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Ruína de anjos: formas de experimentação urbanas e artísticas

Milena Tanure

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Créditos: Diney Araújo

Para uma primeira experimentação nesse formato de escrita, proponho-me a dar breves notícias sobre as minhas inclinações de pesquisa. As pesquisas, como a vida, são feitas de atravessamentos, talvez por isso, não só os objetos literários interessam como vias de inquietação e de repensar os aparatos teóricos (e vice-versa), mas também as próprias vias de encontros e desencontros acabam auxiliando no processo de dar forma a um corpus/corpo.

Nesse processo de encontros e desencontros, na busca pelas produções literárias contemporâneas que se projetam a partir da Bahia e que colocam em cena formas de experimentação e representação do urbano, discussão que começo a forjar como pesquisa, deparei-me com a peça teatral Ruína de Anjos.

A montagem do grupo A outra companhia de teatro rompe os extremos do espaço teatral e nos leva para a rua. A experiência urbana tem o poder de surpreender os espectadores que experimentam as espacialidades e trafegam pelas narrativas que se desenrolam na rua ao longo da peça. As cenas, personagens e leitores se entrelaçam entre os carros, lojas e transeuntes que povoam as ruas do Politeama, bairro do centro antigo de Salvador.

Mas um aviso prévio é dado por uma das personagens antes que se comece o trânsito: “Fiquem atentos. Não há a nada a assistir. A palavra de ordem é ENXERGAR”.

Ruína de Anjos, criação de Vinícius Lírio e Luiz Antônio Sena Jr, desenvolve-se a partir da possibilidade da reabertura de um antigo cinema de rua e a esperança de retorno a um passado de efervescência do centro antigo. Nesse cenário, as personagens vão saindo de suas sombras por entre os transeuntes/espectadores ao longo do trajeto que faz um percurso pelas ruas do bairro. Ou, em sentido contrário, os transeuntes/espectadores adentram as sombras para acessar aquilo que não era visto com atenção. Em um jogo entre realidade e ficção, nos deparamos com figuras muito possíveis nos centros antigos das cidades: uma artista de rua que solta fogo nas sinaleiras, uma velha moradora de rua, um cadeirante vendedor de “cafezinho”, um jovem homofóbico opressor que impõe um discurso burguês, uma travesti que faz ponto nas esquinas e um jovem pastor que, com sagacidade, prega e trafica drogas.

As cenas se desenvolvem na possibilidade de se pensar o abandono dos espaços públicos, a mendicância, a gentrificação, as violências urbanas, a ausência de acessibilidade e os atos de homofobia. No caminhar, quase que não há cenas prontas ou estanques, uma vez que não há a alteração do cenário urbano para a realização da produção cênica, assim, é preciso esperar o sinal fechar para seguir o trajeto e a encenação, do mesmo modo, algum dos materiais usados pode cair pelo chão e ser pego por um dos espectadores, sendo ele próprio chamado a atuar/experimentar a errância urbana que é ali teatralizada. O espectador é convidado a partilhar e testemunhar a intervenção desses personagens que passam por um processo de invisibilidade no dia-a-dia, mas que, dentro da obra, extrapolam suas barreiras e se mostram a um leitor/espectador que não sabe o que esperar ao se deparar com aquilo que sempre vê ao transitar pela cidade, mas, por vezes, não enxerga. Entra em cena a produção de sentidos de alteridade na trama da encenação e a própria ideia de experiências contemporâneas.

Contrapondo-se à ideia proposta por Agamben de estarmos vivendo a expropriação da experiência na contemporaneidade, Paola Berenstein Jacques problematiza que talvez estejamos vivenciando um processo de esterilização da experiência, e, em especial, da experiência da alteridade na cidade. Tal processo de esterilização não geraria a total destruição da experiência, mas a domesticação, o anestesiamento oriundo, sobretudo, de uma espetacularização da cidade e pacificação do espaço público por meio de falsos consensos que escamoteiam as tensões inerentes a esses cenários. É nesse contexto que se torna mais relevante a valorização da alteridade urbana e desse Outro urbano que resiste à construção dos “pseudoconsensos publicitários”. Segundo Jacques, “são sobretudo os habitantes das zonas opacas da cidade, dos ‘espaços do aproximativo e da criatividade’, como dizia Milton Santos, das zonas escondidas, ocultadas, apagadas, que se opõem às zonas luminosas, espetaculares, gentrificadas. Uma outra cidade, opaca, intensa e viva se insinua assim nas brechas, margens e desvios do espetáculo urbano pacificado. O Outro urbano é o homem ordinário que escapa – resiste e sobrevive – no cotidiano, da anestesia pacificadora. Como bem mostra Michel de Certeau, ele inventa seu cotidiano, reinventa modos de fazer, astúcias sutis e criativas, táticas de resistência e de sobrevivência pelas quais se apropria do espaço urbano e assim ocupa o espaço público de forma anônima e dissensual.”

Extrapolando bordas de representação, a peça teatral nos fala de degradação social, espacial e humana, mas nos leva a pensar, ainda, o trânsito urbano e as formas de experimentação urbanas e artísticas. É pelas vielas, esquinas e paralelepípedos, no meio do que vive ou agoniza, que experienciamos, pela arte, a vida urbana. Nesse sentido, a experiência estética com a narrativa cênica-dramaturgica coloca-me diante do fato de que, para pensar o urbano no literário, preciso experimentar linguagens e, mais do que isso, tal como um cartógrafo, ser, antes de tudo, uma antropófaga, que a tudo devora pela potência e os atravessamentos que tais experiências podem gerar no meu corpo, e consequentemente, no corpo da pesquisa que proponho.

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