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O que é uma “literatura ocupada”?

Luciene Azevedo

Créditos da imagem: Hieronymus Bosch- The Last Judgment (Tríptico), detalhe.

A palavra ocupação vem se tornando cada vez mais presente em nosso vocabulário, sendo compreendida como um gesto político de resistência que ganha protagonismo a partir de 2011 como o movimento Occupy Wall Street contra a desigualdade econômica e, no Brasil, a partir de 2015, como  o movimento de ocupação das escolas por estudantes secundaristas de todo o Brasil. Seria possível, então, tomar a noção de ocupação para pensá-la como um gesto válido também para a literatura? 

Uma tentativa de resposta pode ser ouvida em A Ocupação de Julián Fuks. O mote principal da narrativa parece tomar como premissa básica a inquietação já presente em Barthes sobre o que significa formar uma comunidade quando a diferença não pode ser apagada, pois o narrador-autor, Sebastián-Julián, está interessado em enfrentar o desafio de encontrar uma maneira de viver e escrever que, sem mitigar a distância dos outros, quer construir com eles uma sociabilidade sem alienação.

No livro, acompanhamos simultaneamente três veios narrativos que ocupam a voz do narrador: o desejo inesperado de a mulher ter um filho e a dor vivida por um aborto espontâneo, as visitas ao pai do narrador em estado grave no hospital e as visitas à ocupação de um edifício abandonado no centro de São Paulo.

É possível ler nas muitas resenhas elogiosas à obra que Fuks foi convidado a participar, em 2016, de uma residência artística no antigo Hotel Cambridge, ocupado pelos integrantes do Movimento dos sem teto do Centro de São Paulo. A narrativa, então, entrelaça o pessoal e o político explorando a autoficção e parte dessa experiência pessoal para ouvir os moradores do prédio ocupado. Assim, vamos lendo o sofrimento de Najati, sírio refugiado no Brasil, que busca abrigo no movimento dos sem teto, de Demétrio Paiva, que chegando do Peru é humilhado pela polícia, de Gínia, cuja vida foi transformada em escombro junto ao terremoto que arrasou o país, de Rosa que foge do Tocantins para se refugiar dos vermes e ratos que invadem sua casa. Em meio a essas vozes, ouvimos o narrador: “Só o que faço é deixar que me ocupem, que ocupem minha escrita: uma literatura ocupada é o que posso fazer nesse momento”.

A ocupação da literatura começa, assim, pela escuta de um narrador que empresta o ouvido e a escrita para os ocupantes do Hotel Cambridge. A escuta é, então, o primeiro gesto em que é possível pensar uma “partilha das distâncias”, como diria Barthes.

Esse gesto, que é político, leva o narrador a refletir sobre a condição da literatura. Ao ouvir Najati, por exemplo, e depois de ler as histórias que o refugiado sírio escreveu sobre a vida que levava e a dor de ter de abandonar seu país e sua família, o narrador parece cansado da “literatura”: “A literatura não me interessa em nada”, lemos. Sebastián-Julián conta que ao ler as narrativas de Najati sentiu um efeito que a literatura há muito tempo não produz nele: “franqueza e simplicidade”. É um “improvável ideal de escrita”, reconhece o narrador-autor, mas é também algo que desperta “um vontade de me expandir”.

Poderíamos pensar então que uma literatura ocupada é uma literatura expandida ou fora de si, que projeta-se para seu entorno, aceita a tensão com a política de uma forma que as fronteiras entre o dentro e o fora estão embaralhadas, como afirma Josefina Ludmer em seu já clássico texto sobre as literatura pós-autônomas? Vamos ouvir o autor em uma entrevista: “Hoje é o momento de uma literatura ocupada […] de se deixar ocupar por esses discursos, participar desses discursos de emancipação e combate às violências que estamos vivendo”.

A narrativa é uma reflexão que se pergunta, mais uma vez, pelo lugar da política na literatura. Negando-se a definir a ocupação da literatura como uma prática panfletária, Fuks aposta em fazer  deslizar a literatura para fora de si, olhar para seu entorno, como um discurso capaz de concretizar uma forma de comunidade na diferença. 

Dá certo? Ou será que a narrativa falha?  Se falha, sua falha é também uma força que reconhece a produção literária como responsável por fabricar um presente em que o trânsito entre a realidade e a ficção é cada vez mais marcado pelas disputas políticas próprias de nosso tempo, próprias de nossa esfera pública, mas também próprias das representações literárias.