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O que “Cat person” pode nos dizer sobre a literatura?

Débora Molina

Créditos da imagem: The lines of my hand. Robert Frank, 1989

“Ela é tão perfeita, ela o imaginou pensando. Ela é tão perfeita, o corpo dela é perfeito, tudo nela é perfeito, ela tem só vinte anos, a pele dela é impecável, eu quero transar com ela, quero transar com ela mais do que jamais quis com qualquer outra pessoa, quero tanto que acho eu vou morrer” (ROUPENIAN, Kristen. Cat Person)

Em dezembro 2017, um conto publicado na revista americana The New Yorker viralizou nas redes sociais. A tradicional coluna semanal de ficção da revista publicou “Cat Person” escrito pela até então desconhecida autora Kristen Roupenian que, em uma semana, superou o número de acessos a todos os outros contos publicados pela revista naquele ano. A repercussão garantiu a autora um contrato de um milhão de dólares para a publicação de dois livros. No Brasil, os direitos foram comprados pela Companhia das Letras.

“Cat person” é um nome dado às pessoas que são aficionadas por gatos (quando o caso é com cães nomeia-se de dog person) e trata de uma história narrada em terceira pessoa sobre a malsucedida relação amorosa entre a jovem Margot de 20 anos e Robert, 13 anos mais velho. A trama se concentra em descrever os pensamentos da Margot em torno de seus anseios e expectativas acerca do relacionamento que vai se construindo através de trocas de mensagens por aplicativo.

O curioso é que a narração é tão colada à protagonista (mesmo sendo escrito em terceira pessoa e deixando falar também os pensamentos de Robert) que o relato parece ser contado pela voz de Margot; talvez seja por esse motivo que “Cat Person” tenha feito tanto sucesso. A tomada de posição do narrador nos dá a sensação de que estamos lendo a própria voz de Margot (muitos leitores nas redes sociais associaram essa voz narrativa à própria Roupenian, identificação que a autora teve de, constrangedoramente, desfazer).

É justamente na parcialidade do olhar do narrador que, ao meu ver, se encontra o ponto fundamental que pode explicar o instantâneo sucesso da curta história: Margot parece representar um grupo social inteiro, mulheres que já passaram por episódios parecidos. “Cat Person” é um conto que poderia ser também uma hashtag das redes sociais: #somostodasmargot.

Nesse sentido, todo o episódio pode nos levar a pensar na forma como as ficções vêm se amalgamando a experiências vividas cotidianamente, o que a crítica argentina Josefina Ludmer chama de “imaginação pública”, incentivando-nos a pensar em uma relação mais intrincada entre ficção e realidade. A partir de “Cat Person” e da repercussão da história, do modo como provocou uma discussão pública sobre as relações de poder que envolvem os afetos entre homens e mulheres, que por sua vez serviu de mote à narrativa de Roupenian, viveríamos um modo de imbricação entre a literatura e as realidades nas quais vivemos que implicaria também repensar a própria ideia de ficção.

Nesse sentido, me parece que o conto de Roupenian é uma boa oportunidade para colocar à prova o polêmico conceito de Ludmer. “Cat person” pode ser pensado como um exemplo do que a crítica caracteriza como “Literatura pós-autônoma”?

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Pensando sobre a dissertação

Por Débora Molina

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Créditos da Imagem: Débora Molina

Em setembro deste ano, defendi minha dissertação de mestrado intitulada Autoria no século XXI: escrita não criativa e gênio não original. Como o próprio título indica, minha pesquisa se concentrou em investigar as noções de escrita que não se encerram mais na ideia de originalidade e inventividade – pelo menos não nos termos a que estamos acostumados-, mas em uma escrita que agora parte da apropriação de textos alheios, compondo assim um outro texto que reinventa sua fonte. Nesta perspectiva, então, me dispus a refletir sobre como esse modo de produzir literatura cria condições de se pensar em um outro paradigma de autor, que atua, então, como um gênio não original.

Alguns leitores mais antigos deste blog, devem ter se deparado com as apresentações ainda tímidas acerca das concepções acima apresentadas no texto “Ladrão que rouba ladrão” ,  que apresenta a ideia de escrita não criativa e de gênio não original, e também com as postagens sobre alguns objetos de escrita literária brasileira não criativa que discuti em “Eu Googlo, tú Googlas, nós Googlamos: sobre a poesia de Angélica Freitas”  , “Páginário: escrita não-criativa em exposição” e “Delírio de Damasco e a arqueologia do presente de Verônica Stigger”  .

Ao longo dos dois anos e seis meses de pesquisa, meu trabalho pretendeu reconhecer um processo criativo no procedimento da apropriação, da técnica do recorte e cole e defender a hipótese de que há uma ambiguidade da condição autoral no presente. Então, que ambiguidade seria essa?

Se, por um lado, pode-se afirmar o esvaziamento do papel do autor nas produções da escrita não criativa, já que esses autores estariam “criando” “textos de segunda mão”, por outro, é possível reconhecer que o novo papel assumido pela autoria nessas produções também pode ser responsável pela construção de um nome de autor para o campo literário.

No primeiro capítulo, então, tratei da concepção de escrita não criativa, como ela é discutida por Kenneth Goldsmith, relacionando a teoria à análise de algumas obras de escrita não-criativa brasileira; no segundo capítulo, tematizei a ideia de esvaziamento do autor a partir das perspectivas de Barthes e Foucault para assim situar melhor a ideia de gênio não original, desenvolvida por Marjorie Perloff. Apresentados dessa maneira, tudo parece fácil, mas há as agruras e impasses da escrita: aqueles conceitos que você acha que domina, mas encontra dificuldade de problematizar, por exemplo. Assim, depois de muitas correções e sugestões da orientadora, lá estava eu com os dois capítulos na mão. Missão cumprida!

– Missão cumprida? Mas e a problematização da ambiguidade em relação à condição do autor, hoje? Eu ainda não tinha o terceiro capítulo pronto…

Mais uma vez, ideias na cabeça: a concepção de gênio não original reprograma a ideia de autor que já não está mais relacionada ao conceito de autoria que se performa no papel, – peguei isso emprestado de Ana Claudia Viegas no texto “O retorno do autor”, conceito que é apresentado pela crítica e que caberia como uma luva na ideia que queria apresentar. Eureka! Mais uma vez. Missão cumprida!

– Espera aí, missão cumprida? E o seu objeto de análise? Cadê o autor que você se propôs a estudar?

Foi então que tomei a trajetória de autor de Leonardo Villa-Forte para análise no intuito de entendê-lo dentro do que se configura como autor midiático: aquele que está presente em quase todas as esferas, distanciando-se assim da ideia barthesiana de autor como um ser de papel.

Queria defender, então, que a ampla participação do autor hoje na mídia aponta para o fato de que a performance autoral já não está mais relacionada apenas à performance do autor no texto, mas também em sua atuação em outras esferas nas quais o texto literário circula. A ambiguidade que gostaria de colocar à prova dizia respeito, então, ao fato de que na “criação” de textos não criativos, a ideia de autoria parece esvaziada, pois importa mais o procedimento, o recorte e cole, a apropriação de textos alheios, que o autor. Mas não deixa de ser curioso, ambíguo, o fato de que é esse mesmo procedimento que inscreve o autor, por exemplo, Leonardo Vila-Forte, que se tornou meu “estudo de caso”, no campo literário.

Os tempos verbais no pretérito imperfeito no parágrafo acima dizem bem de minha dificuldade de explanar, problematizar, exemplificar a ambiguidade que gostaria de provar.

Ainda que haja falhas, concluí minha dissertação com a sensação de dever cumprido. Além disso, uma das intenções de trazê-los até o fim dessas linhas é poder dizer que nenhuma escrita está encerrada, parece que meu trabalho não acabou e, justamente após a banca dar todas as contribuições, vi que há muito a percorrer. O diálogo é importante, as ideias sempre estão em movimento, principalmente quando lidamos com os desafios do nosso contemporâneo.

O princípio de ver histórias em todo Lugar – Leonardo Villa-Forte

Por Débora Molina

O princípio de ver histórias em todo Lugar

Leonardo Villa-Forte

Ed. Oito e meio

2015

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Primeiro romance do carioca Leonardo Villa-Forte (o autor já tinha lançado em 2014 um livro de contos, O explicador), O princípio de ver histórias em todo lugar, lançado em 2015 pela editora Oito e Meio, traz uma instigante e divertida história acerca do processo de escrita no contexto contemporâneo. Conhecido por suas investidas na escrita não-criativa, Villa-Forte, já apresentado aqui no blog, escreve uma narrativa que propõe um desvio, sem se esquivar desse projeto, apresentando uma reflexão sobre a escrita literária e os impasses vividos por quem quer tornar-se autor hoje.

O primeiro romance do autor é narrado em primeira pessoa e dividido em 34 capítulos, quase todos intitulados pelos seus respectivos números. O livro conta a história de um jovem publicitário que após a viagem a trabalho de sua esposa Cecília, sente-se solitário e entediado. Mas é justamente a ausência de sua cônjuge que o move a especular sobre o verdadeiro objetivo desta viagem: teria Cecília ido à Alemanha atrás de seu antigo namorado?

Em meio a especulação, inúmeras histórias sobre Cecília surgem e o protagonista decide remediar a tensão e a solidão, oferecendo durante os meses da ausência de Cecília, uma oficina de escrita criativa em sua própria casa. O mais irônico nessa proposta é a motivação do narrador que não é um autor profissional, mas quer oferecer uma oficina de criação literária por acreditar que é um bom escritor. A ideia surge devido à lembrança de quando mais jovem ter frequentado uma oficina de escrita criativa de um famoso escritor. Embora não tenha se dedicado à carreira autoral e de não ter um livro publicado, acredita em seu potencial pelo fato de alguns colegas de sala terem dispensado elogios a seu texto. De modo bastante irônico, Villa-Forte parece dizer algo: o que define um autor ou um texto literário?

Naquela oficina que fiz com ele, eu era o mais jovem do grupo. Quando os outros alunos falavam de mim, usavam expressões como “promissor” e jovem talento. […] Quando lia meus contos, achava-os parecido demais com os de outros autores, como se meus contos tivessem que ser ainda melhores para que pudesse reconhecê-los como meus […] Esse grau de exigência às vezes até me levava a não assinar os contos, como se faltasse algo para que chegasse à altura do meu carimbo, à altura da minha marca. (VILLA-FORTE, p 37, 2015)

Começa então um jogo autoral, que torna mais instigante o livro, pois todos os contos criados pelos alunos personagens são inseridos integralmente na narrativa, o que demonstra grande habilidade do autor em criar perfis de escrita diferentes na mesma narrativa, já que cada personagem tem sua própria voz autoral.  É divertido ler a reação do narrador que após a leitura dos contos indaga sobre o caráter de cada personagem. Lendo o texto produzido por Thomas, personagem que pode ser descrito como um suicida em potencial, o narrador se dá conta de como os alunos projetam na escrita uma espécie de fuga da vida:

Os costumes e os valores que recebera de herança não serviam mais às suas motivações. Num de seus contos ficava clara a opção radical pela fuga, precisamente o conto do suicídio, o pulo através da janela, eu devia ser a janela da casa de seus pais na Bélgica. (VILLA-FORTE, p 175, 2015)

Mas o que chama a atenção no livro é a trama que atravessa a narrativa: as maneiras sobre como elaborar um bom conto e quais as técnicas necessárias para atingir algo digno de ser tratado como literário. O narrador protagonista, que já podemos perceber é dono de um enorme ego e não é nem um pouco confiável, demonstra certa cretinice ao mostrar que mesmo não se considerando autor, vê a si mesmo como um ótimo professor, já que estudou os recursos através de uma bibliografia que roubou da oficina que cursou.

Com um final inusitado, Villa-Forte faz uma crítica mordaz ao modo como o processo de criação literária e o próprio conceito de autoria são tratados hoje por meio de seu narrador personagem. O princípio de ver histórias em todo Lugar questiona com ironia a noção de originalidade e de criatividade ainda tão presentes quando se trata de avaliar a qualidade dos textos literários contemporâneos.

Delírio de Damasco e a arqueologia do presente de Verônica Stigger

Por Débora Molina

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Verônica Stigger, que além de escritora também é professora e crítica de arte, investiu em um projeto que ela mesma denomina arqueologia do presente e que consiste na apropriação de fragmentos de conversas ouvidas de estranhos na rua, frases postadas no Facebook e no Twitter, enfim frases que a autora roubava e anotava em um caderninho de apropriações.

No ano de 2010, Stigger, foi convidada a expor no SESC de São Paulo. A autora aproveitou o fato de que na época o prédio estava em reforma e expos suas apropriações nos tapumes da construção que cercavam o prédio, devolvendo às ruas o que havia roubado delas.

A exposição ampliou-se e deu origem ao livro Delírio de Damasco tem um tratamento estético diferente. Costurado à mão, o pequeno livro (cabe na palma de uma mão) é vendido embalado por um saco de papel – como um pedaço de torta – contém em cada página apenas uma frase, que desprendida do contexto leva o leitor a imaginar a trama por trás de cada uma delas.

 

Minha mãe rezava

Para que eu não

Namorasse uma negra (p34)

 

Minha maior alegria

É ir ao Supermercado

nas férias (p 47)

 

Um cara bacana.

Mas ele não é normal.

Se fosse, não dava o cu. (p 59)

A ‘literatura’ de Stigger parece apontar para um texto com o mínimo trabalho com a linguagem, já que a operação fundamental realizada pela autora parece ser a recontextualização das falas apropriadas, ouvidas ‘por aí’, por isso o trabalho autoral parece mínimo ou nulo.

Neste processo o que importa mais é a criação a partir da curadoria e seleção e montagem destes materiais do que a invenção dada por uma gênio criador. O que parece bastante curioso é que a atuação do autor de escrita não-criativa coloca em xeque a condição da autoria entendida como gênio ao brincar com as palavras dos outros e criar uma nova forma de produzir literatura.

Paginário: Escrita não-criativa em exposição

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Por Débora Molina

Em um outro post meu, Ladrão que rouba ladrão, inicio com uma imagem bastante convencional à escrita literária: a figura do autor, solitário, em frente ao papel em branco, à espera de inspiração. Esse figuração da autoria,  ainda  muito presente no imaginário contemporâneo, pode ser pensada de forma diferente se consideramos o autor como uma espécie de  gênio não-original, como afirma Marjorie Perloff. O escritor não original produz novas narrativas a partir da seleção, cópia e colagem de textos literários já existentes, técnica que já foi nomeada pelo também poeta Kenneth Goldsmith de “escrita não-criativa” ou escrita  remix, baseada na operação de  cut up.

 É desta forma que o autor carioca Leonardo Villa-Forte e criador do blog MixLit – O Dj da literatura escreve sua literatura e pode ser pensado como um gênio não original. O blog é um projeto inspirado na técnica de sampler, recurso de edição e seleção de músicas utilizado por Djs, que resulta na composição de uma nova música a partir de fragmentos de outras. Segundo Villa-Forte, a ideia surgiu no momento em que lia cerca de 10 livros em conjunto, quando percebeu que alguns fragmentos de um livro, poderiam ter ligação com fragmentos de outros. Foi então, que teve a ideia de construir um blog na internet, para publicar seus textos: a partir da apropriação de fragmentos de textos literários alheios.

 MixLit 62: Ainda hoje
Com um semblante consternado1, ela se inclinou, deu-me um beijo e murmurou:
“Você está com aquele seu olhar de órfão novamente.”2
“Não”3, eu disse, também pesando cuidadosamente.4
______________________________________________________________________
1 Josué MONTELLO. O camarote vazio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p.34.
2 Alain DE BOTTON. Ensaios de amor. Tradução de Fábio Fernandes. Rio de Janeiro/Rio Grande do Sul: Rocco/L&PM, 2001, p.107.
3 Machado de ASSIS. Quincas Borba. Rio de Janeiro: Garnier, 1998, p.207.
4 Péter ESTERHÁZY. Os verbos auxiliares do coração. Tradução de Paulo Schiller. São Paulo: Cosac Naify, 2011, p.19.

Além do blog Mixlit, em 2014, Leonardo Villa-Forte,  iniciou um projeto coletivo junto com Rodrigo Lopes chamado Paginário, uma espécie de mural construído com colagens de páginas de diferentes livros de diversificados autores, as páginas são enviadas por variadas pessoas e o remix literário é feito por meio do destaque de trechos na página em exposição.

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No projeto Paginário, o texto literário é reinventado, recriado e ganha um outro formato: o mural, o que pode ser pensado como uma desterritorialização da forma como lemos e entendemos literatura. O leitor é também um pouco espectador, pois posta-se diante de um painel com diferentes recortes de textos em um espaço público que lhe oferece uma nova aventura muito diferente de outra figuração moderna da leitura associada à solidão e ao silêncio.

Em seu livro Pós produção, Nicolás Bourriaud entende que a produção artística contemporânea passa por um processo que o crítico nomeia de pós-produção. Bourriaud conclui que hoje os materiais artísticos não são mais elaborados através de uma matéria bruta, mas por meio dos materiais já existentes, já confeccionados. E, deste modo a palavra pós não atribui um teor negativo ao recurso, mas apenas uma aplicação de uma reelaboração, utilização, curadoria da matéria artística inscrita na história. Portanto, para o crítico, o produto artístico contemporâneo não se coloca como acabado “mas como um local de manobras, um portal, um gerador de atividades. Bricolam-se os produtos, navega-se em redes de signos, insere-se suas formas em linhas existentes”, afirma o crítico.

O procedimento de escrita não-criativa procura utilizar os produtos que já estão aí, em circulação. Neste processo o que importa mais é a criação a partir da curadoria e seleção e montagem destes materiais do que a invenção dada por uma gênio criador. O que parece bastante curioso é que a atuação do autor de escrita não-criativa coloca em xeque a condição da autoria entendida como gênio ao brincar com as palavras dos outros e criar uma nova forma de produzir Literatura.

Ladrão que rouba ladrão…

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Por Débora Molina

Quando se fala em autoria, dentre as tantas imagens capazes de representar o trabalho do autor, é possível imaginar um sujeito solitário em frente ao computador, ou máquina de escrever, olhando para a página em branco à espera de inspiração. Embora palavras como inspiração e genialidade tenham surgido no contexto do século XVIII e sido desconstruídas ao longo do século XX, não há como negar que essa representação de autor permanece ainda muito presente em nosso tempo.

No livro, O gênio não original: poesia em outros meios no novo século, lançado no Brasil pela UFMG em 2013, a crítica norte-americana Marjorie Perloff manifesta-se a favor de uma nova concepção para o estatuto do autor e aposta na escrita não criativa, embasada em uma poética da apropriação. Partindo da defesa de uma poética conceitual, Perloff entende que a criação não depende da originalidade da escrita, mas de uma nova concepção de genialidade – um novo paradigma de criação que a autora chama de uma nova inventio, na qual o autor atua copiando, apropriando, reciclando a  produção artística de outros autores e obra. Assim, genialidade e originalidade são redefinidas: “as práticas atuais da arte têm seu próprio momento e inventio particulares, podemos desassociar a palavra original de sua parceira, a palavra gênio” (PERLOFF, 2013, p. 54).  Para apoiar tal assertiva, Perloff sustenta-se na obra do inusitado poeta conceitual Kenneth Goldsmith, professor de escrita não-criativa na universidade da Pensilvânia.

Kenneth Goldsmith, tornou-se conhecido mundialmente devido à criação e manutenção de um site chamado Ubu Web, plataforma on-line que funciona como um dos maiores acervos de materiais produzidos pela arte vanguardista, e também pela autoria do livro Uncreative writing que defende a escrita não-criativa apoiada na técnica de copiar e colar textos de terceiros. Em tom quase de manifesto, através da apropriação de uma frase escrita por Douglas Huebler, Goldsmith assume uma perspectiva artística que se concentra na arquitetura de uma poética a partir do que já existe, a habilidade de copiar, transcrever e colar: “O mundo está cheio de textos mais ou menos interessantes, eu não gostaria de acrescentar mais nada” (GOLSDSMITH, 2010).

A técnica da apropriação também encontrou seu lugar no Brasil, lançado no final de 2014, o livro Sujeito Oculto, da jornalista e escritora Cristiane Costa, rouba deliberadamente trechos de autores consagrados como Machado de Assis, Fitzgerald, Flaubert, entre outros. Na terceira e última parte, através de ensaios metaficcionais que analisam e “denunciam” o roubo de trechos e tramas de outras narrativas e os diversos sujeitos ocultos, Costa traz variados autores cujas vozes são tomadas de empréstimo  para compor o livro.

Por meio dessa apropriação, a autora parece brincar com a própria construção da autoria, que é remixada, sampleada (técnicas comuns à área musical, por exemplo).  Tal procedimento coloca em xeque as noções de originalidade e criatividade, ao menos tal como as consideramos desde o século XVIII, aproximando-se do que Goldsmith chama de  escrita não criativa ou, nas palavras de Perloff entendendo o autor como um “gênio não original”.

Achados e perdidos: sobre o conceito de literatura menor.

Para um literatura menor

Por Débora Molina

Há cerca de um ano, iniciava uma pesquisa no âmbito da iniciação científica, cujo título era “Literatura contemporânea: uma literatura menor?” O objetivo desta pesquisa consistia em analisar o conceito de Literatura menor empregado por Gilles Deleuze e Félix Guattari sob a Literatura de Kafka, no contexto do início do século XX, para pensar seu rendimento em obras da literatura do início deste século XXI.

Um dos primeiros desafios ao qual me lancei foi dar conta do complexo arcabouço teórico desenvolvido por Deleuze e Guattari no livro Kafka: para uma literatura menor, a fim de compreender melhor o conceito e a maneira pela qual os filósofos o aplicavam à obra de Kafka. E lá foram, dias dedicados a leitura e fichamento, capítulo a capítulo. De fato, não foi uma leitura fácil, costumo dizer que ao ler Deleuze sinto como se segurasse algo escorregadio, quando parece que entendi, que segurei o conceito com firmeza, lá vem outro parágrafo impulsionando seu deslize de minhas mãos.

Diante da dificuldade, a ideia de elaborar um verbete soou como uma solução. Logo, se colocava o segundo desafio: escrever sobre um conceito no qual se apresentava deslizável, já que como o próprio conceito de rizoma sugere: todo ponto fixo aponta um deslocamento. E, adivinhem? Após alguns, muitos, dias de dedicação para a escrita, além das regulares sessões de orientação, finalmente, o verbete saiu.

Levando em conta a dificuldade em apreender determinados conceitos teóricos, que às vezes parecem gigantescos obstáculos na graduação, como no meu caso, uma ideia pareceu-me útil. No momento no qual escrevia o verbete senti falta de um material que auxiliasse minha leitura, achei alguns artigos publicados sobre os conceitos de desterritorialização, devir, rizoma, etc, mas nenhum com uma aplicabilidade mais direta à ideia de literatura menor. Pensando nisso, achei pertinente compartilhar o verbete para, quem sabe, ajudar os próximos aventureiros que pretendem lançar-se aos conceitos de Deleuze, ou aos curiosos que sempre ouvem falar de ‘literatura menor’, mas ainda não tiveram acesso ao pensamento dos filósofos.

O plano de compartilhar textos e materiais que auxiliem na pesquisa e façam com que haja uma troca de ideias entre os pesquisadores, existe desde a idealização deste blog. O verbete, que compartilho aqui com vocês, inaugurará, então, uma nova seção, que deixará disponível textos, artigos e ensaios dos pesquisadores vinculados a este grupo.

Então, aí está.

VERBETE – Literatura Menor

O que eu Diria: um breve relato sobre a inquieta produção contemporânea.

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Débora Molina

Nos dias atuais é quase impossível encontrarmos alguém que não use o computador, não tenha acesso à internet e não tenha uma conta em alguma rede social. É muito provável que ao encontrarmos alguém que há muito não víamos, nossa conversa seja encerrada com um: “Me adicione no facebook” ou “você tem Whatsapp?”.  Essas são só pequenas ilustrações sobre como a tecnologia mudou nossas vidas… há 10 anos atrás, a única opção de reatar alguns laços distantes eram os contatos marcados de canetas nas nossas agendas telefônicas.

Se a tecnologia parece ter mudado nossa concepção de tempo e de relação pessoal, entre tantas outras coisas, porque não levarmos em conta que esta mesma tecnologia possa estar modificando o campo das artes?

Pois bem, as veias cyber cinéticas pulsaram no campo literário brasileiro. No final de 2013 um curioso aplicativo chamado What would i say? Se popularizou no mundo das letras. O bot (robô) é um aplicativo que escreve frases a partir da escolha aletória de palavras retiradas do nosso histórico de conversas e postagens do facebook. Geralmente, a brincadeira com o bot gera frases bastante criativas, como no exemplo abaixo:

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E, justamente por essa criatividade acidental, o bot virou ferramenta de escrita de alguns poetas e escritores brasileiros. Como no caso de Ismar Tirelli Neto que declarou para o caderno literário do O globo Prosa & Verso que o bot era um eco distorcido de sua própria voz, já que tornou sua escrita algo mais inventivo do que a postagem original. Embora o bot demonstre ser um recurso interessante para novas perspectivas da literatura brasileira contemporânea, o aplicativo é visto como algo que soa como brincadeira, coisa que não deve se misturar com Literatura, que é coisa séria.

Em dezembro de 2013 o caderno Prosa & Verso do jornal O globo publicou um artigo chamado ‘literatura do acaso: as experiências com o bot What would i say’. Escrito pelo jornalista e também escritor de literatura brasileira contemporânea Bolívar Torres, o artigo traz a discussão sobre o uso do bot na produção literária contemporânea, e a reflexão sobre as concepções já inscritas no campo como identidade autoral e escrita literária.

Para o professor Frederic Coelho (PUC – Rio), o aplicativo causa o esvaziamento do autor, pois entende que o bot escreve novas sentenças a partir do que o autor já escreveu, o autor não é o escritor do discurso, isso é mérito do aplicativo. Argumenta ainda que o recurso é só um remix das palavras, o ‘recorta e cola’, parecido com o poema dadaísta do início do século XX.

Muitos autores utilizaram o aplicativo para fazer literatura, como no caso de Victor Heringer, que escreveu o poema “bot-macumba” que pode ser lido por meio do vídeo disponibilizado pelo site da Globo vídeos:

http://oglobo.globo.com/videos/v/victor-heringer-le-o-poema-bot-macumba/3015223/

Heringer defende que:

Cada geração tem seus meios de arejar a linguagem — diz Heringer. — Dispor palavras embaçadas de modo a ganharem vida nova. Ao misturar nossas próprias palavras, o bot coloca ainda outro problema: quão parecidos somos com o robô que fala? O quanto essas “nossas” palavras rearrumadas expressam o “nosso eu”? É uma questão esquisita para a literatura, até hoje considerada, em grande medida, expressão da alma. Dependendo das respostas dadas às perguntas acima, poderíamos muito bem concluir que a alma do homem é algorítmica. Ou, como Tzara e os dadaístas, melhor seria transitar nessa fronteira cada vez mais confusa entre

Heringuer apresenta uma discussão pertinente: Nossa subjetividade está cada vez mais entrelaçada ao mundo virtual, estamos conectados o tempo todo com nossos aplicativos para fotos, vídeos, características de humor, etc. Se o mundo e as relações estão mudando com a tecnologia, porque não pensar que a literatura também esteja caminhando para além do mundo do livro, do mundo impresso, para um mundo em expansão?

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A farsa do livro

Débora Molina

A farsa do livro

Há alguns meses, estava eu, sem a menor pretensão, assistindo a um canal qualquer de televisão, quando me deparei com um dos mais incríveis episódios do The Simpsons.  O episódio 6, da 23ª temporada, intitulado originalmente de The book Job, brinca com um suposto mito sobre a relação do mercado editorial e o processo de autoria dos romances infanto-juvenis. Lisa, a famosa personagem cult, descobre que a autora de sua série favorita de livros é uma farsa: uma atriz contratada para se fazer passar pela autora apenas durante as fotos de divulgação dos livros da série.

Através do humor ácido, um mundo sobre o mercado literário é descrito: os livros são planejados com base em pesquisas de mercado e a escrita é ‘fabricada’ por um grupo de especialistas em literatura, viciados em remédios e loucos por um emprego. Decepcionada, Lisa retorna para casa e ao conversar com Homer sobre o crime perfeito arquitetado por editoras que apostam na contratação de ghost writers para produzir best sellers, inspira o pai a formar uma equipe para escrever um livro e faturar um milhão de dólares. A decepção de Lisa também a inspirou a escrever seu próprio romance à maneira dos “grandes autores”, segundo a personagem.

Bastante satírico, o episódio nos possibilita observar duas imagens ambivalentes sobre a concepção de autoria:  de um lado Homer monta uma equipe para escrever um livro, de outro, Lisa sofre para escrever a primeira linha do seu romance. Lisa encarnando uma caricatura do velho escritor romântico à espera da inspiração para a escrita de sua obra prima, perambula por cafeterias, busca ouvir boas músicas, procrastina o quanto pode o momento da escrita, já que as palavras não vêm.

O episódio segue com base em uma paródia ao filme “11 homens e um segredo”. Homer monta uma gang de “autores” e conta com a participação do famoso escritor americano de Best-sellers Neil Gaiman, que no episódio não sabe escrever. Em oposição à imagem romântica associada à autoria, ao autor gênio cheio de inspiração, a figura do autor aqui é subvertida: no lugar do autor, uma equipe de produção, substituindo o trabalho com a escrita, a fluidez de um trabalho quase mecânico realizado por uma equipe.

O episódio também tematiza a participação ostensiva dos editores na elaboração do romance, o desejo de estrelato dos autores, a construção dos gostos do público. Tendo terminado o livro, a equipe de Homer tenta vendê-lo para uma grande editora, mas, para receber o almejado dinheiro, a gang da escrita precisava de um front-man, de um nome para a capa. A reviravolta sarcástica consiste em que o papel de autor é oferecido para Lisa, que concorda com a proposta mesmo contrariando seu ideal de autoria.

Depois de assinado o contrato milionário, Lisa tem crises de consciência por ter aceito se tornar uma “fraude literária”, mas ainda há mais: o livro é completamente modificado. Ao questionar o editor sobre a mudança, Homer ouve como resposta que as modificações foram feitas de acordo com pesquisas de gosto do público.

Este episódio nos convida a pensar sobre as modificações do campo Literário e as reviravoltas em torno da concepção da autoria e da própria literatura no século XXI.

Assita o episódio completo Aqui!

Erotismo ordinário

Débora Molina

André Sant’Anna é, no contexto contemporâneo, um autor diferente. Afirmando estar em guerra contra o “escrever bem” ou contra o modo como a Literatura é comumente concebida, seus livros causam um desconforto imediato no leitor. Entusiasmada com os conceitos da teoria literária que vinha estudando, logo me perguntei pela literariedade do livro de Sant’Anna e decidi fazer dessa interrogação meu objeto de pesquisa.

Um dia qualquer, no ônibus, na viagem de volta para casa, fui lendo um conto que começava com a seguinte frase : “O Executivo De Óculos Rayban”. Sem muito estimulo para a leitura, o início do conto assim como o nome do autor, não me chamaram muito a atenção. A leitura de alguns parágrafos me deixou confusa sobre o conteúdo, havia muitas palavras sendo repetidas, muitos termos coloquiais e muitos, muitos palavrões. Após a leitura, um pouco chocada com o que acabara de ler, fiquei convencida de que tal conto era erótico, com um tom um tanto machista, mas ao conversar mais tarde com quem indicou-me a leitura, fui surpreendida com: “- não, ele não é machista, ele trata de uma relação sexual como ela é, “nua e crua”, sem flores, sem erotismo”.

Intrigada com a opinião, fui procurar mais informações sobre o autor e descobri que o conto fazia parte do romance Sexo que explora a obsessão contemporânea com os desejos, gozos e desprazeres da vida sexual cotidiana dos mais comuns dos mortais. Sant’anna escolhe falar sobre sexo da maneira mais explícita possível, mas isso não é capaz de despertar nenhum interesse sexual, pois o foco principal está na narração da vida sexual de personagens estereotipados. Através da repetição de termos, Sant’anna imprime a repetição do cotidiano, fazendo com que os nomes dos personagens, suas ações, as conotações sexuais presentes em todas as relações alcancem expressividade a partir do que parece não ter nenhuma expressão incomum (o sexo se repete, os nomes se repetem, a vida se repete), a não ser o fato de que nosso cotidiano parece permeado por uma sexualidade que marca todas as nossas ações.

A partir de então venho buscando informações sobre o autor a fim de configurar um ‘estilo André Sant’Anna de escrever’. Um bom contraponto para Sant’Anna é a apelação ao sexo que marca o mais novo sucesso editorial de nossas livrarias: Cinquenta Tons de Cinza. Em

setembro de 2012, o jornal Folha de São Paulo escolheu quatro autores para reescrever uma cena desse livro para uma coluna especial chamado “Ménage à 4”. Sugestivo, não?

André Sant’anna, um dos escolhidos para a releitura, conseguiu tonalizar o cinza para algo mais divertido e muito sarcástico. O trecho original registra a volta para casa do casal cinzento, cena que, claro, acaba em sexo. Ok, nada muito surpreendente para o gênero. Mas com o título “Um gosto podre na boca”, André Sant’Anna dá outra voz ao personagem Christian Grey de Ana Steele, desmascarando o tédio de uma vida de sexo, sem drogas ou rock’n roll:

“Que merda é essa? A gente já se conhece há mais de dez anos, já fez sexo em todas as poses pornográficas e ela ainda me envolve nessa conversa nada espontânea só porque não aguenta um silêncio de cinco minutos. Sou obrigado a responder qualquer coisa:

– Você me conhece melhor do que qualquer pessoa.

E pronto. Até poderíamos calar a boca por mais alguns minutos.

Mas não. Ela tem que falar, assim, de repente:

– Faça amor comigo.

Porra, mas a gente ainda nem jantou! E eu? Sabe o que eu digo?

– Boa menina”

O que André Sant’Anna parece fazer é levar ao extremo o apelo caricatural ao sexo presente nos mais banais espaços da nossa vida contemporânea.