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Escrita e luto

Antonio Caetano

    Créditos da imagem: ‘Still Life with Skull, Leeks and Pitcher’, Pablo Picasso, 1945

O ano de 2020 certamente já ficou marcado mundialmente como o ano da pandemia do coronavírus. Como parte do combate à propagação do vírus, as medidas sanitárias recomendadas, somadas ao isolamento social, impactam certas lógicas de convivência social, proporcionando, por um lado, demandas de fala e de exposições de experiências (reportagens, entrevistas, lives, postagens em redes sociais, projetos, artes) e, por outro, o impedimento (ou modificação) de atividades sociais e culturais importantes, dentre elas, os rituais fúnebres.

Recentemente encontrei o Palavra no Agora, site criado pelo Museu da Língua Portuguesa, que abre espaço para uma espécie de ritual fúnebre simbólico, uma maneira de expressar o luto por meio da escrita. No site estão dispostos três espaços: em um deles há uma coletânea de trechos literários com a temática da dor da perda; em outro, resenhas de livros, filmes, músicas (também com a mesma temática) e há ainda um espaço denominado Escritos do público, no qual podem ser postados “os registros de quem encontrou nas palavras uma forma de alívio”.

Tais registros são textos variados, prosa e poesia, memórias e ficção. Segundo o próprio site, o objetivo é “ajudar as pessoas a atravessar esse momento complexo e mutante”. As narrativas que li no site me fizeram pensar sobre esse “eu” que, através da escrita, se faz presente e performa narrativas que o reconstituem na pós-perda.

Enfatizando a importância do caráter simbólico do ritual fúnebre, Miranda de Souza e Pantoja de Souza (2019), no artigo “Rituais Fúnebres no Processo do Luto: Significados e Funções”, afirmam que ele “fornece sentido à realidade, ajudando a simbolizar a morte do ente querido”. Ou seja, tais rituais seriam significativos no início dos processos de luto pois expressam, simbolizam e comunicam (para si e para outros) um encerramento de um período de vida, de um ciclo, de uma relação etc.

Lendo os registros ficcionais no site, imagino que escrever sobre essa perda pode representar não apenas uma forma de luto sobre a morte, mas também uma forma de reelaborar a própria subjetividade marcada pela ausência do ente querido.

Pensando assim, a seção Escritos do Público no Palavra no Agora me parece tanto um veículo que permite simbolizar, comunicar e expressar a perda de alguém –especialmente diante da impossibilidade de se realizar um ritual fúnebre adequado às necessidades dos viventes –  como pode oferecer ao sujeito enlutado a oportunidade de se reconstruir por meio da narrativa que elabora ali. Dessa forma, sendo o trabalho de luto um processo que auxilia o indivíduo a lidar com a perda, e que, por isso mesmo, é capaz de agenciar histórias, lembranças, memórias, registros sob a perspectiva do sujeito enlutado, é interessante pensar em como o luto também pode ser pensado como um processo de constituição de si, de (re)constituição de um sujeito que tem de lidar com a perda e a falta.