Arquivo da categoria: Marília Costa

Ensaio, vida e espetáculo

Marília Costa

Recentemente, tive a oportunidade de assistir ao espetáculo “Espontaneamente – genealogia da memória” com a Cia. de teatro Improviso Salvador, que fazia parte da programação do Festival Lusoteropolitana. A peça foi encenada no Teatro Sesc Pelourinho e ao adentrar o local me deparei com o primeiro estranhamento: o palco estava repleto de cadeiras e os atores orientavam o público a sentar ali. Logo de início o elenco solicitou que o público usasse a imaginação, pois eles estavam sem cenário e por isso improvisavam, pois o cenário tinha ficado preso no Teatro Castro Alves para vistoria por conta de um incêndio dias antes da apresentação. A ausência do cenário foi mais um recurso para a quebra da quarta parede, já que a interação dos atores com a plateia vai se tornando mais intensa até que o público torna-se parte da cena.

Durante o espetáculo, os atores relatavam experiências pessoais amorosas, infantis e outras que envolviam traumas e relações familiares. Tudo estava baseado na improvisação das histórias, com toques de humor à narrativa dos dramas. Não demorou muito para que os atores começassem a apontar para a plateia que se acomodou no palco e solicitar que as pessoas compartilhassem memórias que tivessem relação com as experiências dos atores. A dinâmica se manteve: uma pessoa da audiência contava sua história de amor e os atores a encenavam no palco com improvisos.

Dois procedimentos chamam a atenção. A peça demorou muito para começar e pareceu de início estar atrasada, mas, na verdade, o espetáculo já tinha começado no hall do teatro. Os atores disfarçados de público interagiram com os espectadores que estavam aguardando a abertura da sala e fizeram uma sondagem para saber quem tinha histórias interessantes para compartilhar. Depois de iniciado o espetáculo, a audiência acompanha um processo de dupla ficcionalização da vida no palco, já que o enredo é improvisado a partir dos dados biográficos das próprias vidas dos atores e também do público. Esse é o procedimento artístico fundamental dessa encenação teatral.

Assistir a esse espetáculo me fez lembrar de outra experiência: “By Heart” de Tiago Rodrigues, já comentada em um post anterior. A mobilização de não atores para ocupar o centro do palco cria uma “situação teatro” e transforma o espetáculo em um Work in process. O termo, utilizado por Renato Cohen para pensar a performance, indica como ensaio e espetáculo fazem parte de um mesmo momento de construção e se abrem para a convocação do público que participa de modo ativo da representação.

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A realidade e a representação no teatro contemporâneo

Marília Costa

Créditos da imagem: Rosas no jardim de Zula

Em minhas pesquisas recentes sobre a autoficção no teatro contemporâneo tenho percebido a importância do teatro documentário, das biografias e da participação de não atores nas produções teatrais do presente, fatores importantes para a incidência cada vez maior do real na cena teatral. A exemplo de espetáculos como Conversas com meu pai de Janaina Leite, By Heart de Tiago Rodrigues e Rosas no jardim de Zula de Talita Braga. A partir disso, surge o questionamento, até que ponto é possível manter a separação entre a representação e a “realidade” imediata no palco? Uma não está irremediavelmente imbricada na outra?

O espetáculo Stabat Mater de Janaina Leite apresentado na MITsp em 2019, tem como ponto de partida o texto teórico Stabat Mater (em latim, estava a mãe), da filósofa e psicanalista Julia Kristeva. O espetáculo tem o formato de uma palestra performance sobre o feminino, aludindo à história da virgem Maria, e tematiza o apagamento da presença da mãe no espetáculo anterior Conversas com meu pai. No palco, além de Janaina Leite também está presente a mãe da atriz e a figura de Príapo, interpretada por um ator pornô. Temas como sexualidade e maternidade são articulados a partir de uma pesquisa ampla sobre o “real” e o teatro. Small (2019), ao comentar a peça de Janaina Leite, pontua que “as oposições verdadeiro/falso e realidade/ficção enquanto valores que se excluem mutuamente já não parecem tão importantes. A noção de verdade neste trabalho é mais complexa e amadurecida.”

Espetáculos como o de Janaina Leite utilizam a estratégia cênica que coloca em jogo o debate da realidade através da ficção e da teatralidade e vice-versa. Desse modo, o espaço híbrido entre o documental e a ficção tão presente e discutido na literatura pode ser pensado também no teatro. Nesse contexto, o real e o ficcional atuam como lados de uma mesma moeda, logo, complementares e não mais opostos entre si. Esse realojamento do lugar da ficção e da realidade é importante para pensar conceitos como o da própria ficção e realidade, o de teatralidade, o de artifício e o de performance.

Lugar de fala e foco narrativo

Marília Costa

Créditos da imagem: Eduardo Kobra

Em 2020, José Falero publicou, pela editora Todavia, Os supridores. A narrativa trata da trajetória de dois jovens periféricos que trabalham como supridores em uma rede de supermercados e resolvem vender maconha como estratégia para escapar do regime opressor da pobreza. Tudo se passa no bairro Lomba do Pinheiro, periferia de Porto Alegre, lugar onde o autor cresceu e vive até hoje. O tema central do livro é a discussão sobre a desigualdade social no país, apresentada a partir da lógica marxista, da crítica à meritocracia e da valorização da leitura como fonte de conhecimento e atividade reflexiva que possibilita a não alienação pelo trabalho e pelo consumo.

A fortuna crítica da obra tem destacado que Os supridores é uma obra sobre a periferia e feita na periferia, como pontua Luís Augusto Fischer: “É um escritor que vai além da tradição realista ocidental, da produção de livros de classes confortáveis sobre pobres. É alguém cujo horizonte é o da pobreza e que transita entre a língua falada naquele mundo e a linguagem sofisticada”. Nesse sentido, é interessante pensar como a dimensão interna da obra dialoga com a dimensão externa na análise crítica e na recepção contemporânea.

A dimensão interna da obra diz respeito ao foco narrativo, ou seja, à orientação do olhar do narrador sobre seus personagens. Ao escolher um ponto de vista para a narrativa, o narrador escolhe um recorte, uma posição a partir da qual torna possível a seus leitores conhecerem seus personagens. Em Os supridores, o olhar do narrador concentra-se na perspectiva dos personagens Pedro e Marques e o narrador parece onisciente, mas no final do livro é revelado que, na verdade, trata-se de um dos personagens, Pedro, que conta tudo que viveu em forma de livro.

A dimensão externa à obra nos faz pensar em outro ponto de vista: o lugar de fala, A expressão refere-se à posição do sujeito em relação ao discurso (no sentido foucaultiano de discurso). Aqui o que está em jogo é o locus social da autoria, pois a afirmação da experiência de indivíduos historicamente silenciados ganha destaque e oferece perspectivas distintas e diversas para a leitura da obra.

José Falero, que só recentemente concluiu o ensino médio, vive na Periferia de Porto Alegre e já trabalhou como supridor de supermercado, ficamos sabendo lendo as inúmeras entrevistas dadas pelo autor. Essas informações provocam uma tensão sobre a relação entre o lugar de fala e a noção de ponto de vista e ampliam o comentário sobre a obra, expandindo sua análise para “fora” do texto. Assim, cada vez mais as fronteiras entre o ético e o estético vão se estreitando na contemporaneidade, pois é muito comum aproximarmos o narrador do autor empírico. Nesse sentido, Os supridores é uma obra que convoca o trânsito incessante entre o dentro (o mundo ficcional elaborado por Falero) e o fora, o lugar de fala de seu autor, sua origem proletária, morador de comunidade.

Os tais caquinhos do contemporâneo

Marília Costa

Créditos da imagem: Falconeira, de Julia Debasse, 2013

Hoje, gostaria de comentar Os tais caquinhos da escritora Natércia Pontes, lançado em 2021 pela Companhia das Letras. O livro mobiliza fragmentos compostos por diários, bilhetes e anotações com títulos desconectados das temáticas dos capítulos, embora algumas vezes sejam retomados em outros momentos, numa espécie de repetição e neurose. Esse traço aponta para o caos em que os personagens estão mergulhados, mas também para a desorganização e o amontoamento de palavras, objetos e sentimentos que fazem parte do cotidiano das personagens e são representados pelo procedimento formal e discursivo utilizado na composição do romance.

A narrativa trata das desventuras da adolescente Abigail que vive com o pai Lucio e a irmã Berta em um apartamento imundo, cheio de tralhas, insetos, lixo e todo tipo de objetos que são acumulados compulsivamente pelo pai da personagem. A relação familiar é marcada pelo abandono da mãe que foi embora com as duas irmãs mais novas e pela falta de cuidado adequado do pai com as duas filhas adolescentes. O pai não é presente e age com estranha passividade diante de todas as demandas das filhas. Logo o leitor percebe, então, que os fragmentos amontoados no livro de modo caótico funcionam como uma espécie de junção entre forma e conteúdo, um espelhando o outro.

A narrativa é muito marcada pela falta: “Eu não tenho corpo. Eu não tenho quem me conheça tanto. Eu não tenho pulso. Eu não tenho mãe há muito tempo. Eu não tenho mãe.” É também a ausência do pai que nunca está em casa e parece sempre alheio às necessidades e problemas das filhas. É a ausência da irmã que está sempre na casa de uma amiga, com a qual a relação é pouco explorada no livro. É a falta de limpeza do ambiente e higiene pessoal, e por fim, a falta de comida que é explorada através do lixo, dos restos, em um ambiente onde falta tudo, o lixo ocupa o espaço. A narradora nunca chama o pai de pai, mas sempre de Lucio, nunca chama o apartamento de casa, mas sempre de apartamento 402, nota-se aí uma ausência de pertencimento.

O estranhamento e a desautomatização sempre estiveram associados à literatura. Esse procedimento tem relação com a representação e o conceito de ficção que se consolidou com o gênero romance e que ainda se sustenta atualmente. Mas o que entendemos por estranhamento também é afetado historicamente. Na contemporaneidade, muitas narrativas “impulsionam a literatura em direção de uma deriva estética que desestabiliza as convenções (…) para levar a literatura para além do limite, empurrá-la permanentemente para o abismo que se abre quando se renuncia à tranquilidade das linguagens ordenadas e as certezas de seus fundamentos”, como afirma a professora e pesquisadora Ana Olmos.

A leitura da obra de Pontes oferece ao leitor uma experiência de estranhamento, sem dúvida. Muitas obras publicadas recentemente são lidas na clave do esvaziamento do literário, da representação e do não desenvolvimento adequado dos personagens, como aconteceu com  Os tais caquinhos, que recebeu críticas nesse sentido (como a resenha de Luís Augusto Fischer para a Folha). Aí, a questão do valor é um tema central. O livro de Pontes falha como romance ou o que parece falha é apenas um deslocamento da noção de estranhamento que experimentamos na leitura de muitas contemporâneas?

By heart e a “situação” teatro

Marília Costa

Créditos da imagem: By heart (2013), Tiago Rodrigues, Mostra de Espetáculos

Meu projeto de pesquisa atual tem me levado a conhecer melhor a cena teatral contemporânea e a analisar os mecanismos formais de uma produção dramatúrgica que privilegia as relações da ficção com a vida. Hoje, farei um breve comentário sobre o espetáculo By heart (2013) do dramaturgo, ator, produtor e encenador português Tiago Rodrigues, encenado em 2020 na MiTsp – 7ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. Na apresentação, há a mobilização da memória, do afeto, da literatura, da resistência em sentido político e do público como recurso cênico.

O título By heart remete à morfologia, “em português, decorar é sinónimo de aprender de cor. E desde que eu comecei a trabalhar como actor, sempre preferi usar o termo “aprender de cor”. “Cor”, forma arcaica da palavra ‘coração’” (RODRIGUES, 2013). E é justamente esse movimento que o ator propõe à plateia ao solicitar que dez voluntários ocupem as cadeiras distribuídas no palco: essas pessoas deverão decorar durante o espetáculo o soneto 30 de Shakespeare.

No decorrer da peça, Tiago Rodrigues comenta sobre a relação com a avó Cândida, com quem compartilhava o amor pela literatura, que agora afetada por um problema de visão precisava escolher um único livro para decorar. Também comenta sobre Nadejda Mandelstam, que para preservar os poemas escritos pelo marido Ossip Mandelstam e censurados pelo regime de Stalin, precisou decorá-los e transmiti-los oralmente às pessoas até que fosse seguro publicá-los novamente.

By heart é um espetáculo bastante celebrado pela crítica especializada e pelo público em geral, tanto pela temática como pelas questões formais, principalmente no campo teatral francês. Em By heart, o modo como os signos teatrais são desenvolvidos possibilita a fluidez dos limites entre o teatro e outras práticas artísticas que almejam uma experiência real como, por exemplo, a arte performática, o que dá origem ao teatro pós-dramático, tal como caracterizado por Hans Thies Lehman: “uma tentativa de conceitualizar a arte no sentido de propor não uma representação, mas uma experiência do real”.

O espectador vai ao teatro para assistir a um espetáculo, ao chegar no local é convidado a subir ao palco e realizar uma performance junto com o ator: decorar, recitar e comer um poema. Nesse sentido, podemos dizer que o público é colocado em uma “situação” teatro, nos termos de Hans-Thies Lehmann, teórico do teatro pós-dramático. Percebemos nesse deslocamento performativo que o público deixa o lugar de testemunha e passa a ocupar o lugar de parceiro participante no teatro que tem o poder de interferir no desfecho da comunicação, o que possibilita um novo estilo de encenação pautado na experiência do real e não apenas na representação.

Ao ser colocado em situação teatral o espectador vivencia um experimento e uma experiência única. Desse modo, o teatro deixa de ser “obra oferecida como produto coisificado para assumir-se como ato e momento de uma comunicação que não só reconheça o caráter momentâneo da “situação” teatro – portanto sua efemeridade tradicionalmente considerada como deficiência em comparação com a obra durável –, mas também o afirme como fator indispensável da prática de uma intensidade comunicativa”, como defende Lehman. Logo, a experiência subjetiva dos próprios participantes que são colocados em “situação” teatral vai além da apreciação, pois o público atua como uma espécie de procedimento que faz o teatro acontecer. Cada apresentação será única levando ao extremo a máxima de que no teatro nenhuma apresentação é igual a outra. 

A autoficção e o teatro

Marília Costa

Créditos da imagem: Conversas com meu pai – Janaina Leite

Desde o meu ingresso no doutorado tenho encaminhado os meus interesses de pesquisa sobre a autoficção para além da literatura, pensando a possibilidade de um espaço autoficcional que contemple outras artes como o cinema e o teatro, por exemplo. Atualmente, tenho me dedicado a pensar como a tensão entre realidade e ficção se apresenta no teatro e quais as consequências formais desse hibridismo para o gênero.

Na minha postagem anterior, “Autoficção e desdramatização”, comentei brevemente sobre a peça Conversas com meu pai de Janaina Leite e o conceito de desdramatização proposto por Jean-Pierre Sarrazac em “O drama não será representado”. Hoje, pretendo expandir o diálogo sobre o tema a partir da análise do procedimento da preterição presente tanto na peça Seis personagens a procura de um autor de Luigi Pirandello, analisada por Sarrazac, como no espetáculo Conversas com meu pai, encenado por Janaina Leite.

Sarrazac sinaliza que o ponto central da peça Seis personagens a procura de um autor não é a representação do teatro dentro do teatro, mas sim o fato de o “autor considerar que essa peça anunciada como ‘a ser feita’ é, na verdade, uma ‘peça a ser desfeita’, um modelo de peça ‘bem feita’ a ser desfeita”. Assim, Sarrazac comenta que o procedimento retórico utilizado por Pirandello é a “preterição”, que consiste em “fingir não querer dizer (ou fazer), o que por outro lado, se diz (ou se faz) com muito mais força”.  Sarrazac  discute a ideia de um drama que será recusado, que não será representado até o final e no qual as histórias das personagens vão sendo contadas fragmentariamente. O que aponta para a ruptura da fábula, que deixa de ser uma mera sequência de ações.

Poderíamos aproveitar a reflexão de Sarrazac e pensar na preterição como um procedimento também presente em Conversas com meu pai. Ao longo do espetáculo a personagem vai se questionando sobre o motivo de estar realizando uma peça teatral a partir da sua própria vida. Desse modo, a personagem não aborda detalhadamente os últimos momentos com o pai, não revela o conteúdo dos bilhetes ou o segredo que disse que guardava desde o início da peça. Na direção contrária, ela vai se recusando a contar a história: “Não sei direito o que foi aquilo que eu fiz ali! Eu meio que me recuso a saber o que eu fiz ali totalmente, eu me recuso a ter aquela peça como a peça final!” Assim, resta ao espectador ir construído suas próprias versões a partir do desenrolar da encenação.

Na autoficção, a imbricação entre vida e ficção implica na construção de um efeito de linguagem que se aproxima da performance: “O autor é considerado como sujeito de uma performance, um sujeito que representa um papel nas suas múltiplas falas de si”, segundo Diana Klinger. Esse mecanismo metateatral de ir construindo o espetáculo enquanto ele é encenado se torna ainda mais radical quando o espetáculo mobiliza elementos ficcionais e biográficos ao mesmo tempo, criando uma cena inacabada, improvisada, que nos dá a ver como um work in process, nos termos de Cohen, um estudioso da performance.

Por fim, em Conversas com meu pai, a linguagem assume um papel importante na elaboração da cena autoficcional. “Quem faz autoficção hoje não narra simplesmente o desenrolar dos fatos, preferindo, antes, deformá-los, reformá-los, através de artifícios, afirma Eurídice Figueiredo. É exatamente o que ocorre no espetáculo de Janaina Leite: “eu fiquei por oito ou dez anos fazendo isso, criando essas versões de formas de falar da minha vida em cena, só que nenhuma versão da história dava conta do que realmente tinha acontecido!”.

Formalmente, cenicamente, os artifícios utilizados em Conversas com meu pai podem levar a caracterizar a peça como uma espécie de teatro-instalação ou teatro documental, já que no palco acompanhamos junto à atuação dispositivos midiáticos, objetos pessoais, imagens, áudios. Um exemplo é a cena em que a atriz principal, interpretada por Janaina Leite, coloca áudios gravados pelas irmãs para o público ouvir a fim de comparar com a versão lembrada por ela dos acontecimentos para realçar as diferentes versões dos “fatos”: “minha memória não presta como documentação de nada, porque o que aparece lá está deformado!!”.

À medida que vou investigando melhor a possibilidade de um teatro autoficcional me dou conta de que o mais instigante não é a investigação das fronteiras entre o biográfico ou o fictício, mas sim a análise dos procedimentos cênicos e textuais que são mobilizados na construção dramática e que exploram a ambiguidade da situação das personas em cena.

Autoficção e desdramatização

Marília Costa

Créditos da imagem: Cena do espetáculo Conversas com o pai (2014). 

Na dramaturgia brasileira contemporânea, nota-se maior interesse e valorização de dados biográficos na elaboração da cena teatral. As experiências pessoais dos atores/diretores servem como mote para os enredos ficcionalizados no palco, que geralmente são compostos por elementos que enfatizam a mistura dos gêneros, dos recursos midiáticos e do metateatro. A partir dessa perspectiva, o espetáculo Conversas com meu pai (2014) é interessante para pensar algumas das estratégias de desdramatização propostas por Jean-Pierre Sarrazac em “O drama não será representado”.

“O drama não será representado” é o primeiro capítulo do livro Poética do drama moderno do dramaturgo e pesquisador francês Jean-Pierre Sarrazac. O ponto de partida da discussão proposta por Sarrazac é a peça “Seis personagens à procura de um autor” do dramaturgo, poeta e romancista italiano Luigi Pirandello. Dentro do contexto sócio-histórico em que a peça é escrita (em 1921, início do século XX), a peça é considerada inovadora por apresentar mecanismos do metateatro, já que a peça comenta o teatro dentro do teatro provocando uma reflexão sobre os limites da representação.

Sarrazac não acredita no fim do drama e rechaça a nomenclatura pós-dramático para caracterizar produções contemporâneas. O teórico reconhece uma alteração na forma dramática que prefere chamar de desdramatização.  Será que poderíamos aproveitar as reflexões de Sarrazac para a análise do espetáculo Conversas com meu pai (2014)? 

O monólogo Conversas com meu pai estreou em 2014 no SESC Copacabana no Rio de Janeiro e foi concebido com base no material (bilhetes, diários, vídeos, fotos, áudios etc.) que a atriz Janaina Leite acumulou nos sete anos em que a comunicação com o pai passou a ser silenciosa. Por conta de um câncer na garganta, o pai perdeu a capacidade de falar e os dois passaram a se comunicar por meio de frases escritas em pequenos pedaços de papéis que foram guardados por Janaina em uma caixa de sapato. Um ano depois do diagnóstico do pai, Janaina, por conta de uma doença, precisou submeter-se a uma operação que teve como consequência a perda auditiva. No início da peça, a personagem revela a existência de um segredo, que no decorrer das cenas o espectador descobre tratar-se de um possível incesto, acontecimento que todo o tempo transita entre a memória e a imaginação de Janaina, dúvida que permanece até o final da peça sem resolução, deixando a plateia pairando sobre a incerteza, o real e o imaginário.

No drama de Pirandello, as personagens à procura de um autor surgem do fundo da plateia em direção ao palco, mas os espaços não chegam a se confundir. Em Conversas com meu pai, o recurso é mais extremo, a peça já começa fora do espaço cênico tradicional, no hall do teatro, fazendo parecer que aquele ambiente e o público já estão engendrados como parte da convenção teatral. A personagem se comunica diretamente com o público, em um gesto de quebra da quarta parede, mas que nesse monólogo vai além, colocando a plateia como interlocutor e parte da cena, sentada em círculo ao redor da atriz. Nesse momento, é explorado um dos temas centrais do espetáculo: o silêncio, que se instaura a partir dos problemas de saúde do pai e da filha. Paradoxalmente, é quando ele perde a fala e ela perde a audição que os dois, enfim, começam a se comunicar com profundidade.

Em cotejo com Seis personagens à procura de autor, a peça Conversas com meu pai também promove rupturas na fábula. A palavra fábula tem origem latina e na concepção tradicional corresponde tanto ao material anterior à composição da peça, o mito (o tema do qual a peça vai tratar), quanto à estrutura narrativa que o autor vai utilizar (a forma como ela é escrita). Brecht defendeu uma ruptura da ideia de que as ações tinham que ter uma ordem cronológica e causal como preconizou Aristóteles. Ou como afirma Sarrazac: “A peça não é mais esse organismo do qual a fábula seria a ‘alma’, e que sempre avançaria conforme um processo linear definido por um começo, um meio e um fim”. 

Em “Seis personagens à procura de um autor” percebe-se a desdramatização através da ruptura da fábula, do texto estruturado em ações divididas em atos e cenas. A nota de Pirandello que abre a peça aponta para isso: “A comédia não tem atos nem cenas”. 

Também em Conversas com meu pai percebe-se a ruptura na fábula, na forma como a peça é escrita e encenada. A estrutura elaborada por Aristóteles – exposição, aumento da tensão, crise, nó, catástrofe e desenlace – é desconsiderada, a história começa a ser encenada em um movimento “de trás para diante”. Além disso, a atriz instrui o público a ir para outro ambiente no qual a outra cena é iniciada.

Essa foi a terceira versão da peça. Essa aqui, que está terminando agora. E então eu levanto e saio daqui. Vocês vão para a outra sala. Vocês também vão para a outra sala comigo, é para isso ser feito, agora, porque existe a outra versão que eu criei. Existe a segunda versão. Eu estou mostrando de trás para diante.

Na outra sala (terceiro espaço cênico, considerando o hall como o primeiro e a sala anterior como o segundo), o cenário é composto por uma piscina de plástico, plantas, um microfone, uma mesa, cadeiras de praia, uma gaiola e uma série de objetos pessoais da atriz, na parede, uma foto 3×4 ampliada. Além disso, imagens documentais aleatórias são transmitidas em um telão durante toda a cena: “o pai – e uma mulher – a filha -, em silêncio, pescam, close nas mãos do homem que escreve pequenos bilhetes, close nos olhos da mulher, o rio, uma casa no meio da floresta, um peixe sendo aberto com as vísceras expostas, o pai e a filha, em silêncio, dividindo uma cerveja, etc, etc”.

A partir dos elementos mencionados, percebe-se no espetáculo Conversas com meu pai um investimento no procedimento autoficcional pela maneira como os dados biográficos são mobilizados na cena teatral, o que implica em uma mudança formal, que segundo Sarrazac, pode-se chamar de desdramatização. A ambiguidade entre vida e ficção faz parecer que o palco é uma reprodução da casa do pai da atriz, o que é acentuado pelos recursos cênicos: uma foto gigante na parede, as imagens projetadas no telão, os objetos pessoais que compõem o cenário. Nessa perspectiva, pode-se identificar nesse drama a “convergência de distintos gêneros, diversificação das formas de autorrepresentação, problematização da dualidade factual-ficcional, inclusão de novos suportes e mídias” como afirmou Stelzer ao buscar uma caracterização para peças teatrais autoficcionais. 

Vida e arte, autonomia e pós-autonomia

Marília Costa

Créditos da imagem: Mona Kuhn. “Kiss, 2004” Disponível no Instagram @monakuhnstudio.

A autoficção desde que foi forjada em 1977 pelo escritor francês Serge Doubrovsky tem sido duramente rejeitada e considerada uma estratégia barata de narcisismo e autopromoção por parte da crítica especializada, dos artistas e da mídia. Talvez por esse motivo muitos autores, ainda que escrevam textos autoficcionais, se esforçam para se afastar do rótulo de escritores de autoficção. Uma outra possibilidade encontrada por esses autores é tentar ocultar o “auto” e revelar apenas a “ficção” das obras para se salvaguardar de problemas jurídicos e éticos, causados pela exposição nas narrativas do círculo social do autor como amigos, familiares e ex-parceiros amorosos. Assim, mesmo explorando largamente a dimensão biográfica do vivido, os autores insistem  que “há um narrador visivelmente criado e diferente do autor”, como advoga Ricardo Lísias, por exemplo.

As acusações de invasão de privacidade e as avaliações sobre a falta de limites éticos dos autores são elementos que aparecem atrelados à autoficção, desde as primeiras narrativas com essa etiqueta produzidas na literatura francesa.

Mas não é apenas na França que o termo é cercado de controvérsia. O norueguês Karl Ove Knausgård ao longo dos seis volumes da saga Minha luta relata episódios que envolvem familiares e, em especial, a vida e a morte do próprio pai. Alguns dos “personagens” conservam os nomes reais e, mesmo que Knausgard tenha consultado e obtido autorização dos envolvidos para a publicação, enfrentou a ameaça de uma demanda judicial por parte de seu tio paterno, tendo de proceder a ajustes na narrativa para driblar as condenações por expor a intimidade alheia.

Na Alemanha, Maxim Biller, prestigiado escritor e jornalista, teve o livro Esra (2003) tirado de circulação pelo Superior Tribunal de Justiça que deu ganho de causa à ex-namorada do autor, que o processou por expor a vida conjugal de ambos quando ainda eram casados.

A autoficção também está presente no universo das séries. Um dos episódios de Easy, intitulado “Vida e Arte”, tematiza a relação entre esses elementos. Um autor de novelas gráficas, que utiliza a própria vida como mote para suas histórias, experimenta do próprio “veneno”. Ao se relacionar amorosamente com uma fotógrafa, é surpreendido com uma foto sua depois do sexo (After Sex Selfie) exposta em uma galeria de arte sem autorização prévia. Ao se deparar com a foto na galeria, o ilustrador se revolta e provoca um escândalo exigindo que a obra seja retirada imediatamente da exposição, situação no mínimo irônica já que ele costuma retratar suas parceiras nas narrativas que cria. Embora haja na série uma crítica veemente a como a exploração da esfera da vida, do privado nas obras pode servir como moeda de troca para o sucesso e o incremento do consumo, além de explorar o puro narcisismo, é interessante pensar que a tensão com a vida pode dizer algo sobre outras possibilidades estéticas e formais do campo da arte no contemporâneo.

Os exemplos comentados acima, trazem à baila as questões em torno dos limites das representações na arte. Há limites éticos para a arte? Um autor pode ser responsabilizado judicialmente pelo conteúdo do livro que escreveu?  Em Easy, no final do episódio, os dois artistas e amantes debatem sobre o gesto artístico de representar pessoas e situações reais nas obras artísticas e chegam à conclusão de que “arte e vida… Não têm diferença”.

Para Josefina Ludmer no ensaio “Literaturas pós-autônomas”, vivemos hoje “o fim da diferenciação literária entre realidade (histórica) e ficção”. Uma consequência disso é que a arte deixa de ser o espaço de mediação dos discursos políticos, históricos, sociológicos e passa a ser engendrada a partir deles, tornando-se parte da sua composição.

Segundo o princípio da autonomia artística que dá legitimidade à arte moderna, a literatura como discurso ficcional não pode ser avaliada segundo os princípios que atuam na “realidade”, pois nesses textos vigora a separação entre autor e narrador e por isso o signatário da obra não pode assumir a responsabilidade civil sobre os personagens e suas ações na trama.  É com esse argumento que muitos autores respondem aos processos judiciais. Mas e se vivemos em um momento pós-autônomo da arte? Poderíamos considerar a ambiguidade intrínseca à autoficção, que faz com que a figura do autor seja, e ao mesmo tempo, não seja diretamente associada à figura do narrador, um bom exemplo de como a autonomia moderna está sendo questionada? E se aceitamos a resposta afirmativa a essas perguntas, será possível ao autor que investe na autoficção desviar-se da responsabilidade daquilo que escreve?

Autoficção especular: o autor como personagem

Marília Costa

Créditos da imagem: Las Meninas. Diego Velásquez. 1656.

Nesta semana participei do XIII Seminário de Pesquisa Estudantil em Letras, no qual falei sobre a autoficção especular, um tipo de autoficção criado por Vincent Colonna e discutido em sua tese de doutorado, orientada por Gérard Genette. Em uma postagem anterior, Caroline Conceição comentou sobre as tipologias elaboradas por Colonna, apresentando a autoficção fantástica, biográfica e intrusiva. Hoje, gostaria de comentar a autoficção especular.

A autoficção especular é caracterizada por Colonna como a imagem do autor ou do livro dentro do próprio livro, remetendo à metáfora do espelho. O autor não vai assumir necessariamente o papel de protagonista da narrativa, pode aparecer apenas como uma sombra, um contorno, mas precisa aparecer de alguma forma. Assim, segundo Colonna, “A ficção literária se mostra então não como espaço de ilusão, mas como laboratório onde os mecanismos são desmontados e apresentados aos leitores”.

Para Colonna, a imagem do espelho para caracterizar este tipo de autoficção funciona como metáfora da escrita em ação, oferecendo ao leitor seu modo de constituição técnica e subjetiva. Se traçarmos um paralelo com o mundo das artes visuais, mais especificamente a pintura, temos a mesma postura refletora que funciona a partir do procedimento do “quadro dentro do quadro”, em que o artista representa a si mesmo em algum lugar na tela, na maioria das vezes segurando um pincel como se estivesse pintando o quadro que estamos admirando. Um exemplo repetidamente comentado pela crítica especializada dessa prática pictórica é a obra “Las meninas” (1656) do espanhol Diego Velásquez. No quadro, sob o pretexto de pintar a nobreza espanhola, Velásquez não só se autorrepresenta, como também cria uma operação de reversibilidade ao inserir na tela o reflexo do Rei Filipe e da Rainha Mariana no espelho posicionado no fundo do quadro. Entendemos, então, que os modelos estão fora da representação, mas aparecem especularmente dentro da tela.

Também poderíamos pensar esse movimento em relação à literatura, considerando a categoria de autoficção especular, tal como Colonna a descreve? Vamos pensar no romance Machado de Silviano Santiago. O mote do romance é uma espécie de leitura comentada, refletida, do quinto volume da correspondência de Machado de Assis, que reúne as cartas trocadas por Machado e seus interlocutores durante os quatro últimos anos de sua vida. O narrador personagem Silviano Santiago não apenas comenta episódios famosos envolvendo a vida de Machado, mas também tece comentários críticos sobre seus livros, como Esaú e Jacó e Memorial de Aires. O livro traz fotografias, recortes de jornais, charges, quadros e tem como cenário a cidade do Rio de Janeiro, envolta nas questões políticas e sociais do período.

À medida que o narrador personagem se apropria da correspondência de Machado de Assis, reelaborando-a a partir da sua imaginação, é que ocorre o que o narrador denomina de transfiguração e nós podemos pensar em uma operação especular, na qual Silviano, o autor, que também é personagem e narrador,  apodera-se da vida do Bruxo do Cosme Velho para reconstruí-la, misturando-a com a sua própria vida:

No troca-troca, consolo-me com o pouco que toca a mim, que já é excessivo. Sirvo de contrapeso ao filé-mignon Machado de Assis. As cartas agem como age o açougueiro quando economiza na balança a carne cara de primeira. Substitui um bom pedaço dela por carne de segunda, cheia de nervos. Lucra ele com o contrapeso; lucro eu sendo o contrapeso de Machado de Assis; lucrará algo o freguês?

O protagonista do romance é Machado de Assis, mas Silviano Santiago também aparece na narrativa exibindo-se em “troca-troca”, pois ora é Machado quem ocupa o primeiro plano, ora é o próprio narrador, homônimo do autor, que se projeta na imagem, na vida do grande escritor. Ou como afirma o próprio narrador: na condição de “açougueiro” das Letras, promete uma coisa e entrega outra, está vendendo carne de segunda (suas próprias reflexões que se transformam no “romance” que lemos) como carne de primeira (a vida que transborda das cartas de Machado de Assis).

E os leitores irão lucrar algo com esse projeto literário? O narrador-personagem entrega aí o procedimento que foi utilizado para conceber essa criação artística que é o romance. Silviano Santiago, o autor, que é um elemento do lado de fora da ficção (é o signatário do livro) está espelhado do lado de dentro, provocando um fenômeno de duplicação, um reflexo do livro sobre ele mesmo e a demonstração do ato criativo que o fez nascer.

A autoficção e os híbridos

Marília Costa

Créditos da imagem: Slater Badley, coda II, 2004-2005

Em minhas pesquisas sobre a autoficção tenho percebido a dificuldade que há em tentar conceitualizar um termo sobre o qual há uma grande disputa teórica. A falta de consenso teórico em torno da autoficção pode ser justificada pela complexidade do termo, que é híbrido por natureza, e pode atravessar várias categorias discursivas: o literário, o textual, o teatral, o cinematográfico entre outros. Por esse motivo, tenho pensado a autoficção como operador teórico capaz de dar respostas a problemas que a teoria e as obras nos apresentam. Contudo, há um elo entre os diferentes tipos e práticas autoficcionais: o embaralhamento das fronteiras entre o real e o ficcional. Esse ponto em comum aos inúmeros exercícios autoficcionais modifica a concepção de pacto autobiográfico postulada por Philippe Lejeune, abrindo espaço para um novo pacto, o pacto ambíguo, termo criado por Manuel Alberca, que permite que um único texto seja lido como ficcional e mesmo assim mantenha o caráter referencial do que conta.

A exploração das fronteiras entre o autobiográfico e o ficcional funciona como uma potente engrenagem para autores da literatura contemporânea, tanto de língua estrangeira como de língua portuguesa. Mas, muitos críticos e teóricos não veem com bons olhos esse hibridismo e costumam afirmar que o leitor fica em uma posição difícil diante da autoficção. Nesse sentido, Philippe Lejeune afirma que “o leitor diante da ideia de ler um texto simultaneamente como autobiografia e ficção, não consegue medir exatamente o que isso significa; e acaba o lendo como uma autobiografia clássica”.

Arnaud Schmitt, outro teórico francês, entende que há uma resistência do cérebro humano para assimilar um texto como simultaneamente ficcional e autobiográfico. Para Schmitt, o uso da palavra autonarração como substituto da autoficção amenizaria essa dificuldade, sendo mais adequado para conceituar os escritos autobiográficos em que o autor faz uso de técnicas próprias do romance. Percebemos, então, nos argumentos de Lejeune e Schmitt, que a rejeição à autoficção é motivada pela dificuldade de lidar com o híbrido autobiografia-ficção.

Em Jamais fomos modernos, Bruno Latour defende que o que chamamos de modernidade é marcado pela tentativa de purificação dos híbridos. Para o filósofo, o esforço por recalcar o hibridismo durante a modernidade gera sua proliferação: “quanto mais nos proibimos de pensar os híbridos, mais seu cruzamento se torna possível”. Assim, Latour aponta que os híbridos nunca deixaram de ser produzidos, apenas tentamos sufocar a existência deles em nome dos pressupostos da modernidade. Por isso, defende Latour, se olharmos para trás, perceberemos que na prática “jamais fomos modernos”, pois sempre estivemos nos equilibrando entre os processos de purificação e hibridização simultaneamente.

Em sua investigação, Bruno Latour  estava pensando a separação entre natureza e cultura, sujeito e objeto, humano e não humano que dominou os discursos vigentes na modernidade, mas podemos deslocar os pressupostos do filósofo para pensar também a autoficção. Podemos especular que Arnaud Schmitt e Philippe Lejeune rejeitam a mistura entre vida e ficção porque defendem a lógica da purificação dos gêneros, própria da modernidade, como sugeriu Latour.