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A exposição pública da condição sorológica em duas narrativas ficcionais brasileiras

Ramon Amorim

Créditos da imagem: Telmo Lanes, O buraco, 2004.

A sorologia positiva para HIV tem sido um assunto abordado de forma recorrente em narrativas brasileiras. No post falei sobre alguns aspectos da questão no relato autoficcional de Gabriel de Souza Abreu. Nesta produção o autor se questiona bastante sobre para quem irá revelar sua condição sorológica e quando. Abreu tem consciência de que essa é uma informação sensível e que sua publicidade pode ocasionar todo tipo de resposta violenta e preconceituosa.

Se na obra de Abreu o manejo da informação está sob o controle do narrador/autor, o mesmo não ocorre com os personagens Walter, do livro O tribunal da quinta-feira (2016), de Michel Laub, e Henrique, de Você tem a vida inteira (2018), escrito por Lucas Rocha. Nos dois romances, a sorologia positiva para HIV é revelada de forma pública, através da internet, por terceiros como uma espécie de vingança.

Em O tribunal da quinta-feira, romance predominantemente em primeira pessoa, o protagonista, José Victor, tem parte da correspondência por e-mail que troca com o amigo Walter divulgada pela esposa. A descoberta da traição do marido com uma colega de trabalho e o fim do casamento servem de motivo para o ato de vingança. Aproveitando-se da forma descuidada e leviana com a qual os dois amigos abordam diversos temas sensíveis, entre eles o HIV/AIDS, Teca, a esposa do narrador, envia para um círculo de amigos parte do conteúdo das conversas contidas no correio eletrônico do marido.

Já no romance de Lucas Rocha, a condição sorológica de um dos protagonistas, Henrique, é revelada pelo ex-namorado que não aceita a rejeição depois de uma tentativa de reconciliação. A exposição é feita através de uma postagem por um perfil anônimo na rede social Facebook. O conteúdo da mensagem aponta para um imaginário preconceituoso sobre o HIV e a AIDS, nele são usadas expressões como AIDÉTICO, DOENÇA IMUNDA e DOENÇA MALDITA (assim mesmo, em caixa alta).

Além da vingança, principal motivo da exposição pública da sorologia dos personagens, o “jogo” com o preconceito e o imaginário público sobre o HIV/AIDS também está presente nas narrativas.

Na produção de Laub, a sorologia em si não é colocada como o principal problema, mas sim a forma despreocupada com que os personagens fazem piadas de gosto duvidoso sobre o tema, por vezes associando o ato sexual a uma infecção proposital: “Remetente: eu. Destinatário: Walter. (…) Estou pensando em convidar a vítima redatora-júnior para contrair A.I.D.S./S.I.D.A.” (LAUB, 2016, p. 94). Em Você tem a vida inteira, o “jogo” está na associação da condição sorológica com um possível comportamento promíscuo e na afirmação de que o personagem, vítima da postagem caluniosa, é um transmissor proposital do vírus HIV: “tenho certeza que ele passa essa DOENÇA MALDITA para todos aqueles que se relacionam com ele” (ROCHA, 2018, p. 238).

A exposição da sorologia nos romances aponta para uma tentativa de se utilizar dos preconceitos mais arraigados na sociedade para produzir mais violência contra sujeitos soropositivos. A tentativa se apoia na certeza de um imaginário coletivo que ainda vê pessoas com HIV/AIDS como promíscuas, sujas, perversas e irresponsáveis, entre outras coisas. A sociedade representada nas narrativas reflete a sociedade “real”. De forma mimética a ficção aponta, talvez não de forma proposital, para problemas recorrentes na “realidade”. Considerando que essa tem sido umas das principais funções, não a única, da produção narrativa brasileira sobre HIV/AIDS, é possível dizer que as obras se enquadram em um conjunto difuso e mais amplo  das representações sociais  sobre HIV/AIDS.