reconhece na ambiguidade entre o real e o ficcional o maior elemento do biodrama, que ocorre a partir polarização entre representação e não representação.

De acordo com Josette Féral, a simbologia teatral, ou seja, o pacto cênico, os rituais do teatro, fazem com que o público oriente o olhar para aquilo que é criado em cena e para aquilo que é referencial. Ela afirma: “A teatralidade vem da divisão entre o espaço cotidiano e o espaço da cena. Dentro do espaço cênico também tem uma divisão, sobre o que é real material e o que é criado na cena. E o olhar do espectador sempre faz ida e volta – como uma agulha – entre o real e a ficção. (…) A experiência teatral é você ver no ator tanto a experiência do real quanto a da criação, ao mesmo tempo”.

Nesse sentido, Renato Cohen traça uma distinção entre o eu-ritual e o eu mesmo do ator. Para o teórico, no palco, ao realizar as ações, mesmo o ator reivindicando para si o seu próprio nome, seus dados biográficos, ele utiliza uma “máscara ritual” que o difere da pessoa civil, não sendo possível dizer que ele interpreta a si mesmo: “à medida que o ator entra no “espaço tempo cênico” ele passa a “significar” (virar um signo) e com isso “representar” (é o próprio conceito de signo, algo que representa outra coisa) alguma coisa, podendo ser isto algo concreto – o qual tem-se nomeado “personagem””.

Os biodramas são interessantes para pensar a questão do enquadramento teatral. Pode o ator atuar em cena sem ser um personagem?  O enquadramento cênico é suficiente para transformar sua presença em um “personagem de si mesmo”?

A autoficção como resistência ao individualismo exacerbado

Marília Costa

Créditos da imagem: “Autel de Lycée Chases”, de Christian Boltanski, 1986–87

Sergio Blanco é dramaturgo e diretor franco-uruguaio, conhecido internacionalmente com obras traduzidas para o português, catalão, inglês, francês, alemão, turco, japonês, árabe e norueguês. Tem o trabalho como dramaturgo reconhecido por diversos prêmios como os prêmios Dramaturgia de la Intendencia de Montevideo; Nacional de Dramaturgia del Uruguay;  Florencio al Mejor Dramaturgo.

Sergio Blanco dedicou-se a praticar a autoficção em sua obra dramática e também escreveu o ensaio Autoficción, Una ingeniería del yo (2018) em que teoriza sobre a autoficção no teatro criando uma nova definição centrada no que ele mesmo denomina “pacto de mentira e pacto de verdade” para reelaborar a sua maneira o pacto autobiográfico de Philppe Lejeune. Além disso, também elabora os 10 mandamentos para a autoficção, que seriam algumas operações indispensáveis à autoficção que serviriam como fio condutor para a criação dos espetáculos autoficcionais.

Muitos críticos da autoficção a condenam pelo viés narcisista e pela exposição que o dispositivo teórico, muitas vezes, parece mobilizar. No entanto, na visão de Sergio Blanco, a autoficção funciona a partir de um exercício de alteridade. Assim, a autoficção toma como ponto de partida o “eu” com o objetivo de encontrar o “outro”, autoficção não como autoexposição, mas como uma busca de si mesmo e através do entendimento de si buscar o entendimento da condição humana.

Na contramão da cultura do eu tem-se no século XXI a constante ameaça de negação da subjetividade impulsionada pelas grandes economias e mercados que visam acabar com toda forma de expressão individual no mundo do trabalho, o que torna a sociedade adequada para a implementação do autoritarismo político e do fundamentalismo religioso. Para Blanco, a autoficção é a alternativa artística para resistir a essa tentativa enfática de apagamento da subjetividade.

En este comienzo del siglo XXI, la autoficción vuelve a activarse como una forma de resistir a este individualismo totalizador que termina formateando comportamientos y conductas aberrantes, para volver así a relatos autoficcionales que aspiren  a una palabra singular, libre, autónoma e independiente. Una palabra ajena a los mercados, los misiles y las modas. Una palabra que se busca y que busca. Una palabra que se abre a los espacios interiores de retrospección y reflexión. Una palabra que duda. Que tiembla. Que piensa. Una palabra que sobre todo que se piensa.

O pensamento de Sergio Blanco é interessante porque muitos críticos da autoficção a associam ao individualismo exacerbado e o dramaturgo franco-uruguaio a enxerga como uma forma de resistência ao individualismo exacerbado. Desse modo, coloca no centro da discussão a importância de dizer eu no século XXI, colocando em xeque o traço inconstante e subjetivo da existência individual, a fim de possibilitar a compreensão de que o eu nunca é apenas aquele que o enuncia, mas sim um outro: “La autoficción se inscribe así en un proyecto político de edificación de un yo emancipado que busca desesperadamente a los demás”.

Um passeio pelos limites da ficção e da autobiografia 

João Matos

Créditos da imagem: Francis Alÿs’s “Leçon de Musique” (2000).

Minha trajetória nos estudos de literatura contemporânea se inicia a partir do meu interesse pessoal no conceito de autoficção. Ou melhor, na recepção negativa por parte de parcela da crítica e de alguns autores que rejeitam o termo. Era intrigante pensar nesse rechaço entendendo, de forma preliminar, a autoficção como tão só um híbrido entre os gêneros autobiográficos (autobiografia, diário, testemunho, etc) e o romance.

Lendo a fortuna crítica que trata do conceito, foi possível perceber que o rechaço era justificado pela associação do termo à exposição exacerbada do sujeito e à forma “espetacularizada” dos temas tratados nas narrativas em que se podia aproximar narrador e autor.  A experimentação com a forma também é um fator que contribui para o rechaço, pois a autoficção é tomada por muitos críticos e autores como uma maneira de escrita do romance despreocupada com a elaboração formal e a linguagem, o que reduziria o valor literário dos textos tratados como autoficcionais.

No entanto, o que se comprovou ao longo da investigação foi justamente o oposto: afinal, a apropriação de outros gêneros textuais, em especial aqueles ligados ao autobiográfico (diários, memórias), pode também propor uma experimentação com as formas. Afinal, o princípio que funda o neologismo francês é o de tensionamento dos limites entre o pacto autobiográfico e o pacto romanesco. Para tanto, é necessário tensionar também as formas próprias de cada pacto.

Foi pensando nessa direção, que a pesquisa enveredou para o entendimento de que as autoficções poderiam ser entendidas para refletir sobre o próprio entendimento do que é ficção. E logo nos demos conta de que o termo, dado seu caráter híbrido, também poderia propor uma reconfiguração do entendimento dos gêneros autobiográficos.

Foi, então, que a investigação se dedicou a refletir sobre as possíveis mudanças que ocorrem no entendimento do autobiográfico, estudando alguns textos clássicos sobre a questão.

A autobiografia é entendida sobretudo como a biografia de uma pessoa escrita por ela mesma, conforme Philippe Lejeune propôs defini-la. Um texto que, a partir do pacto autobiográfico, pretende sistematizar memórias e informações sobre a vida do autor, mesmo que eventualmente ocorram enganos, tendo em vista que reconstruir uma vida de maneira narrativa é uma tarefa complexa.

A partir dessa premissa inicial, utilizamos duas posições teóricas que tematizam os gêneros que falam da vida. O conceito de “ilusão biográfica” de Pierre Bourdieu é uma crítica a ideia da exposição das experiências vividas como um conjunto coerente e orientado de acontecimentos, presentes no relato a partir de uma ordem cronológica, visando estabelecer uma ordem lógica “coerente” à vida contada, resultando, por tabela, numa perspectiva inequívoca de si; já a segunda posição teórica, defendida por Georges Gusdorf, aponta que toda escrita de si acolhe os eventuais deslizes que possam ser cometidos na elaboração escrita do “eu” autobiográfico. Essa é uma oportunidade de o sujeito realizar uma espécie de exame de consciência. A essa atitude, Gusdorf chama de “autenticidade” das narrativas autobiográficas.

Embora distintos, os dois modos partilham da referencialidade (ou seja, da confrontação entre o autor e o narrador do texto autobiográfico enquanto escreve, conta sua vida). Para a ilusão biográfica, os elementos narrados adquirem o valor de “verdade”, ancorando-se na autoridade de quem viveu esses fatos, o autor/narrador. Para Gusdorf, a autenticidade é uma maneira de o narrador mostrar a consciência de que esse ancoramento na autoridade de quem viveu não é necessariamente estático, pois o autor, enquanto “sujeito de criação” da narrativa, move-se entre o que “é” e o que poderia ser, gerando mais dúvidas que certezas a respeito de si mesmo.

Mas é cada vez mais comum encontrarmos posições críticas que atribuem aos gêneros autobiográficos um caráter ficcional, exatamente em virtude da caracterização que Gusdorf dá à autenticidade autobiográfica. No gesto comum de questionar a referencialidade da autobiografia, há uma tendência a encarar essa (re)elaboração de si no relato sobre o eu como ficção. O mais interessante é observar que esse movimento mais aproxima que afasta a autobiografia da ficção.

Como acontece com qualquer investigação, minha pesquisa não pretendeu esgotar as perguntas ou fornecer respostas definitivas. Pelo contrário, deixou ainda mais interrogações, por isso tenho a intenção de pensar essa tensão entre o “eu” autobiográfico e o “eu” ficcional nas produções da lírica contemporânea. Como os autores de poesia exploram esse limiar? Em especial, estou atento às produções da poeta e tradutora Marília Garcia, que em alguns de seus textos parece apontar para uma tensão semelhante a que reconheço no termo autoficção – só que ainda não sei explicar como.

Entre exposição e recolhimento

Luana Rodrigues

Créditos da imagem: Imagem registrada pela fotógrafa Mariana Vieira Elek e retirada do perfil no Facebook da autora Natalia Timerman.

No final de 2022, investi em uma pesquisa de iniciação científica que se propunha a explorar as nuances da autoria contemporânea, com um foco particular na escritora Natália Timerman. Além de sua carreira como psiquiatra, ela já havia dado vida a três obras: Desterros: histórias de um hospital-prisão, publicado pela Editora Elefante em 2018; Rachaduras, pela Editora Quelônio em 2019, e seu primeiro romance Copo Vazio, pela Todavia em 2021). Desde o início dessa investigação, a pesquisa teve como objetivo observar os trânsitos entre a atuação da autora na internet e  a  construção de um mundo ficcional acompanhando suas publicações (sobre isso falo em algumas outras publicações aqui no blog). A análise  indicou uma possível guinada autobiográfica, ou seja, uma mudança em direção a uma narrativa mais autobiográfica, na qual a autora se aventuraria a explorar aspectos mais pessoais e biográficos em sua exposição pública.

Durante o período de criação de seu mais recente romance, intitulado As Pequenas Chances, mudanças sutis se desenharam em sua trajetória. Timerman passou a compartilhar, de maneira mais frequente, fotografias e relatos acerca de seus pais, com um foco especial em seu pai, que já havia falecido. A partir desse momento, uma clara transição se delineou, tanto no tom de suas publicações, que se tornaram mais pessoais, quanto no gênero literário do novo livro que estava por vir. Hoje, estamos cientes de que o livro em questão se insere no universo do romance autoficcional, abordando temas de família e luto, com um enfoque especial na experiência de Natália, a autora que também assume o papel de personagem/narradora, diante das complexidades da perda e da memória.

Essa transformação nas postagens nas redes sociais e na temática de suas obras revela também uma interação entre elementos de sua vida pessoal e sua criação literária. É um mergulho profundo na fusão da realidade e da ficção, um território onde a narradora e a personagem se entrelaçam em uma dança intrincada, criando uma rica tapeçaria de reflexões sobre a vida, a morte e as histórias que tecemos a partir delas.

A análise sobre a atuação da autora em suas redes e de sua trajetória literária aponta para uma percepção muito consciente de Timerman de questões que são as de nosso tempo e também estão presentes no campo literário: não apenas a exposição autobiográfica do autor, mas também a exposição da intimidade na internet. Como pesquisadora doutoranda que se dedica ao estudo de autores que colocam em xeque o nome do autor, como Knausgård e Ferrante, Timerman expõe suas inquietantes dualidades: o anseio pela exposição e o desejo pelo recolhimento. Poderíamos pensar que sua incursão no terreno da autoficção em sua mais recente obra é mais um elemento que confirma essa ambivalência, já que o termo é calcado no pacto ambíguo que pede aos leitores para identificar e ao mesmo tempo não identificar autor e narrador/personagem.

Assim, publicando uma autoficção, Timerman parece ter encontrado um terreno fértil que acomoda as ambiguidades que permeiam sua jornada autoral. Este movimento representa, igualmente, um gesto de negociação em relação à exposição de sua própria imagem como autora, como se ela estivesse buscando um equilíbrio delicado entre o revelar e o ocultar, o pessoal e o ficcional, na construção de sua obra e também na construção de seu nome como autora.

Autoficção e performance em Los diarios de Emilio Renzi

Carla Carolina Moura Barreto

Créditos da imagem:  Foto: Jorge Silva/Reuters. Ilustração: Zé Otávio

“[…] me asombro, como si yo fuera otro (y es lo que soy)”
(Ricardo Piglia, em Los diarios de Emilio Renzi)

Ricardo Piglia, um dos maiores escritores argentinos do século XX, registrou sua vida cotidiana em trezentos e vinte e sete cadernos ao longo de cinquenta anos. O escritor os manteve guardados até 2012, quando decide desarquivá-los e dar início a um trabalho de releitura, seleção e reescritura, transcrevendo e organizando seus cadernos, a fim de publicá-los. Assim, os diários do escritor se convertem em uma série intitulada Los diarios de Emilio Renzi, dividida em três volumes– Años de formación (2015), Los años felices (2016) e Un día en la vida (2017) – que trazem em seu interior memórias íntimas e marcas de uma vida atravessada pela obsessão pela leitura e escrita. Os diários, que podem ser lidos como romance de formação, são construídos a partir de fragmentos, recortes, colagens, metalinguagem e duplos (Piglia/Renzi, realidade/ficção, memória/História), mostrando-se híbridos e complexos.

Piglia publica os diários sob a assinatura do assíduo personagem de suas obras, Emilio Renzi, tido pela crítica como seu alter ego, uma vez que o nome do personagem consta no nome completo do autor: “Ricardo Emilio Piglia Renzi”. Além disso, alguns biografemas da vida de Renzi apontam para a persona extratextual de Ricardo Piglia. Com isso, temos o famoso duplo Piglia/Renzi, visível já nas capas dos livros, escritos por um e assinados por outro. Vemos essa cisão eu/outro com mais nitidez na construção do texto de Piglia, que transita entre primeira e terceira pessoa verbal para falar sobre si, resultando em um distanciamento. O autor, que emprega aspas e citação para dar voz a quem escreve o diário, se afasta do texto, descrevendo-se como outro, apresentando-se como um “biógrafo de si mesmo”, o que torna o texto paradoxal. Com isso, Piglia se distancia da autoria e da responsabilidade do conteúdo dos relatos que apresenta, no entanto, não se desvincula completamente, uma vez que ele coloca em cena seu duplo.

Esse jogo textual ambíguo criado por Piglia, que mais se configura como uma espécie de “mascaramento”, confunde o leitor desprevenido que espera ler a história de um “eu” real e aponta para uma performance do autor, que encena um “eu” e se insinua como uma sombra real no texto. Piglia atua em seus diários, como em uma mise en scène. Ele escreve a partir do reflexo que vê em seu espelho, de modo a eleger o que vai ou não inscrever do real que o cerca, algo próprio da escritura performática do diário, segundo o professor e crítico Seligmann-Silva.

Assim, Piglia constrói uma narrativa autoficcional. Ele afasta-se da experiência para refletir sobre ela e atribuir-lhe novos significados, recriando-a e recriando-se como ficção. Desse modo, essas duas personalidades fragmentadas criadas no texto, Piglia/Renzi, se imbricam, se confundem e nos confundem. Com isso, Piglia joga um jogo performático, de afirmação e negação, que afasta o compromisso com a “verdade” e conspira contra a possibilidade de transmitir a realidade, colocando em cena, de maneira mais evidente, o caráter ficcional da obra. Além disso, em Los diarios de Emilio Renzi, Piglia nos apresenta os mecanismos de construção da memória; problematiza a figura do autor; nos mostra a ficção como estratégia de lidar com a realidade; além de nos revelar os bastidores da criação de algumas de suas obras. Assim, ele escreve, também, para manter ativas as lembranças; para que seu testemunho pessoal perdure; para lembrar e ser lembrado, de modo a escrever para si e para outros, “arremessando-se no vazio para que algum leitor o segure no ar”.

Carla Barreto é doutoranda em Teoria e História Literária no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Sobreviver ao real

Caroline Barbosa

Créditos da imagem: Pintura habitada (1975), de Helena Almeida

Em “Autoficção e sobrevivência”, Eneida Maria de Souza parte da obra Desarticulaciones, de Sylvia Molloy, para comentar o termo de Doubrovsky. A autora relaciona a autoficção à sobrevivência de duas maneiras. Souza afirma que Molloy elabora uma obra autoficcional sobre a amiga que sofre de Alzheimer como “uma forma de reconquistar sua imagem por meio da palavra” e ao mesmo tempo investe na “sobrevivência das formas”, já que a autobiografia continua presente na tensão provocada pela autoficção.

Para a crítica, a autoficção embaralha “o aspecto referencial da autobiografia e a pretensa autonomia da ficção”, pois os leitores ao mesmo tempo em que se prendem aos aspectos referenciais, ficam presos em um pacto ambíguo no qual o autor desestabiliza o real ao ficcionalizar elementos da vida. Apesar de valorizar essa oscilação, Souza em alguns momentos do texto acaba pendendo para um dos lados,  já que comenta que “Entre a autobiografia e o ‘romance do eu’ a ficção se coloca como intermediária’’, o que  faz parecer que a ficcionalidade é o fiel da balança.

Mas pensando na ideia de sobrevivência, me interessa discutir o que poderia significar essa postura em obras autoficcionais e também nas chamadas escrevivências.

Como a própria Eneida comenta, na obra de Molloy há o interesse de ficcionalizar um momento difícil, uma dor. Vemos essa ação em muitas obras autoficcionais brasileiras como em O pai da menina morta, de Tiago Ferro, O filho eterno, de Cristóvão Tezza, e A chave de casa, de Tatiana Salem Levy. Nessas obras, os personagens buscam sobreviver à dor, reelaborar a vida para poder seguir em frente, e a tensão entre vida e ficção é um  artifício literário que estimula a ambiguidade e torna contraproducente enxergar no autor a mesma dor sem nenhuma mediação. Pelo menos, é isso o que parece sugerir a resistência de muitos autores ao reconhecimento da dimensão autobiográfica de suas produções.

Mas será que esse mesmo efeito está presente nas obras da escrevivência? O termo elaborado por Conceição Evaristo busca trazer visibilidade para a população afro-brasileira que foi apagada ou que era estereotipada dentro da literatura. Dessa maneira, sobreviver na escrevivência representa tanto a sobrevivência dos personagens que passam por situações de racismo e reivindicam o direito de serem ouvidos e vistos, quanto dos próprios autores, sujeitos negros que possuem experiências compartilhadas com seus personagens, como acontece em O avesso da pele, de Jeferson Tenório e Becos da Memória, de Conceição Evaristo.

A ambiguidade é um terreno delicado. Alguns autores parecem assumir a escrevivência para suas obras a partir da experiência compartilhada de negritude com os personagens, mas, ao mesmo tempo, temem que essa vivência reduza suas obras a testemunhos. A noção de sobrevivência, destacada no argumento de Souza, para pensar os projetos da escrevivência e da autoficção tem rendimentos distintos. No entanto, algo parece persistir em ambos: certa suspeita da diminuição do valor literário das produções caso sejam filiados à autobiografia, mesmo que as narrativas  provoquem o olhar do leitor para o lado de fora.

A realidade e a representação no teatro contemporâneo

Marília Costa

Créditos da imagem: Rosas no jardim de Zula

Em minhas pesquisas recentes sobre a autoficção no teatro contemporâneo tenho percebido a importância do teatro documentário, das biografias e da participação de não atores nas produções teatrais do presente, fatores importantes para a incidência cada vez maior do real na cena teatral. A exemplo de espetáculos como Conversas com meu pai de Janaina Leite, By Heart de Tiago Rodrigues e Rosas no jardim de Zula de Talita Braga. A partir disso, surge o questionamento, até que ponto é possível manter a separação entre a representação e a “realidade” imediata no palco? Uma não está irremediavelmente imbricada na outra?

O espetáculo Stabat Mater de Janaina Leite apresentado na MITsp em 2019, tem como ponto de partida o texto teórico Stabat Mater (em latim, estava a mãe), da filósofa e psicanalista Julia Kristeva. O espetáculo tem o formato de uma palestra performance sobre o feminino, aludindo à história da virgem Maria, e tematiza o apagamento da presença da mãe no espetáculo anterior Conversas com meu pai. No palco, além de Janaina Leite também está presente a mãe da atriz e a figura de Príapo, interpretada por um ator pornô. Temas como sexualidade e maternidade são articulados a partir de uma pesquisa ampla sobre o “real” e o teatro. Small (2019), ao comentar a peça de Janaina Leite, pontua que “as oposições verdadeiro/falso e realidade/ficção enquanto valores que se excluem mutuamente já não parecem tão importantes. A noção de verdade neste trabalho é mais complexa e amadurecida.”

Espetáculos como o de Janaina Leite utilizam a estratégia cênica que coloca em jogo o debate da realidade através da ficção e da teatralidade e vice-versa. Desse modo, o espaço híbrido entre o documental e a ficção tão presente e discutido na literatura pode ser pensado também no teatro. Nesse contexto, o real e o ficcional atuam como lados de uma mesma moeda, logo, complementares e não mais opostos entre si. Esse realojamento do lugar da ficção e da realidade é importante para pensar conceitos como o da própria ficção e realidade, o de teatralidade, o de artifício e o de performance.

O eu e o nós. Autoficção e escrevivência

Caroline Barbosa

Créditos da imagem: Obra da série Geometria Brasileira, de Rosana Paulino (Foto: Reprodução/ Isabella Matheus)

Como já mencionei em posts anteriores, busco investigar as tensões entre autoficção e escrevivência nas obras A chave de casa, de Tatiana Salem Levy, e O avesso da pele, de Jeferson Tenório. Hoje gostaria de explorar como ambos os romances, cada um à sua maneira,  exploram a experiência autobiográfica em suas narrativas.

É comum a crítica se referir ao romance A chave de casa como autoficção.  Na obra de Tatiana Salem Levy, conhecemos a história de uma jovem (que não ganha nome na narrativa) que se sente paralisada depois da morte da mãe e que também se recupera das feridas deixadas por um relacionamento abusivo. À medida que  lemos, podemos observar ao menos duas coincidências biográficas entre a personagem e a autora: ambas têm a mesma idade e são judias. Esse jogo fica mais evidente em relação a Salem Levy se acompanhamos as entrevistas e as correspondências com sua história pessoal, confirmadas ou negadas pela própria autora em relação a sua personagem na obra.

Explorando essa ambiguidade, a narrativa insiste em confrontar as certezas de quem narra, já que vamos acompanhando contraversões do que já tínhamos lido, como nas passagens em que a mãe, que narra entre colchetes, desmente as memórias da filha.

Nasci fora do meu país, no inverno, num dia frio e cinzento. Duas horas de contração sem poder parar, porque eu não tinha virado e a anestesista não estava lá. Penou, a minha mãe, para me ter. E, quando vim ao mundo, ela nem pôde me segurar nos braços, tinham-lhe dado anestesia geral. Pior: quando acordou, percebeu que lhe tinham feito um corte na vertical.
 
[Lá vem você narrando sob o prisma da dor. O exílio não é necessariamente sofrido. No nosso caso, não foi. (…) Quando você nasceu, não estava frio nem cinzento. Não penei para parir. Não tomei anestesia geral nem tenho cicatriz, você nasceu de parto normal.]
 

Assim, chama a atenção o fato de que a narrativa parece emular uma conversa na qual a narradora expõe seu sofrimento, dirigindo-se a um “você”, como maneira de demonstrar sua dor.

Você escondeu o quanto pôde, evitou a palavra até onde foi possível. Você assegurou-me de que não morreria doente. De que não morreria. Você assegurou-se disso, agarrou-se a essa certeza que criara para si, mas também para mim. Eu acreditei, você não morreria. […] Não importa aonde for, faremos outro pacto e, se mais tarde for preciso, outro, e depois outro e outro e outro. Faremos quantos pactos forem necessários, mudaremos de mundo quantas vezes nos exigirem, mas uma coisa é certa: minhas mãos estarão sempre coladas às suas.

Vamos pensar agora em outro romance, O avesso da pele, de Jeferson Tenório. Aí, conhecemos Pedro, um jovem que perdeu o pai para a violência policial e que, vivendo o luto, resgata a memória do racismo atrelado a toda uma vida. Na obra, o narrador não deseja criar um jogo ambíguo com o leitor, no sentido de que ele diz e não diz que Pedro é (e ao mesmo tempo não é) Tenório. Não poderíamos aqui falar exatamente em uma autoficção, pois nada na narrativa aponta para elementos autobiográficos autorais. Ou será que podemos? Tenório é autor negro e em depoimento público já afirmou que seu livro pode ser entendido como autoficção.

Mas o mesmo recurso narrativo presente em Salem Levy chama a atenção e parece sofrer um deslocamento na narrativa de Tenório. Trata-se da utilização do pronome pessoal ‘você’. Depois de algumas páginas percebemos que Pedro escreve também como se conversasse  com o pai morto. Mas como os pronomes são lugares vazios também podemos pensar que a narrativa avança para fora da página e chama o leitor, “você”, para ouvir Pedro e vivenciar as experiências dos sujeitos negros na sociedade.

Até aquele momento você nunca havia sofrido racismo, assim, tão descaradamente, não que você se lembre. Mas você não se chocou, pois uma espécie de inércia tomou conta do seu corpo, você não sabia reagir. Na época você nem sabia muito bem o que significava ser negro. Não havia discutido nada sobre racismo, nada sobre negritude, nada sobre nada. Naquele momento voce era apenas um corpo negro.

Mas por que não pensamos em escrevivência, no conceito cunhado por Conceição Evaristo para se referir à escrita da experiência autobiográfica explorada ficcionalmente para fazer emergir as narrativas de mulheres negras silenciadas? Próximo à ideia de que o pessoal é político, Evaristo realça que o eu é sempre nós, toda individualidade negra é sempre parte de um coletivo.

Será que a narrativa de Tenório, elaborada ficcionalmente, pode extravasar a página e se remeter à experiência de mulheres e homens negros violentados pelo racismo?  Tenório trabalha com questões coletivas que parecem incidir tanto sobre sua biografia quanto sobre a realidade de todos nós, em um mundo no qual o racismo recrudesce.

Por enquanto, me debato com a nomenclatura (autoficção? Escrevivẽncia?), mas o que mais me interessa é entender a tensão entre os termos e a maneira como a subjetividade tratada como problema parece transbordar as obras e interpelar o leitor em sua própria vivência.

Autobiografia, ficção e muitas dúvidas

João Matos

Créditos da imagem: Katie Paterson, Future Library, 2014

Não se pode dizer que o termo “autoficção” é algo recente. Como sabemos, surgiu pela primeira vez na quarta capa do romance Fils, publicado em 1977 por Serge Doubrovsky, numa espécie de resposta ou provocação às considerações de Phillipe Lejeune sobre os pactos de leitura (autobiográfico e ficcional). Apesar de sua vasta circulação no campo literário, ainda há uma grande imprecisão teórica a respeito do conceito, como já explorou a colega Caroline Conceição, aqui mesmo no blog. Talvez por isso o uso do termo ainda levanta “polêmicas” a respeito das obras que podem ser lidas por esta perspectiva.

Não foram poucos os autores e teóricos que se propuseram a definir os desdobramentos da proposição original de Doubrovsky que instituiu um tipo de texto híbrido entre o romance e a autobiografia. Uma dessas discussões gira em torno da tensão que o “novo gênero” cria com uma nomenclatura velha conhecida da teoria literária, o romance autobiográfico. Philippe Gasparini, constatando a existência de um gênero que já explora a mescla entre romance e autobiografia se pergunta: por que apelar para um novo termo?

Talvez seja porque o caráter ambíguo dos textos considerados autoficcionais explora também um tabu para as discussões teóricas em nossa área: a consideração do dado autobiográfico (e, portanto, de um elemento que a teoria insistiu em considerar extra-literário até pouco tempo) como parte integrante do jogo com a elaboração ficcional, mesmo que o próprio autor declare a sua intenção de conceber o texto como “ficção pura”.

Em minha pesquisa de iniciação cientifica tento observar esses impasses considerando o primeiro romance de Tiago Ferro, O Pai da Menina Morta. Aí, lemos a dolorosa reflexão do “pai da menina morta” sobre a perda de sua filha. O trágico falecimento da filha de Ferro foi noticiado em jornais de grande circulação e tematizado pelo autor em um texto escrito para a revista Piauí.

Ao declarar que a autoficção não é um termo adequado para classificar seu romance e que a associação poderia “gerar uma leitura empobrecida do livro”, Ferro não demonstra apenas uma concepção negativa do termo, mas também declara sua confiança na elaboração de um universo ficcional autônomo, capaz de distanciar o “pai da menina morta” da narrativa da tragédia pessoal vivida pelo autor.

Entendendo a recusa ou o acolhimento ao termo como um vestígio dos deslocamentos no modo como tanto a autobiografia como a ficção são compreendidas hoje, tendo a valorizar a complexidade das questões lançadas pelo surgimento do termo autoficção. Será que o hibridismo do autobiográfico com o ficcional cria uma oposição com a liberdade inventiva e formal do escritor? A autoficção nos força a lidar com o estranhamento de novas formas textuais?

Autoficção: as tensões para além do conceito

João Matos

Créditos da imagem: Maurizio Cattelan Il Super Noi in 50 parts, 1998

 Em outras oportunidades, publiquei aqui mesmo no blog do Leituras Contemporâneas que um dos principais objetivos da minha investigação é entender os motivos da rejeição ao termo “autoficção” por parte significativa da crítica e dos próprios autores de obras que podem ser consideradas “autoficcionais”. É uma tarefa bem difícil, tendo em vista a persistente imprecisão teórica do termo, o que implica numa enorme variedade de perspectivas sobre o assunto e também em diversos motivos para justificar essa rejeição.

Tiago Ferro, autor de O pai da menina morta, objeto de estudo da minha investigação, faz questão de esclarecer que seu romance parte de um acontecimento de sua própria vida, a morte de sua filha vítima de uma gripe, e ainda assim rejeita a associação de sua obra com o conceito de autoficção, alegando que sua obra teria uma “forma própria”. Não pretendo problematizar novamente a justificativa de Ferro, e sim pensar na sua confirmação do acontecimento de sua vida no livro, pois isso nos ajuda a perceber que sua maior preocupação não é o autobiográfico em si, mas o papel que será desenvolvido pelo autobiográfico no texto literário.

Observar isso me fez pensar: “bom, se o problema não é o autobiográfico, por que não pensar os efeitos da autoficção nas autobiografias?”. Parece interessante olhar para o outro lado da autoficção, principalmente pelo meu entendimento de que o termo francês não propõe uma espécie de novo gênero para o campo da ficção literária, tampouco pretende ser apenas um conceito – acredito que a autoficção é essencialmente um questionamento aos pactos de leitura. O próprio surgimento da autoficção, na quarta capa do romance Fils (1977), de Serge Doubrovsky, deixa explícita sua intenção de contestar os pactos de leitura estabelecidos por Phillipe Lejeune em 1975, tanto o pacto ficcional quanto o pacto autobiográfico.

Das considerações feitas por Lejeune a respeito das autobiografias, a que mais me intriga é a ideia que toda autobiografia pode ser uma “invenção de si”, pois o mesmo Lejeune rejeita que essa invenção seja um fator que inscreve a autobiografia no campo da ficção literária. Mas um entendimento básico da noção de autoficção é que ela põe em xeque o pacto autobiográfico ao ser lida primordialmente como uma “invenção de si”. Assim, ao invés de pensar em um tensionamento provocado pela presença do autobiográfico na ficção, gostaria de investigar melhor os efeitos desse hibridismo na autobiografia. Como reconhecer, por exemplo, que uma autobiografia é romanceada?

Para a ficção, o conceito de “romance autobiográfico” é praticamente um tipo de escudo anti-autoficção. O próprio Tiago Ferro é um dos autores que utilizam esse rótulo que reforça o pacto ficcional, justamente porque nesse conceito o papel do autobiográfico é secundário, quase irrelevante, mas será que a leitura de sua obra pode relevar esse dado autobiográfico (exposto meses antes da publicação do livro pelo próprio Ferro em matéria para a revista Piauí)?

Assim, a adoção da nomenclatura “romance autobiográfico” tenta afrouxar os tensionamentos propostos pela autoficção. Mais do que indicar uma resistência ao termo híbrido (“esse conceito já existe”) é um jeito de preservar os pactos de leitura sem os redefinir (ainda que isso pareça necessário), excluindo as nítidas tensões entre textos autobiográficos e textos literários/autoficcionais.