Arquivo da categoria: Hibridismo

A autoficção e os híbridos

Marília Costa

Créditos da imagem: Slater Badley, coda II, 2004-2005

Em minhas pesquisas sobre a autoficção tenho percebido a dificuldade que há em tentar conceitualizar um termo sobre o qual há uma grande disputa teórica. A falta de consenso teórico em torno da autoficção pode ser justificada pela complexidade do termo, que é híbrido por natureza, e pode atravessar várias categorias discursivas: o literário, o textual, o teatral, o cinematográfico entre outros. Por esse motivo, tenho pensado a autoficção como operador teórico capaz de dar respostas a problemas que a teoria e as obras nos apresentam. Contudo, há um elo entre os diferentes tipos e práticas autoficcionais: o embaralhamento das fronteiras entre o real e o ficcional. Esse ponto em comum aos inúmeros exercícios autoficcionais modifica a concepção de pacto autobiográfico postulada por Philippe Lejeune, abrindo espaço para um novo pacto, o pacto ambíguo, termo criado por Manuel Alberca, que permite que um único texto seja lido como ficcional e mesmo assim mantenha o caráter referencial do que conta.

A exploração das fronteiras entre o autobiográfico e o ficcional funciona como uma potente engrenagem para autores da literatura contemporânea, tanto de língua estrangeira como de língua portuguesa. Mas, muitos críticos e teóricos não veem com bons olhos esse hibridismo e costumam afirmar que o leitor fica em uma posição difícil diante da autoficção. Nesse sentido, Philippe Lejeune afirma que “o leitor diante da ideia de ler um texto simultaneamente como autobiografia e ficção, não consegue medir exatamente o que isso significa; e acaba o lendo como uma autobiografia clássica”.

Arnaud Schmitt, outro teórico francês, entende que há uma resistência do cérebro humano para assimilar um texto como simultaneamente ficcional e autobiográfico. Para Schmitt, o uso da palavra autonarração como substituto da autoficção amenizaria essa dificuldade, sendo mais adequado para conceituar os escritos autobiográficos em que o autor faz uso de técnicas próprias do romance. Percebemos, então, nos argumentos de Lejeune e Schmitt, que a rejeição à autoficção é motivada pela dificuldade de lidar com o híbrido autobiografia-ficção.

Em Jamais fomos modernos, Bruno Latour defende que o que chamamos de modernidade é marcado pela tentativa de purificação dos híbridos. Para o filósofo, o esforço por recalcar o hibridismo durante a modernidade gera sua proliferação: “quanto mais nos proibimos de pensar os híbridos, mais seu cruzamento se torna possível”. Assim, Latour aponta que os híbridos nunca deixaram de ser produzidos, apenas tentamos sufocar a existência deles em nome dos pressupostos da modernidade. Por isso, defende Latour, se olharmos para trás, perceberemos que na prática “jamais fomos modernos”, pois sempre estivemos nos equilibrando entre os processos de purificação e hibridização simultaneamente.

Em sua investigação, Bruno Latour  estava pensando a separação entre natureza e cultura, sujeito e objeto, humano e não humano que dominou os discursos vigentes na modernidade, mas podemos deslocar os pressupostos do filósofo para pensar também a autoficção. Podemos especular que Arnaud Schmitt e Philippe Lejeune rejeitam a mistura entre vida e ficção porque defendem a lógica da purificação dos gêneros, própria da modernidade, como sugeriu Latour.

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Narrativas com imagens

Samara Lima

Créditos da imagem: A Photosession, de Victoria Ivanova

Estou começando uma nova investigação de iniciação científica. Agora, meu plano de pesquisa quer discutir a presença das imagens em tantas narrativas do presente e a pergunta inicial diz respeito ao estatuto da imagem fotográfica em meio às histórias.

Comecei lendo Roland Barthes. Em seu texto “A retórica da imagem”, o francês toma como ponto de partida a análise de uma imagem publicitária de anúncio de massas Panzani, pois, segundo ele, sua mensagem é “intencional” para constatar que toda imagem carrega uma produção de sentido. Ao analisar o anúncio, ele sugere que a imagem apresenta três níveis de mensagens, a saber: linguística, denotativa e conotativa. Na primeira, a mensagem tem como suportes a legenda e a etiqueta; na segunda, a mensagem é de “natureza icônica”, em que podemos identificar cada objeto representado na imagem; e, por último, a mensagem simbólica, na qual os significados inseridos e interpretados variam de acordo com a cultura do produtor e receptor.

Um dos pontos que me interessam na discussão de Barthes é o que ele identifica como as duas funções da mensagem linguística em relação à imagem: a de fixação e a de relais. Segundo Barthes, quando a linguagem privilegia a função de fixação em relação à imagem,a palavra busca elucidar o que está na cena sem apresentar uma nova informação. A função de fixação é, antes de tudo, limitar a “cadeia flutuante” de significados possíveis da imagem.

Já a função de relais é mais difícil de ser encontrada, segundo Barthes, pois nela “a palavra e a imagem têm uma relação de complementaridade”, em que o diálogo entre ambos os discursos pressupõe uma expansão dos significados, adiciona uma informação inédita e “faz progredir a ação”.

A imbricação da escrita com outras práticas artísticas não é nova. Se pensamos na presença das imagens fotográficas em narrativas recentes o nome do alemão W. G. Sebald logo é lembrado. Mas é curioso notar que, na cena literária atual, cada vez mais nos deparamos com narrativas que incorporam imagens. Basta pensar,  por exemplo, no livro O pai da menina morta, de Tiago Ferro.

Considerando as funções de fixação e de relais que a linguagem pode ter em relação à imagem, segundo a reflexão barthesiana, muitas interrogações surgem: a imagem é apenas ilustração ou, ela mesma, constitui uma narrativa (relais)? O texto explica a imagem (fixação)? Qual os efeitos provocados pela presença da imagem em meio à narrativa? Aproveitando a leitura de Barthes, desejo submeter “a imagem a uma análise espectral”, a fim de revelar suas possíveis virtualidades e a maneira como a imagem pode expandir os significados presentes na narrativa. 

A literatura no presente

Nilo Caciel

Créditos da imagem: ‘‘Tenho medo que sim’’ de Regina Parra

Mulheres empilhadas, romance de Patrícia Melo publicado pela editora Leya em 2019, narra a trajetória de uma advogada paulistana que parte para o Acre a fim de acompanhar os trabalhos de um mutirão criado pela justiça para solucionar casos de feminicídios. A escolha do Acre não foi por acaso: o estado lidera o ranking nacional de crimes contra a mulher. Lá, a jovem se vê diante das complexidades legais, econômicas e culturais que cercam a violência de gênero.

A violência doméstica e a condição das mulheres na sociedade brasileira permeiam toda a obra. A mãe da protagonista foi assassinada pelo marido. A princípio os leitores são levados a acreditar que vamos conhecer a própria experiência da protagonista, já que o ponto de partida da narrativa é o relato de seu relacionamento abusivo com Amir. Depois de ser agredida pelo namorado, que no começo do relacionamento não parecia encarnar o papel do macho violento, a narradora decide aceitar o trabalho de sua agência de advocacia e viajar para o Acre.

Ao mostrar as diferentes formas nas quais o machismo se manifesta na vida das diferentes personagens é que a obra ganha nuances, já que o livro mostra o caráter ‘‘democrático’’ do machismo: ele não poupa mulheres oriundas de classes privilegiadas.

Patrícia Melo declarou ao Correio Braziliense: ‘‘Não acredito que a literatura tem uma função social’’. No entanto, ao falar sobre o livro ao Estado de Minas, a autora expressa a urgência de falar sobre o tema no momento atual: “É algo que temos que falar. No Brasil, matam-se onze mulheres por dia. São números que assombram, que nos incomodam, nos intimidam. É uma estatística inaceitável. Dentro desta sociedade violenta em que vivemos, o feminicídio é a ponta do iceberg. Mas, quanto mais a gente debater isso com profundidade, mais vamos tentar encontrar um mecanismo para erradicá-lo”.

Algumas outras entrevistas chamam a atenção para o fato de que Mulheres Empilhadas é seu primeiro romance narrado por uma mulher ainda que Melo já tenha lançado doze livros, muitos dos quais traduzidos para várias línguas, e de ter sido premiada com o Jabuti por Inferno em 2001.

Será que poderíamos dizer que a obra de Melo e a decisão de, já veterana, dar voz a uma narradora feminina para falar do feminícidio está relacionado a uma tensão que força a fronteira do que chamamos de ficção hoje? Melo quer ocupar a literatura com um problema que ronda nosso dia a dia, amarrando as preocupações de nosso presente às preocupações, temas e personagens da literatura contemporânea. Um artifício da própria narrativa que deixa isso evidente é o jogo entre a história fictícia da protagonista e a menção a histórias reais de feminicídios no texto que lidam com nomes verdadeiros das vítimas e expõem um mínimo contexto de suas mortes. Mas talvez o elemento mais evidente da tensão a que me referi diz respeito aos trechos que remetem às Icamiabas, as míticas índias guerreiras da Amazônia, pois a protagonista se alia, em delírio provocado pela ingestão de bebidas alucinógenas, a um grupo de mulheres justiceiras que lutam juntas contra a violência masculina, punindo os agressores que conseguem escapar impunes da lei. A atmosfera fantástico-maravilhosa destes trechos cria um contraste com o tom realista da narrativa principal, que muitas vezes se assemelha a uma reportagem jornalística.

Esse talvez seja o aspecto mais interessante da obra, pois mostra como escrever e ler ficção hoje significa também apontar para a reflexão sobre o modo como encaramos o que chamamos de literatura.

A Ocupação Poética Da Karina Rabinovitz

Milena Tanure

Créditos da imagem: poesia no olho [da rua]. poesia atravessada [na garganta da cidade] (Imagem disponível no blog da escritora: https://karinarabinovitz.blogspot.com/p/na-rua-meus-poemas-fragmentos.html)

No texto “Entre palavras e imagens, o espaço híbrido na poética de Karina Rabinovitz”, Mila Araujo Fonseca nos apresenta o lugar múltiplo dessa poeta-artista que experimenta o lugar fragmentado das fronteiras contemporâneas das artes. Esgarçando limites, Karina me interessa em especial por seus gestos estéticos que me levam a pensar um termo que tentarei abarcar teoricamente nas minhas pesquisas: a ideia política de ocupação dentro da literatura e da cidade. Agenciando formas de estar/ocupar a cidade com sua poética, Karina realiza intervenções poéticas nas ruas da cidade, seja colando lambe-lambe em postes, deixando bilhetes poéticos nos pontos de ônibus ou colocando versos em muros da capital baiana.

Uma rápida busca pelas produções de Karina no Google revela como produção poética, ocupação do espaço urbano e diálogo com outras artes, sobretudo as plásticas, se correlacionam com o seu fazer literário. Nesse sentido, é possível citar “poesia atravessada [na garganta da cidade]”, no qual são colados poemas em faixas de pedestres; “lambe-lambe poesia”, instalação audiovisual montada em praça pública; “poesia: intimidade pública ou poemas toylete”, stickers com trechos de poemas a serem colados em banheiros públicos e “poesiamobília de vento ou móbilepoesia”, mobiles de palavras flutuantes no céu da cidade.

Tem-se, então, outras formas de produção que tornam mais fluidas as fronteiras entre o processo de feitura e a circulação do objeto literário. A cidade, por sua vez, não pode ser pensada aqui apenas como espaço de suporte para exposição das produções, pois atua como elemento constitutivo da performance artística ou chave de leitura que ajuda a atribuir sentidos ao texto poético.

Se pensarmos, por exemplo, o LIVRO de água, um livro-objeto construído em coautoria com Silvana Rezende, parceira de Karina em muitas de suas propostas artísticas, não há como ser alheio a como nele há o esgarçamento dos limites entre produção e exposição da obra. Este livro surge não apenas como livro-objeto, mas também como instalação artística que ocupou o Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM) em 2013, e nisso percebemos um provável indício do que Ludmer nos sugere sobre “textos que apresentam uma ambivalência de se posicionar ao mesmo tempo dentro e fora do que tradicionalmente se considera literatura e ficção”.

Vai se delineando, assim, o modo pelo qual Karina vai me interessando por ser essa autora baiana que se coaduna a muitas das propostas e inquietações mais contemporâneas no campo literário. A produção literária por ela proposta quebra as lógicas tradicionais e coloca em cena textos/instalações que não respondem às categorias tradicionais de análise. Em LIVRO de água, por exemplo, tem-se um livro sem princípio ou fim cuja leitura pode seguir o ritmo da numeração das páginas ou se desenvolver pela mistura e desordem de textos e imagens a serem lidos na ordem e desejo do leitor que organiza e desorganiza as páginas soltas. Nele, tem-se acesso aos poemas que nos são apresentados como nos cadernos de pesquisa da poeta, escritos à mão, dando acesso à caligrafia e intimidade do fazer poético.

Tanto o LIVRO de água como as demais produções aqui citadas relacionam produção estética e política, bem como a ocupação do campo literário atrelada a uma ocupação do espaço urbano. Nesse contexto, percebe-se uma produção que nos leva a questionar de que forma textos como esses questionam as formas institucionalizadas de literatura e da crítica literária.

Ler o romance-ensaio

Allana Emilia

Créditos da imagem: Sandra Vasquez de la Horra, de perlar e burbujas, 2014. 

Em meu texto passado, trouxe algumas reflexões iniciais sobre o objeto de minha pesquisa. Meu interesse em estudar formas narrativas que se aproximam de uma dicção ensaística apresenta um ponto importante, já comentado brevemente: uma experiência de mundo deslizante, constantemente remodelada, associada à perspectiva de um sujeito – personagem ou narrador -. Um exemplo de narrativa com essa característica é dado por Timothy Corrigan em seu livro O filme-ensaio: de Montaigne a Marker, que, ao falar de filmes que trazem uma marca forte do ensaístico, como 2 ou 3 coisas que eu sei dela, de Jean-Luc Goddard, ressalta essa subjetividade expressiva como uma marca desses filmes. Essa subjetividade expressiva aparece associada a uma figuração do pensamento como discurso, representados no cinema a partir de encontros experienciais em situações públicas. No filme citado, a perspectiva do narrador sobre a realidade aparece relacionada à vivência de Juliette Jeanson, protagonista do filme. É a partir das situações vividas por essa personagem que se pode perceber a opinião do narrador sobre alguns assuntos, como a guerra do Vietnã ou a sociedade de consumo.

Com essas relações em mente – e um pouco mais de pesquisa -, me deparei com outro tópico que pode ser uma nova chave de leitura para as narrativas de meu interesse. Rafael Gutiérrez, em seu livro Formas Híbridas, publicado em 2017, chama a atenção justamente para obras que aparecem no contemporâneo que apresentam o que ele chama de “mistura de gêneros” (p. 20); ou seja, textos que não apresentam traços de um só gênero, se aproveitando de recursos ensaísticos e/ou da autobiografia, assim como da crítica literária ou do discurso histórico. Em obras analisadas por ele, como Bartleby e Companhia, de Enrique Vila-matas, e O movimento pendular, de Alberto Mussa, a estrutura do romance aparece amalgamada a outros elementos de outros gêneros, causando um certo estranhamento, de maneira a suscitar questões sobre o que se entende como ficcional.

Considerando especificamente a relação entre o romance e o ensaio, pensamos logo em O Homem sem Qualidades, de Robert Musil. Aí, podemos perceber tanto a presença de um estranhamento causado por essa hibridação de formas quanto a figuração do pensamento a partir de uma subjetividade expressiva na figura do protagonista, Ulrich. É a partir de suas experiências que a narrativa se desenvolve, e a história é contada pelo narrador a partir das reflexões do protagonista sobre suas interações com outros personagens, e as consequências desses acontecimentos. A hibridação de formas permeia a narrativa e é evidente principalmente ao longo dos muitos parênteses feitos pelo narrador ao explicitar contextos específicos, como o início das reflexões de Ulrich sobre o modo como vive sua vida e a “utopia do ensaísmo”, que vai se tornando o seu objetivo ao longo da narrativa. Parece pertinente pensar que a presença desses dois aspectos pode ser tomada como característica da forma romance-ensaio.

Saindo da ficção?

Luciene Azevedo

olafur eliasson waterfall 2016

Olafur Eliasson, Waterfall, 2016

 

          Acho que não é possível negar que nós, leitores, estamos cercados por lançamentos literários que acolhem gêneros não literários como matéria prima das narrativas contemporâneas.  Em muitas obras atuais podemos encontrar o flerte com a dicção ensaística que tem o próprio autor como personagem principal do relato ou ainda a exposição processual de construção da obra que parece inacabada e que se expõe precariamente, oferecendo-nos o que parece ser anotações de preparação para a escrita da narrativa. Os exemplos são muitos. Podemos pensar em Machado de Silviano Santiago, que acolhe tranquilamente as duas caracterizações brevemente delineadas acima, mas também em obras que oscilam entre o auto-ensaio e uma dicção tateante em busca de uma forma para contar e que muitas vezes dão a impressão de estarem saindo da ficção, como é o caso de O Impostor do espanhol Javier Cercas.

            Essa impressão já se materializou ao menos ao olhos da indústria editorial e do jornalismo cultural que fazem circular, por exemplo o rótulo  “romance sem ficção” para nomear as produções de Patrick De Ville, que trabalha a partir de uma ampla pesquisa bibliográfica sobre personagens reais. É assim em Viva! em que explora o affair entre Frida Kahlo e Trotsky, por exemplo, ou ainda em Peste e Cólera quando esquadrinha e revela para o leitor as aventuras e a vida de um discípulo de Pasteur, o médico Alexandre Yersin,  mesclando-as às reviravoltas históricas e políticas da passagem do século XIX para o século XX.

            Esse hibridismo nem sempre é bem visto teoricamente. Muitos estudiosos alegam que a aproximação da literatura e mais especificamente do romance com outros gêneros é uma marca da própria ideia de literatura moderna entendida como ficção e não uma caracterização válida para o que chamamos, imprecisamente, de o contemporâneo.

            Para fazer um breve exercício, vamos pensar aqui em um romancista bissexto, Edgar Allan Poe e em sua  A narrativa de Arthur Gordon Pym.  Poe tateia em meio ao momento de afirmação do romance como gênero e da ficção como sua característica legitimadora. Tal como Defoe e seu Robinson Crusoé, Poe precisa se equilibrar entre o livre jogo com a imaginação, ainda encarado com desconfiança, e o fetichismo referencial de seus leitores. É por isso que ora enfrentamos o ritmo alucinado da narração de aventuras mirabolantes, ora somos reféns da certificação, exaustiva, da verdade, do testemunho do narrador que entremeia aí verdadeiras ilhas de informação obcecadas com latitudes e precisões geográficas. Assim, é possível manter o flerte com os relatos de viagem, tão comuns à época, e ao mesmo tempo abrir espaço à ficção e à legitimação do romance como gênero.

            Já que, então, o romance, desde o início, pode ser caracterizado como um gênero sem forma associado a essa capacidade de incorporar outros gêneros (diários, crônicas de viagem e tantos outros), cujo surgimento está intimamente associado à legitimação da literatura moderna entendida como ficção, como poderíamos pensar o hibridismo das formas narrativas contemporâneas?

            Se o argumento de que no momento inaugural do romance o flerte com as formas não ficcionais era necessário para a legitimação da ficção for válido, podemos pensar que no presente a expansão do romance na direção de formas não ficcionais caracteriza uma saída da ficção e implica  um redefinição da ideia de literatura moderna para renovar os impasses à representação?

            Considerando a lição de Borges, e a possibilidade de reconhecer no Quixote de Pierre Menard um outro Quixote, talvez valha a pena investir no escrutínio das  particularidades históricas, sociais e literárias associadas a esse hibridismo em nosso momento atual debruçando-se sobre obras que imbricam projeto literário, a forma do romance e a vida do eu que se conta ensaisticamente, expondo obra e sujeito de forma processual, esboçada, como se a narrativa fosse a preparação da própria obra a fim de considerar se a literatura pode sair da ficção.