Arquivo da categoria: Janaina Leite

A autoficção e o teatro

Marília Costa

Créditos da imagem: Conversas com meu pai – Janaina Leite

Desde o meu ingresso no doutorado tenho encaminhado os meus interesses de pesquisa sobre a autoficção para além da literatura, pensando a possibilidade de um espaço autoficcional que contemple outras artes como o cinema e o teatro, por exemplo. Atualmente, tenho me dedicado a pensar como a tensão entre realidade e ficção se apresenta no teatro e quais as consequências formais desse hibridismo para o gênero.

Na minha postagem anterior, “Autoficção e desdramatização”, comentei brevemente sobre a peça Conversas com meu pai de Janaina Leite e o conceito de desdramatização proposto por Jean-Pierre Sarrazac em “O drama não será representado”. Hoje, pretendo expandir o diálogo sobre o tema a partir da análise do procedimento da preterição presente tanto na peça Seis personagens a procura de um autor de Luigi Pirandello, analisada por Sarrazac, como no espetáculo Conversas com meu pai, encenado por Janaina Leite.

Sarrazac sinaliza que o ponto central da peça Seis personagens a procura de um autor não é a representação do teatro dentro do teatro, mas sim o fato de o “autor considerar que essa peça anunciada como ‘a ser feita’ é, na verdade, uma ‘peça a ser desfeita’, um modelo de peça ‘bem feita’ a ser desfeita”. Assim, Sarrazac comenta que o procedimento retórico utilizado por Pirandello é a “preterição”, que consiste em “fingir não querer dizer (ou fazer), o que por outro lado, se diz (ou se faz) com muito mais força”.  Sarrazac  discute a ideia de um drama que será recusado, que não será representado até o final e no qual as histórias das personagens vão sendo contadas fragmentariamente. O que aponta para a ruptura da fábula, que deixa de ser uma mera sequência de ações.

Poderíamos aproveitar a reflexão de Sarrazac e pensar na preterição como um procedimento também presente em Conversas com meu pai. Ao longo do espetáculo a personagem vai se questionando sobre o motivo de estar realizando uma peça teatral a partir da sua própria vida. Desse modo, a personagem não aborda detalhadamente os últimos momentos com o pai, não revela o conteúdo dos bilhetes ou o segredo que disse que guardava desde o início da peça. Na direção contrária, ela vai se recusando a contar a história: “Não sei direito o que foi aquilo que eu fiz ali! Eu meio que me recuso a saber o que eu fiz ali totalmente, eu me recuso a ter aquela peça como a peça final!” Assim, resta ao espectador ir construído suas próprias versões a partir do desenrolar da encenação.

Na autoficção, a imbricação entre vida e ficção implica na construção de um efeito de linguagem que se aproxima da performance: “O autor é considerado como sujeito de uma performance, um sujeito que representa um papel nas suas múltiplas falas de si”, segundo Diana Klinger. Esse mecanismo metateatral de ir construindo o espetáculo enquanto ele é encenado se torna ainda mais radical quando o espetáculo mobiliza elementos ficcionais e biográficos ao mesmo tempo, criando uma cena inacabada, improvisada, que nos dá a ver como um work in process, nos termos de Cohen, um estudioso da performance.

Por fim, em Conversas com meu pai, a linguagem assume um papel importante na elaboração da cena autoficcional. “Quem faz autoficção hoje não narra simplesmente o desenrolar dos fatos, preferindo, antes, deformá-los, reformá-los, através de artifícios, afirma Eurídice Figueiredo. É exatamente o que ocorre no espetáculo de Janaina Leite: “eu fiquei por oito ou dez anos fazendo isso, criando essas versões de formas de falar da minha vida em cena, só que nenhuma versão da história dava conta do que realmente tinha acontecido!”.

Formalmente, cenicamente, os artifícios utilizados em Conversas com meu pai podem levar a caracterizar a peça como uma espécie de teatro-instalação ou teatro documental, já que no palco acompanhamos junto à atuação dispositivos midiáticos, objetos pessoais, imagens, áudios. Um exemplo é a cena em que a atriz principal, interpretada por Janaina Leite, coloca áudios gravados pelas irmãs para o público ouvir a fim de comparar com a versão lembrada por ela dos acontecimentos para realçar as diferentes versões dos “fatos”: “minha memória não presta como documentação de nada, porque o que aparece lá está deformado!!”.

À medida que vou investigando melhor a possibilidade de um teatro autoficcional me dou conta de que o mais instigante não é a investigação das fronteiras entre o biográfico ou o fictício, mas sim a análise dos procedimentos cênicos e textuais que são mobilizados na construção dramática e que exploram a ambiguidade da situação das personas em cena.