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‘As notas remetem a qualquer lugar do texto. Assim como a qualquer um de seus brancos.’

Carolina Coutinho

Créditos da imagem: Remedios Varo, Ojos sobre la mesa, 1935.

A relação da nota com a escrita do romance é muito cara para o projeto de pesquisa que estou desenvolvendo e o texto “Paratextos editoriais”, de Gerárd Genette, como uma referência central na discussão sobre a nota como gênero textual, levanta questionamentos importantes que contribuem para a investigação.

Nesse texto, o autor procura definir os elementos que compõem o paratexto, uma zona “indecisa” entre texto e fora-do-texto marcada pela instabilidade, local onde a nota parece se encaixar muito bem pela sua natureza elusiva e fugidia. De acordo com Genette, o campo do paratexto é, em si, muito movediço, um conjunto de práticas de difícil definição que depende menos de conceitos concretos do que de escolhas de método.

A nota, então, cerca essa zona incerta com sua própria carga de relatividade. Genette considera que as suas manifestações são tão diversas caso a caso e, por vezes, tão dependentes de um determinado recorte de um determinado texto que até sua autonomia como gênero poderia ser posta em questão. Seu caráter parcial e local, como referenciadora em particular a um trecho de um texto, seriam seus traços formais mais característicos, já que quase todo o resto seria variável, desde o seu tamanho, disposição, função, nível (como em notas sobre outras notas), momento de adição ao texto, até o seu propósito (ou falta dele). Para ele as notas são, por definição, “pontuais, fragmentadas, como que pulverulentas, para não dizer poeirentas”, de difícil apreensão.

As notas seriam algo de um apelo restrito, sua leitura facultativa exceto para alguns leitores interessados em comentários acessórios a um excerto do texto. A instalação de uma nota tem cunho digressivo e complementar e pode conter desde traduções de citações, indicações de fontes, apoio a argumentos com evidências documentais ou suporte de autoridades, a especulações, observações de terceiros, comentários biográficos, genéticos e registros da facção ou da edição do texto anotado. Dessa forma, o desvio do texto à nota pode significar uma quebra da integridade do texto, mas também pode abrir uma outra dimensão de sua leitura e compreensão.

Comentando o aspecto que me interessa, que é a investigação sobre a prática da anotação relacionada à produção literária, Genette comenta que, de modo geral, as notas em textos ficcionais servem para trazer referências e esclarecimentos a romances históricos. De outra maneira, sua presença pode vir a ser uma transgressão sem justificativa aparente para sua existência. Seriam mais raras as notas ficcionais em si, usadas no intuito de contribuir para, ou até mesmo construir, a ficcionalidade de um texto.

Estudar esse texto se já se justificaria pela sua análise da nota e talvez até por mudanças perceptíveis em seus usos atualmente, sua primeira edição é de 1987. Mas o mais interessante do texto pode ser a abertura que Genette propõe para pensar a relação entre anotação e ficção ao explorar a possibilidade de a anotação ganhar autonomia e reivindicar para si o estatuto de narrativa. Assim, ainda que prevaleça um enfoque na acepção redutora das funcionalidades da nota, Genette abre espaço para o potencial da nota para  “prolongar, ramificar e modular” o texto para além de sua função apenas paratextual. Essa sugestão me motiva a aprofundar minha especulação sobre outros modos de presença da prática da anotação em obras como a Novela Luminosa de Mario Levrero. É possível pensar a anotação como um procedimento de escrita, mais que um dispositivo meramente auxiliar, um mínimo aparato referencial?