Paris não tem fim e a situação da autoria na contemporaneidade

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Por Davi Lara

Um homem de meia idade faz uma viagem para Paris. Depois de um mês de viagem, terá de voltar a Barcelona para ministrar uma conferência de três dias sobre o tema da ironia. Enquanto sua mulher faz compras e passeia pela cidade, o homem (que, como logo sabemos, é um escritor experiente) fica no quarto do hotel tomando notas para sua conferência. Como tema, escolhe fazer uma revisão irônica do período de sua aprendizagem literária, ocorrida nos idos dos anos 60, quando ele, então um jovem confuso e impulsivo, muda-se para Paris com o intuito de se tornar escritor. Lá, ao longo de dois anos, escreve seu primeiro romance – “A assassina ilustrada”. Esse é, em linhas gerais, o enredo de Paris não tem fim (2003), romance do escritor catalão Enrique Vila-Matas.

Enrique Vila-Matas é um dos principais nomes da literatura espanhola contemporânea. Sua obra foi reconhecida com diversos prêmios dentro e fora da comunidade de língua espanhola, e já foi traduzida para diversos idiomas. Em Paris não tem fim (o seu décimo sexto livro de ficção), o leitor familiarizado com a sua obra ficcional logo vai reconhecer algumas das marcas autorais que lhe valeram o reconhecimento crítico, como o gosto pelos gêneros híbridos ou a sua obsessão pelos temas literários, obsessão que lhe rendeu o epiteto de “escritor de escritores”. As referências ao universo literário têm início logo na página de abertura de Paris não tem fim, em que o narrador conta que viajou a Key West, Estados Unidos, para participar de um famoso concurso de sósias de Hemingway, no qual obteve o último lugar. O escritor norte-americano Ernest Hemingway é uma das figuras centrais no romance. Foi inspirado em Paris é uma festa¹ que o protagonista decidiu, quando jovem, mudar-se para a capital francesa e tentar tornar-se um escritor. O próprio nome do livro de Vila-Matas é uma citação do título de um dos capítulos de Paris é uma festa. Uma análise comparativa das duas obras, mesmo que sumária, poderia ser interessante.

Diferente das memórias de Hemingway, que (a despeito do nível de fabulação que existe em toda narrativa do eu) possui um pacto de leitura bem estabelecido, o livro de Vila-Matas assume uma postura muito mais escorregadia, que se esquiva dos rótulos e dos enquadramentos. Isso pode ser visto, por exemplo, na sua estrutura narrativa, dividida em pequenas partes (as notas para a conferência) que podem ser lidas de maneira mais ou menos autônoma. Esse recurso permite que o autor passeie entre diversos tempos narrativos e transite entre diversos registros literários com grande desenvoltura. Assim, em algumas passagens, o leitor mais distraído pode ter a impressão de estar lendo um livro de ensaios para, logo em seguida, passear pelas ruas de Paris dos anos 60 e ver, pelos olhos do aspirante a escritor, as celebridades intelectuais que se encontravam na cidade à época, como Marguerite Duras, Roland Barthes, Georges Perec, dentre outros.

Ainda sobre o caráter ambíguo da obra, outro ponto digno de nota é a questão do pacto de leitura: à medida que o livro vai avançando, o leitor começa a perceber que existe uma série de coincidências biográficas entre o protagonista (cujo nome não sabemos) e Enrique Vila-Matas, incluindo o título e o enredo do primeiro romance que escreveu: A assassina ilustrada. Com isso, o leitor fica sem saber se deve ler o livro como uma autobiografia ou um romance ou, ainda, como um gênero intermediário. Esse “gênero” intermediário é justamente a autoficção, cuja principal característica, segundo alguns teóricos, é a ambiguidade em relação ao horizonte de leitura, que fica num ponto incerto ente o pacto ficcional e o referencial.

No prólogo do romance (que infelizmente não foi incluído na edição brasileira), o próprio Vila-Matas confessa que, enquanto escrevia o livro, transitava entre o real e o inventado com a mesma naturalidade com que, no seu dia-a-dia em Barcelona, passa do castelhano ao catalão. No fim das contas, o real e o inventado pareciam pertencer ao mesmo idioma, o idioma da naturalidade. O resultado disso é a criação de uma persona que pode não ser real (no sentido estrito da palavra), mas que não há por que não ser considerada verdadeira, já que não é possível determinar o que há de verídico e de ficção nem mesmo na realidade.

Um dos pontos mais importantes na criação dessa persona literária é a ironia. A ironia é o filtro por meio do qual o narrador revisita sua juventude. Assim, todos os eventos relacionados ao jovem inseguro e desesperado que o narrador foi um dia são por ele invocados com um distanciamento irônico bastante incômodo. O incômodo não é tanto quando pensamos o livro de Vila-Matas em comparação com a tradição do romance moderno, onde há exemplos de romances em primeira pessoa nos quais o narrador assume uma postura irônica em relação a si próprio (Memórias Póstumas de Brás Cubas é um bom exemplo). O incômodo nasce quando o colocamos na estante das autobiografias (e as narrativas do eu em geral), em que é muito raro esse tipo extremado de auto-ironização, haja vista que as narrativas do eu se baseiam, grosso modo, na identidade (senão na cumplicidade) entre autor, narrador e personagem.

Em Paris não tem fim, o princípio da identidade é abalado não só pela ambiguidade do pacto de leitura, mas também pelo recurso da ironia. Isso coloca em questão não apenas a noção tradicional de sujeito, como a própria concepção de autor e de autoria. Pois no centro da caracterização do protagonista do romance está o fato de ele ser escritor. Sem querer forçar a mão, pode-se afirmar, inclusive, que é a sua persona de escritor de ficção que está sendo problematizada no livro. Ao longo de toda obra, o narrador discute diversas concepções de autoria, e boa parte da obra (bem como sua concepção geral) pode ser lida como uma tentativa de encontrar respostas a algumas perguntas fundamentais: Como um escritor deve se comportar? O que se deve almejar quando se escreve literatura? O que significa ser um escritor de literatura? São, pois, essas questões, somada às outras observações feitas nessa resenha, que nos levam a crer que o estudo de Paris não tem fim pode contribuir para a tarefa de entender melhor a situação da autoria na literatura contemporânea.


¹Paris é uma festa é um livro de memórias de Hemingway sobre o período em que viveu em Paris, nos anos 20.

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