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Desafios críticos contemporâneos

Davi Lara

Créditos da imagem: Laura Erber

No dia 04 de julho deste ano, defendi minha tese Desafios críticos contemporâneos: autoria e autoficção em Javier Cercas e Enrique Vila-Matas. Alguns meses antes, enquanto ainda estava escrevendo a tese, durante uma conversa na qual certamente falava sobre o meu processo de escrita (quem tem um amigo nesta situação sabe que podemos ficar repetitivos), uma amiga me perguntou se eu não me incomodava com o fato de que provavelmente pouquíssimas pessoas leriam o trabalho que estava me custando tanto escrever. Ela estava se referindo ao estranho regime de produção acadêmica, que produz uma quantidade enorme de artigos, monografias, dissertações e teses que não são lidos na mesma proporção em que são escritos, resultando numa massa enorme de trabalhos que é esquecida num canto escuro de uma prateleira. Lembro-me de ter respondido que, como todo mundo que escreve, eu também era motivado pelo desejo de ser lido, mas que a temporalidade lenta própria da comunicação escrita, tão diferente da imediatez da comunicação oral, onde a resposta é praticamente simultânea, tinha educado minha ansiedade; e que isso não era – e continua não sendo – algo em que eu pensasse muito.

No entanto, o mesmo sistema que promove a produção de trabalhos que nunca serão lidos, cria dispositivos de divulgação, leitura e discussão da produção acadêmica que, quando funcionam, concorrem para a circulação das ideias e para quebrar o isolamento dos pesquisadores. Assim, dentre outras coisas, quem escreve uma tese, sabe que, além do(a) orientador(a), seu trabalho será lido por pelo menos mais quatro pessoas: os quatro professores que comporão a banca de defesa. Por funcionar, na prática, como uma espécie de rito de passagem, a última etapa que separa o estudante do título de doutor, a defesa do trabalho final de curso é geralmente acompanhada por uma grande pressão. No entanto, esta pode ser considerada como uma oportunidade ímpar onde o trabalho de mais ou menos quatro anos vai ser lido, comentado e discutido por pesquisadores experientes que têm interesses em comum aos seus.

Foi justamente esta a maneira com que eu tentei encarar este momento no intervalo de espera que sucedeu à finalização da tese e o envio da versão final para os membros da banca. E devo dizer que minhas melhores expectativas foram confirmadas e excedidas. Ainda hoje, três meses depois da minha defesa, sinto uma grande alegria quando penso na interlocução com Ana Cecilia Olmos, Igor Ximenes, Suzane Costa e Antonio Marcos Pereira, que, com suas leituras generosas, criteriosas, críticas, às vezes combativas, melhoraram o meu trabalho, no duplo sentido de apontar correções a serem feitas e de prolongá-lo com suas leituras. Gostaria de deixar marcada essa alegria. Num momento de necropolítica em que somos assaltados diariamente por uma enxurrada de motivos para nos entristecer, creio que os momentos de alegria como esse devem, mais do que nunca, ser devidamente celebrados.

Tomando as obras de Enrique Vila-Matas e Javier Cercas como casos exemplares de certas transformações na literatura contemporânea, minha tese marca um esforço inicial de compreensão crítica destas transformações. Como o próprio título da tese enfatiza, tratar de um objeto tão fugidio como a literatura contemporânea, que não possui a estabilidade que o distanciamento histórico confere aos fenômenos literários, é bastante desafiador, mas é igualmente estimulante. Agora que a tese está finalizada, e que está prestes a ser disponibilizada para o público, gosto de pensar em todo o processo de sua feitura, em todas as hesitações, as dúvidas, as compreensões adquiridas lenta e laboriosamente, os insights, enfim, em todas as etapas do pensamento que estão registradas no “produto final”. E como vejo este trabalho como uma espécie de work in progress, que pretendo retomar assim que estabilizar minha vida profissional (a carreira acadêmica tem essa contradição: aqueles que, como eu, se dedicam exclusivamente à pesquisa científica ao longo de sua formação, quando alcançam o mais alto grau de formação superior, que é o doutorado, se veem de repente retornando ao início de suas carreiras), gosto de pensar, igualmente, nos desdobramentos possíveis destas questões em outros problemas de pesquisa que ampliem ou aprofundem o que foi tratado na tese.

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Labirinto sem minotauro

Davi Lara


Óscar Muñoz, Narcisos (secos) (1994). Disponível em: https://elpulpofoto.com.
br/oscar-munoz-y-la-fragilidad-del-recuerdo/

“Talvez seja um traço de pensamento hereditário acreditar que todo labirinto tem seu minotauro.” Foi com essa frase de ​O material humano, de Rodrigo Rey Rosa, que eu me convenci de que gostava deste livro. Lançado originalmente em 2009, este é um livro pouco sedutor à primeira vista. Seu início é cansativo e pouco estimulante. Depois de um prólogo no qual informa a circunstância real que deu origem ao livro, qual seja, a descoberta acidental de um arquivo com milhares de documentos que cobriam mais cem anos da atividade policial da Guatemala, o autor, que havia recebido uma permissão para acessar parte dos documentos, dedica 20 páginas a pequenas anotações sobre os registros de prisões no intervalo de 50 anos entre as décadas de 1920 e 1980. Esta lista de entradas cumulativas e aleatórias é o labirinto ao qual o autor se refere na frase com a qual iniciei este texto. Frente a uma página caótica do arquivo policial de seu país, Rey Rosa se pergunta que tipo de história poderia estar escondida em meio aquele emaranhado de registros, como achar sentido naquela sucessão informe de nomes e delitos? Em suma, como transformar aquilo em um romance?

Refletindo sobre este trecho um tempo depois de lê-lo, não pude deixar de pensar em romances recentes que expressam dilemas semelhantes. Lançado recentemente no Brasil, ​O espírito dos meus pais continua a subir na chuva ​(2011) do escritor argentino Patricio Pron é um bom exemplo. O famoso romance de Javier Cercas, ​Soldados de Salamina (2001), mas também seus livros mais recentes, ​O impostor (2014) e ​O monarca das sombras (2017), são outros títulos que valem a menção. O que todos eles têm em comum é que são construídos em cima do mote de uma investigação histórica na qual o personagem, que tem o mesmo nome do autor, revisita o período mais ou menos recente das ditaduras que assolaram esses três países na segunda metade do século passado.

Embora meu intuito principal seja fazer uma observação formal, não posso deixar de comentar esta reincidência temática, que impele alguns romancistas contemporâneos a revisitar um momento traumático da história de seus países. Ao que parece, a necessidade do retorno à ditadura revela a permanência de traumas que, como uma herança familiar maldita, são passados de geração a geração (tema central em Pron, em Rey Rosa e no livro mais recente de Cercas), mas também a permanência do legado político, que se deixa ver no funcionamento viciado das instituições estatais e nas práticas criminosas dos agentes públicos. Nesse sentido, O material humano​, que li em novembro do ano passado, logo após a eleição presidencial, foi especialmente marcante, haja vista o paralelo inevitável entre a Guatemala que Rey Rosa descreve e o Brasil de agora, sobretudo no que diz respeito ao modo como lidamos com o nosso passado político, ignorando-o e, assim, deixando a porta aberta para que ele volte para nos assombrar…

Outra característica marcante destes livros diz respeito àquilo que o filósofo argentino Reinaldo Ladagga chama de ​estado de estúdio​, isto é, a tendência contemporânea das artes de produzir obras em que o artista se mostra no processo de criação. No caso dos romances mencionados, isso se manifesta por meio de um relato das investigações e preparativos que os autores fazem com vistas à escrita de um livro, que é o livro que estamos lendo. É justamente esta estrutura, de acordo com a qual nos é dado ver uma espécie de obra em progresso, que a frase que dá início a este post revela. Como já disse, a frase se refere às dificuldades do autor para achar um sentido no labirinto dos arquivos policiais a que tem acesso. Assim, boa parte do livro consiste justamente na busca pelo mistério que pretensamente se esconde neste labirinto. Primeiro, esse mistério toma a forma de Benedicto Tum, o funcionário responsável pelo arquivamento de todos os documentos consultados por Rey Rosa. Concomitantemente às suas pesquisas sobre Tum, o autor se lança na busca dos responsáveis pelo sequestro de sua mãe durante a guerra civil guatemalteca (1960-1996), chegando mesmo a julgar que tinha enfim encontrado o seu minotauro.

Mas o fato é que, se existia um minotauro neste labirinto, ele não é o arquivista Benedicto Tum, nem os sequestradores de sua mãe, pois ao fim e ao cabo o tema do livro, aquilo que lhe dá unidade, não é nada mais do que a própria investigação e a relação que se evidencia neste processo entre a ética profissional do autor e a realidade política do seu país. Não por acaso, o livro é constituído majoritariamente de supostas transcrições dos cadernos e cadernetas nos quais o autor fazia suas anotações e escrevia seu diário durante suas pesquisas. Assim, nós, leitores, somos informados dos dilemas subjetivos e das circunstâncias materiais da escrita do romance conforme elas eram elaboradas pelo autor na época em que as vivenciava. Não há, portanto, o efeito de distância entre autor e obra, por meio da qual um autor pode formular e pôr em prática um plano de escrita baseado numa unidade previamente planejada. O que também não quer dizer que não exista artifício ou mesmo invenção na composição do relato. O próprio autor faz questão de instaurar a dúvida no leitor com a observação que antecede o livro, reivindicando para ele um caráter ficcional (apesar de deixar claro o que ele entende por ficção.): “Embora não pareça, embora não queira parecer, esta é uma obra de ficção.” Ou então na continuação da frase em que questiona se realmente haveria um minotauro no labirinto: “Se este não o tivesse, eu poderia cair na tentação de inventá-lo”.

Seja como for, o que eu gostaria de enfatizar, aqui, não é tanto a porosidade entre a ficção e realidade, mas esse questionamento que o autor se faz, se realmente é necessário haver um sentido romanesco em todo mistério, ou se é “um traço de pensamento hereditário” o que nos faz acreditar que os labirintos só existem para abrigar minotauros; que a acumulação aleatória dos fatos e dos dias, seja ela na vida de uma pessoa ou na de um país, só tem sentido quando se prestam a uma narração linear e dotada de sentido. A meu ver, quando questiona o modelo de interpretação do mundo que acredita que todo labirinto tem seu minotauro, isto é, que a sucessão de fatos da realidade precisa de uma unidade narrativa que lhe restitua o sentido e o encadeamento dos acontecimentos, Rodrigo Rey Rosa revela um dos fundamentos da ficção contemporânea: a abertura para outros modelos narrativos nos quais o que importa não é tanto o efeito de unidade, mas as sinuosidades do percurso; não a apoteose do resultado, mas os dilemas do processo; não o minotauro, mas o labirinto.