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O DIFÍCIL DEPOIS

Nívia Maria Santos Silva

Quando decidi me submeter à seleção do doutorado, tinha uma convicção: não queria que nada concorresse com a minha pesquisa e com a escrita da minha tese. Munida dessa determinação, me desliguei de meus vínculos empregatícios, fechei uma empresa da qual era sócia majoritária e mirei a bolsa de estudos a fim de, pela primeira vez, poder me dedicar de forma exclusiva a meus estudos. Esse desejo vinha do fato de que eu comecei a trabalhar muito cedo (aos 15 anos) e, desde então, sempre fui conciliando estudo e trabalho. Foi assim ao longo do ensino médio, da graduação, da especialização e do mestrado. A atividade profissional concorria com a acadêmica invariavelmente e vice-versa. Conseguia avançar no mercado de trabalho e na universidade, mas não sem prejuízos por vezes para ambos os lados. No doutorado, eu queria que fosse diferente. E foi.

Quando iniciei o Doutorado em Literatura e Cultura na UFBA já não tinha emprego, estava fora do mercado, completamente voltada para cumprir os créditos das disciplinas dos dois primeiros semestres e para a produção de artigos que, posteriormente, seriam a base da minha tese. Só não foram quatro anos completamente sem exercer a docência porque passei pelo Estágio Docente obrigatório, que me fez ministrar por dois semestres o componente curricular “Introdução aos Estudos Literários”. O estágio é uma exigência de quem é bolsista CAPES. Sim, eu consegui a almejada bolsa e seguia sobrevivendo como pesquisadora. Para mim, que em minha cidade natal (Feira de Santana) já estava estabelecida no mercado de trabalho antes de iniciar o doutorado, o valor da bolsa me impôs um reaprendizado financeiro. Claro que ao longo de todo o caminho havia pensamentos sobre o depois. No que resultaria tanta dedicação e esforço? Entrar no mercado de trabalho novamente depois de quatro anos ausente era uma preocupação crescente à medida que a defesa se aproximava.

Como era esperado, cumpri os prazos estabelecidos e, em março de 2018, todos os integrantes da banca já estavam com minha tese em mãos. Um turbilhão de sentimentos controversos me tomou, desde aquele medinho da banca, da qual nunca se sabe o que pode sair, até aquele receio de dar branco, de não conseguir metabolizar o nervosismo, de não ser clara e firme o suficiente, de expor-se à audiência presente. Afinal, havia ficado ou não quatro anos mergulhada nisso? Não podia vacilar no último instante! As autocobranças eram duras. A espera pela defesa foi mais dolorida que a defesa em si, que acabou sendo um momento de diálogo construtivo que atravessou horas. Um momento cansativo do qual eu sai exaurida sim, mas um momento incrível de trocas e até mesmo de afeto. Jamais me esquecerei das palavras da minha orientadora ao final. Elas já fizeram valer tudo. No entanto, passado o êxtase da aprovação, impôs-se a realidade da vida e suas urgências pela sobrevivência.

Lá se vão exatos 12 meses. Eu, que tinha planejado o doutorado todo, me via sem norte. Comecei uma verdadeira caça aos concursos. Ao longo desse ano após meu doutoramento, passei em alguns (ainda à espera da convocação), perdi em outros. Aprendi que a defesa do doutorado é “fichinha”, cruel mesmo é o difícil depois. Os concursos para docente efetivo do ensino superior público, por exemplo, são momentos de desgaste físico e emocional intenso. São processos que exigem viagens, investimentos financeiros e um tempo de estudo que não se tem mais, pois já se está trabalhando aqui e ali para pagar as contas do mês e até para juntar dinheiro para poder se inscrever (sempre é um valor alto), ir até o local do concurso, se hospedar, comprar os livros. Enfim, é preciso investimento para se submeter a um concurso, e o esforço que você realiza para isso tira o tempo necessário de se preparar adequadamente para ele. Que contradição! A vida agora é essa corda bamba e a consequência direta é o prejuízo imposto à rotina de pesquisa, pois, entre os estudos para as provas e os trabalhos para a sobrevivência, não sobra muito tempo para uma pesquisa que agora não é mais financiada, ou melhor, que agora tem que ser autofinanciada.

Desde outubro do ano passado, estou professora do IFBA, Campus Salvador. O cargo é provisório, mas já marcou meu reencontro com o exercício da docência e está sendo um novo momento de aprendizado. Eu que sempre havia trabalhado com a iniciativa privada me vejo agora num instituto federal, lidando com diferentes demandas, conhecendo outros profissionais da área e uma modalidade de ensino que desconhecia: o ensino integrado (médio e técnico). Não foi um retornar, foi um avançar. Estou no momento na complexa tentativa de conciliar a docência com a pesquisa, o que na realidade foi o que fiz na maior parte de minha vida acadêmica e profissional. São tempos de readaptação. Tenho que reaprender a distribuir meu dia e lidar com o amanhã incerto. Como diria Hilda Hilst: “E recomeço. E recomeço”.

À espera da defesa

Por Nívia Maria

CARTAZ DEFESA (1)

 

No dia 29 de agosto de 2014, publiquei neste blog meu primeiro texto sobre Bruno Tolentino: “Bruno Tolentino: o ilustre desconhecido”. De lá para cá, muitos outros textos foram postados, traçando minha trajetória de pesquisa. “Um sítio para chamar de seu”, “Um projeto editorial para Bruno Tolentino”, “O eu lírico e os outros eus”, “Um jogo complexo de figurações”, as postagens seguiam ao sabor das descobertas e constituíram um verdadeiro passo a passo das minhas investigações, agindo diretamente sobre a redação de minha tese.

Meu processo de aprendizado e de produção foi marcado pela minha participação no Grupo de Pesquisa Leituras Contemporâneas. Por meio de abordagens teóricas e críticas, o Grupo de Pesquisa fomentou leituras e discussões indispensáveis e, incitando diferentes formas de pensar a literatura, me proporcionou ocasiões nas quais pude apresentar meu trabalho acadêmico ainda em andamento e realizar trocas com meus colegas pesquisadores, compartilhando as alegrias e as angústias com as quais me deparei durante o percurso.

Além disso, no itinerário percorrido ao longo desses quatro anos, novos fatos foram se impondo e, durante a execução das etapas, novas reflexões foram sendo realizadas. Muitas experiências, como a participação em eventos científicos e a consulta ao CEDAE, acabaram ditando alterações de rotas. Fui percebendo o quanto é importante possuir um planejamento, pois, por mais que haja mudanças, ter uma estruturação do trabalho pode potencializar o aproveitamento de novos achados.

Mesmo reconhecendo a importância do planejar, fui percebendo que a pesquisa é, sobretudo, aventura. Quando publiquei em 2015 o texto “Pesquisa: uma aventura autorreflexiva” já tinha consciência de que as curvas no caminho fazem parte do processo de investigação que vai sendo realizado. Hoje, compreendo que o reexame dos rumos são efeitos desse próprio processo. Aprendi que produzir uma tese é mais construir um caminho do que seguir um caminho. No fundo, o “saber fazer” vai sendo conquistado no próprio processo de feitura. O exame de qualificação foi a etapa que mais me deu a certeza disso.

Meu anteprojeto chamava-se “O Poeta sob o Polemista: um estudo lítero-biográfico sobre Bruno Tolentino”. Logo após as primeiras disciplinas cursadas, os primeiros encontros de orientação e o avanço mais científico da pesquisa, o anteprojeto virou projeto sob o título de “O poeta sob o polemista: um estudo de trajetória do poeta Bruno Tolentino”. Com a função de especificar o caminho que o trabalho acadêmico foi tomando, esclarecendo-o, o subtítulo foi sendo alterado à medida que a pesquisa evoluía e a fundamentação teórica ia se estabelecendo. Quando submeti parte da tese ao exame de qualificação, o projeto tinha saído do papel com o título “O poeta sob o polemista: um estudo sobre a autofiguração em Bruno Tolentino”. Apesar de ter resistido por um bom tempo, esse título acabou sucumbindo nos últimos instantes e, para abarcar de forma mais abrangente o todo do trabalho, foi entregue à banca da defesa a tese intitulada “Eu, modelo, martelo e monumento: um estudo sobre a autofiguração em Bruno Tolentino”.

Os títulos e subtítulos supracitados mapearam a direção que a pesquisa foi tomando: do Tolentino polemista ao Tolentino poeta, da crítica biográfica ao estudo de trajetória, do estudo de trajetória ao estudo sobre autofiguração. Levantei informações, selecionei, filtrei, relacionei, reelaborei, gerei um corpo de conhecimentos que me levou a conciliar os estudos sobre autofiguração com a teoria dos campos de Bourdieu na tentativa de provar que a mitificação da biografia pelo próprio Tolentino, a instauração de antagonismos com outros agentes do campo e a presença de rastros autobiográficos em sua produção poética e ensaística constituíam um empenho para demarcar sua diferença no campo literário brasileiro.

Daqui a pouco mais de dez dias, vou me apresentar diante de uma banca de doutores para realizar a defesa de minha tese. Mais um ritual de passagem que a jornada acadêmica vai determinando. Sei que não será um momento fácil, mas um doutorado não é para ser fácil, talvez por isso mesmo seja tão instigante e producente. Com as contribuições ainda por vir dos integrantes da banca, a defesa ainda não será o fim da travessia, mas, como os melhores ritos, será, com certeza, uma celebração.

Um jogo complexo de figurações

Por Nívia Maria Santos Silva

distorção e aquarela henrieta harris

Créditos da imagem: The Greatest – Henrietta Harris

[…] a inconsentida/figuração do uno pelo vário.

(BRUNO TOLENTINO, O mundo como ideia)

Um dos investimentos teóricos realizados por minha tese é a ideia de autofiguração. Partindo do trabalho dos críticos argentinos de Sylvia Molloy, José Amícola e Julio Premat, defendo a autofiguração autoral como uma estratégia discursiva de produção de uma imagem de si que abrange tanto a inclusão e manipulação de rastros autobiográficos em textos literários e críticos quanto a ficcionalização da biografia e a atuação pública do autor em prol de sua legitimação no campo literário.

No estudo em que venho me empenhando, observei o processo pelo qual passou Bruno Tolentino enquanto poeta recém-chegado (investindo em suas primeiras publicações após quase três décadas fora do Brasil), poeta polemista (estabelecendo seus antagonistas) e poeta pensador (se inscrevendo numa filosofia da forma). Até o momento, minhas investigações apontaram que todas essas imagens investidas por ele convergem em prol da construção da imagem de poeta maior. Nas próprias palavras de Tolentino: “Sou um dos nossos poetas maiores”.

Toda autofiguração, no entanto, implica uma recepção, a qual acaba por instituir também um jogo complexo de figurações. Em outras palavras, para que autofiguração se concretize, não basta a ação do autor, uma vez que a autofiguração, ainda que incitada por ele, dependerá das escolhas da recepção para se realizar assim como do conceito de literatura que lhe serve de lastro. Isso se dá porque figurações diversas são realizadas por uma recepção igualmente diversa.

Tolentino já foi julgado positivamente por Arnaldo Jabor como aquele que trouxe de volta “a peste clássica” e teve sua poesia qualificada negativamente por Manoel Ricardo de Lima como “recheada de idiotices repetitivas e neoparnasianas”. Sua recepção crítica foi constantemente marcada por esses sentimentos díspares de admiração e de repulsa, sendo alvo de textos de importantes nomes da crítica literária brasileira, como: José Castelo, “Bruno Tolentino faz versos contra a hipocrisia”; Ivan Junqueira, “Bruno Tolentino: imitação e criação”; Célia Pedrosa, “A estranha caçada de um polemista”, e Marcos Siscar, “A história como múmia: sobre a poesia de Bruno Tolentino”.

Entre julgamentos antagônicos incitados por Tolentino e suas produções podem ser encontradas tanto a sentença de Alcir Pécora, “Bruno Tolentino é seguramente um dos maiores poetas da língua portuguesa, na era pós-João Cabral”, quanto a análise de Domeneck, que encontra na produção poética de Tolentino “as rimas convencionais, a linguagem frouxa e a imagética kitsch”. Essas posturas não são apenas diferentes, mas muitas vezes antitéticas e se repetem em outros textos críticos. Em “Escrito nas estrelas”, Érico Nogueira, por exemplo, classifica a poética de Tolentino como classicizante, sem ver nisso nada de depreciador, enquanto que Eduardo Levy o situa como um poeta que “parou no tempo”, taxando-o de retrógrado. Enquanto alguns críticos o alçam à categoria de poeta modelar, para outros Tolentino seria um poeta obsoleto.

Assim, a recepção crítica ora reforça ora contesta o investimento de Tolentino como poeta maior, formando figurações outras que apontam para a impossibilidade de controle da autoimagem e até mesmo promovem distorções da figuração pretendida. Tantos julgamentos controversos exigem a problematização do suposto controle estratégico da formação da imagem de si pelo poeta e as possíveis vantagens ou prejuízos para a posição do poeta no campo literário em que ele atuou.

 

No Xangrilá das abstrações

Por Nívia Maria Santos Silva

 

tolentino livro

Xangrilá, ou Shangri-la, é uma cidade fictícia criada por James Hilton em seu livro “Horizonte perdido” (1933), uma espécie de paraíso perdido, inspirado em Shambhala. Situada entre muitos desfiladeiros do Tibet, a bela cidade é um local de difícil acesso, poucas pessoas conhecem o caminho entre as montanhas, o que significa que aqueles que são levados até lá não possuem a possibilidade de sair de lá, a não ser que sejam guiados. No romance de Hilton, as personagens que fugiam da guerra tiveram a rota de seu avião alterada até caírem, sendo socorridos por lamas que os levam para Xangrilá. Todos são muito bem recebidos, mas a recepção amistosa e benevolente não os tira da condição de “prisioneiros” daquela terra oculta, sedutora e, sobretudo, repleta de promessas.

Bruno Tolentino se remete a essa cidade acolhedora, mas ao mesmo tempo ilusória, ao se utilizar da expressão “Xangrilá das abstrações”, em seu texto-ensaio-prefácio “O cego nu: um exórdio”. Para ele, é nesse lugar de encantos e ilusão que vai parar tudo o que se “propõe a traduzir o mundo numa exatidão de teorema que termina por conceitualizá-lo […] esvaziando-o de todo sentido”. Inspirado principalmente no pensamento de Ives Bonnefoy, a quem chama de mestre, os dez textos distribuídos nas mais de 70 páginas que formam o prefácio do livro O mundo como ideia (2002) se esforçam na defesa do que Tolentino chama de “mundo-como-tal”, ou seja, o acesso ao mundo sem a interferência das “muralhas de conceitos”, que insistem em intermediar nosso contato com “os dados brutos do real”, desfigurando-o. Estar no “Xangrilá das abstrações” seria, então, nem perceber que se está trocando o mundo-como-tal pelo mundo-como-ideia, um mundo limitado e reduzido, mediado por conceitos que “paralisam o prazer”.

Partindo desse pensamento, Tolentino se coloca contrário às teorias que tentam mediar a experiência do ser-no-mundo, assim como aquelas que se interpõem entre o sujeito e a experiência estética, trocando-a por um “jogo de conceitos” que leva “A notória embriaguez formal da arte pura” e a consequente substituição da “intuição do ser pelo número” e da substância pela ideia. O pensamento que atravessa os textos preliminares de O mundo como ideia retoma e adensa o discurso crítico de Tolentino, divulgado antes em sua atuação polêmica no campo literário brasileiro, tanto por meio de suas intervenções no jornalismo cultural quanto por meio do híbrido e satírico Os sapos de ontem. Escrito ao longo de 40 anos, o livro se apresenta como o zênite do programa poético tolentiniano, que o poeta qualifica como um “projeto em mim”, uma ars poetica, um “arrazoado em defesa do real”.

Na prática, esses ensaios fundamentam especulativamente sua postura antiformalista, antimarxista, antiestruturalista, antivanguardista, antidesconstrutivista, mesmo sem citar diretamente nenhum desses “ismos”, como faz de forma reiterada e explícita em sua produção polêmica. Juntando o quebra cabeças, todos os “ismos” para Tolentino são formas de ceder “a tirania tentadora do conceito”, como a que ele chama de “utopia formalista”. As teorias seduzem e aprisionam agindo de forma totalitarista, uma vez que funcionam como uma patrulha, como se a arte tivesse que ser realizada de determinada maneira para atender anseios que nem sempre são os anseios de seu produtor, provocando uma indesejada inversão entre os fins e os meios.

A postura tolentiniana pode ser facilmente classificada como antiacadêmica e conservadora, no entanto, há de se levar em consideração suas colocações principalmente quando percebemos que seu movimento não é uma reação isolada nem apenas vinda de fora da academia, mas um comportamento que vem tendo adesão de nomes consolidados do campo acadêmico. É inescapável não relacionar o ponto de vista tolentiniano com livros como os de Todorov, A literatura em perigo (2007), e Gumbrecht, Atmosfera, ambiência, Stimmung: sobre o potencial oculto da literatura (2011).

Depois de se tornar um dos nomes de referência do Estruturalismo, Todorov passou a defender a ideia de que a imanência estruturalista e outras teorias fizeram com que triunfasse “uma concepção absurdamente reduzida do literário”, colaborando para o afastamento entre a obra literária e o mundo. Para ele, “Todos os ‘métodos’ são bons, desde que continuem a ser meios, em vez de se tornarem fins em si mesmos”. Em seu livro, essa postura se soma a afirmações do tipo: “A função da literatura é criar, a partir do material bruto da existência real, um mundo […] mais verdadeiro” e “Ela nos proporciona sensações insubstituíveis que fazem o mundo real se tornar mais pleno de sentido e mais belo.”.

Gumbrecht, por sua vez, supera, sobretudo, o desconstrutivismo e os estudos culturais, e parte do pressuposto de que “Em termos conceituais, tudo fica mais complicado”. Ele nos propõe uma terceira via: ler em busca do Stimmung, grosso modo, da sensação. Sobrepor a sensação à interpretação seria valorizar a experiência imediata da obra literária. Ou seja, uma experiência de leitura deve se dar sem a mediação dos conceitos/teorias que leem as obras “como se elas se propusessem enquanto alegorias de argumentos ou agendas filosóficas.” Sua particularidade é que para ele a arte não busca a verdade, a arte existe enquanto presença e não representação.

Dentro das peculiaridades de cada um, os três apresentam como ponto em comum o colocar-se contra a substituição da literatura/arte pelas teorias/conceitos. O que leva então a essa interseção? Esse cruzamento de posturas entre o poeta brasileiro, o filósofo búlgaro e o crítico alemão se retroalimenta apenas do repetitivo discurso da crise ou registra certo cansaço e/ou insuficiência da teoria? Tolentino se reconheceu como um dos “prisioneiros” seduzidos no “Xangrilá das abstrações” em busca de sua “filosofia da forma” e se colocou como aquele que, estando lá, procura apontar a saída, a “diagnose e cura”. O tom de Todorov e de Gumbrecht também parece ser daquele que aponta uma solução. Enquanto não conseguimos perceber direito para onde eles apontam, as teorias vão nos auxiliando a entender melhor suas proposições.

Das Booty: Se non è vero, è ben trovato

Por Nívia Maria Santos Silva

Um, professor e intelectual. Outro, aluno e esportista. Um, carioca. Outro, londrino. Um, com a cabeça nos astros. Outro, com os pés no chão. Um, verborrágico e eloquente. Outro, calado e ponderado. Um, erudito. Outro, pop. Ambos amantes e poetas. Diferentes e complementares, mas, sobretudo, imprevisíveis. Lúcio e Shyno são duas personagens improváveis do livro Das Booty, que, companheiros e amantes por mais de uma década, lançaram-se numa aventura marítima na qual parecem ser mais críveis as licenças poéticas do que aquilo que pretende ser a “recriação imaginativa de fatos reais”.

 

A própria capa do livro traz o aviso: “Um verdadeiro conto de contrabando, vudu e poesia”. Um exercício de ambiguidades que é intensificado ainda mais na versão brasileira, na qual encontramos o nome “Bruno Tolentino” estampado e o destaque da informação: “Uma história real”. O autor problematiza mais a questão quando faz a ressalva: “mas não uma reportagem”. Mais do que de Pringle, é de Tolentino essa história, é ele o homenageado do livro e muitas das situações vividas pelos personagens fazem parte da biografia do poeta.  Inclusive, é dele a fotografia da capa.

 

O autor, Simon Pringle, britânico, formado em Letras, poeta não praticante, ex-vendedor, publicitário etc., tem em Das Booty o seu primeiro romance, gerado justamente porque tinha uma grande história para contar. E a história é a seguinte: indivíduos cheios de trejeitos, que são verdadeiras caricaturas de si mesmos, “Dois ex-presidiários, um aleijado, um par de sodomitas e um sujeito metido a californiano”, unem-se numa missão nem um pouco lícita: transportar haxixe de barco do Marrocos para a Espanha e seguir por terra até a Inglaterra. Já no primeiro capítulo, os integrantes dessa quadrilha são apresentados como “A turma da prensada”, para ser mais exata “uns 130 kilos, prensado de primeira”, numa referência à droga com a qual fariam o serviço de mula. Até o quinto capítulo, o plano de ação já estava todo bolado.

 

Tolentino-Lúcio é o mentor intelectual do crime. Além disso, foi apresentado no livro como gourmet, jogador de futebol, bailarino, boxeador, bruxo, poliglota, navegador, cantor, um homem de múltiplas habilidades, não só linguísticas ou intelectuais. Em meio a todas essas atividades/talentos, é apresentado como poeta: “Shyno sempre ficava perplexo por ele ser capaz de fazer poesias em meio a circunstâncias mais impropícias”.

 

A história é uma aventura marítima, mas a viagem era o modo de Lúcio “Restabelecer seu amor propre”, o que faz o relacionamento amoroso dos poetas, embora não explorado, ser um ponto nuclear da trama, pois foi pela necessidade de reaver o encanto entre eles, que Lúcio e Shyno se lançaram rumo ao desconhecido. Esse era “o único jogo que realmente era importante”.

 

Percebo outro jogo aí em exercício, um jogo de figurações. Vejo Das booty como um discurso que colabora para uma certa imagem do poeta, um retrato de Bruno Tolentino  em diálogo ambivalente com uma autofiguração laboriosamente trabalhada pelo próprio Tolentino. À sua imagem de poeta católico e conservador, são acrescidas a sua mitomania patológica, a sua “hipocondria cosmológica”, a sua paixão homoafetiva e aventureira. Paradoxalmente, saber que muito do mundo que ele nos apresenta não se realizou apenas textualmente torna a narrativa mais fantástica e sua figuração mais múltipla e complexa. Afinal, não é todo dia que se vê dois poetas, amantes, fazendo parte do “grupo mais improvável de traficantes internacionais”.

 

 

PRINGLE, Simon. Das Booty: candomblé, tráfico e poesia. Uma história real. Tradução Pedro Sette-Câmera. São Paulo: É Realizações, 2015.

 

O eu lírico e os outros eus II

Por Nívia Maria Santos Silva

blog

Crédito da imagem: Roman Rockwell

No último texto que produzi para este blog, eu falava do impasse em aceitar o narrador e o eu lírico apenas como elementos formais ou concordar com certa identidade deles com o eu empírico que escreve. Problematizei a questão afirmando que, ao trabalhar a obra tolentiana, reconhecer a identidade entre o eu lírico e o eu do poeta ainda não é admitir uma identidade entre eles e o eu empírico. Como prometi melhores esclarecimentos, vamos a eles.

Eu, o poeta Bruno Tolentino,

Porque nunca me dei com tiranos

Nem com títeres, vivi ao léu,

E perambulei anos e anos

Em território alheio inglês,

Francês, yanque, italiano

Etc&tal.. […] (TOLENTINO, 1995, p. 259)

Se poemas como o “Poema de sete faces”, de Drummond, no qual ele chega a evocar seu nome e o que é associado a um traço de sua personalidade (“Vai, Carlos! ser gauche na vida.”) e como o “Autorretrato”, de Bandeira, no qual ele se descreve (“Arquiteto falhado, músico/Falhado (engoliu um dia o piano, mas o teclado/Ficou de fora”), sugerem uma relação direta do conteúdo do poema com a pessoa empírica que  escreve, seja pelo nome seja pela concordância com a biografia do poeta, no fragmento do poema supracitado, a correspondência parece completa: “Eu, poeta Bruno Tolentino,”. O aposto, além de revelar nome e sobrenome daquele que escreve, nos indica a sua função social, “poeta”, como se o sujeito da enunciação e o sujeito enunciado configurassem uma só persona. Essa mescla confirma-se quando passamos investigativamente do poema para a biografia. Tolentino de fato perambulou “anos e anos/Em território alheio”. Constatações como essa parecem endossar a axiomática frase borgeana: “Toda literatura é autobiográfica”.

O trecho foi retirado do poema “A torre cabocla”, mais precisamente da terceira parte do livro “Os deuses de hoje”, chamada “Na terra provisória”. Essa última seção apresenta tom sugestivamente confessional. Tolentino chegou a afirmar que “Os deuses de hoje” é o “único livro em que, de verdade, falo de mim, sou sempre Eu que estou presente.”. Mas quem é este “eu” presente de verdade? Qual é esta verdade? Ela é possível? Qual seria o “eu” dos demais livros de Tolentino?

Pensar na aproximação entre o sujeito que fala no texto literário e seu autor remete-nos a uma discussão importante para a teoria literária: a questão da representação da realidade pela literatura. Ver a obra literária como um locus no qual se pode depreender uma realidade objetiva, apostar na impossibilidade/dispensabilidade disso ou ainda assegurar a representação como uma reinvenção dessa realidade, são algumas alternativas entre outras já apresentadas por pensadores que se debruçaram sobre o fenômeno literário (Platão, Aristóteles, Barthes, Foucault, Deleuze, Auerbach…). A escolha de um desses caminhos incide, principalmente, sobre o próprio conceito de literatura que se quer defender.

A questão é que todos eles apresentam bons rendimentos em suas controvérsias e a maneira como a realidade é reproduzida/dispensada/negada/reinventada no texto literário parece não se dar de um só modo, mas aparece manifesta de forma variada, tendo que ser estudada caso a caso já que assim como os teóricos, acreditamos que os poetas também ao produzirem sua obra poética se empenham em legitimar um conceito de literatura e lidam com o estatuto da representação de forma dissemelhante.

Em Tolentino, apostamos que a representação do sujeito poético é instituída por meio de um investimento autofigurativo. A divisão entre o eu poético e o eu empírico não se dá por meio de uma identidade inconteste nem de uma polarização dicotômica, mas se encerra em um movimento tripartido, no qual entre eles está a figura do poeta, que, como diria Premat, “é uma figura distinta do eu”. Daí a escolha pelo “Triple self portrait”, de Roman Rockwell, para ilustrar esta postagem. Ele não apresenta apenas três autorretratos simultâneos e em diferentes ângulos, mas vários se considerarmos os estudos presos à pintura que ainda nos traz outros autorretratos que parecem informar suas influências: Durer, Rembrandt, Picasso, Van Gogh. O “eu”do poema tolentiano é esse eu tripartido e fragmentado em várias referências.

Penso que existe um espaço entre a pessoa física do poeta e a sua biografia que é suscetível de ser preenchido pelo empenho do próprio autor na formação de uma imagem de si. A interpretação que traz de si mesmo (“Porque nunca me dei com tiranos/Nem com títeres, vivi ao léu,”) pretende ser uma mediação entre esse eu e o público leitor. É a essa imagem modulada que o eu poético se associa e se revela, o que significa dizer que aproximar o eu poético do eu do poeta ainda não é aproximá-lo do eu empírico. O poeta é ele também uma obra, uma construção ficcional do sujeito que tenta interferir na figuração que a recepção (leitores e críticos) fará de si. No caso de Tolentino, esse investimento não está presente apenas em “Os deuses de hoje”, onde o eu poético promete ser e se apresenta nominalmente como sendo o próprio poeta, mas também em outros como “As horas de Katharina”, no qual o eu lírico é uma freira, ou em “A balada do cárcere”, no qual o eu lírico é um prisioneiro assassino, ou mesmo em “Os sapos de ontem”, no qual o eu satírico se apresenta como um poeta incompreendido e isolado esteticamente.

A autofiguração, que nem sempre é deliberada ou consciente, é a ponte que une a atuação autoral, tanto literária quanto extraliterária, à representação que se faz do autor. Todos esses eus, a freira enclausurada, o prisioneiro e o poeta distante de sua pátria, investem na imagem do exílio (banimento, degredo, desterro), que é recorrente não só em seus versos (“Sei que duro é o exílio e que difícil/a arte de, nos pulsos tendo algemas,/escalar pedra a pedra o precipício.”), mas também em suas entrevistas e biografia (“1964 – Com o golpe militar no Brasil, parte para Europa.”), e acabam por abonar sua imagem de poeta exilado/isolado em seu sentido literal e conotativo. Em outras palavras, esse “eu” representado é, a nosso ver, fruto da gestação de uma autoimagem. Isso é o que chamamos de autofiguração, que não é a representação em si, mas o processo de construção dessa representação que não é definitiva nem estável.

Mais que isso, acredito que, ao apontar constantemente para a figura do poeta não só nos poemas em si, mas também em meio a epígrafes, datas, lugares, prefácios e posfácios, ou seja, ao deixar obsessivamente traços de sua escritura, oferecendo pistas para uma possível figuração, ao mesmo tempo em que tem uma exposição excessiva no campo literário, Tolentino não investe apenas particularmente na construção de sua imagem de poeta, mas de forma mais ampla na recuperação da importância da imagem de autor, colocando-a em evidência, empenhando-se contra o que ele chama de “teorizador ‘aprisionado’ nas ideologias formalistas”. Esse duplo movimento que a autofiguração deixa descoberto é um posicionamento crítico que traz o autor de novo à cena literária e se mostra importante para pensar seu lugar na poesia contemporânea.

O eu lírico e os outros eus I

Por Nívia Maria Vasconcellos

nivia

Durante o exame de qualificação do doutorado, fui indagada se eu estava tratando o jogo entre sujeito lírico e poeta como sendo o mesmo que ocorre na teoria romanesca entre narrador e autor. Por esse ângulo, o eu lírico estaria para o narrador da mesma forma que o poeta estaria para o autor. Considero possível essa aproximação porque tanto o sujeito lírico quanto o narrador surgiram como tentativas de responder a uma mesma pergunta: quem é o “eu” presente no texto literário? Mas a resposta é que essa correspondência não é perfeita, definitiva, nem simples.

Nos estudos das narrativas literárias, são amplamente difundidos o nível ficcional de enunciação, a cargo do narrador, uma entidade ficcional, e o nível não ficcional de enunciação, posto do autor, entidade real, aquele que escreve o romance, a novela, o conto. No entanto esse desmembramento didático entre narrador e autor, apesar de parecer elucidar a questão, não a resolve. Um exemplo que revela a vulnerabilidade dessa teoria são os romances de autoficção. Eles estão aí aos montes para embaralhar tudo novamente. Este blog, inclusive, já postou textos, como Em busca da autoficção , de Davi Lara, que tentam entender a “intromissão da voz autoral” e o esgarçamento “dos limites entre ficção e realidade” presentes nas narrativas autoficcionais.

Em poesia, o imbróglio entre sujeito lírico e poeta segue também um caminho de indefinições e fissuras. Mesmo o lirismo sendo considerado tradicionalmente a expressão da subjetividade, a identidade entre sujeito lírico e poeta não é consensual. Käte Hambuger, em seu livro “A Lógica da criação literária”, lembra que há vertentes da crítica poética que consideram a enunciação lírica como algo meramente formal, uma criação da linguagem que só existe no poema e por ele. Essa negação da subjetividade confronta a ideia mesma de lirismo como exaltação dos sentimentos pessoais e estado de alma, como assume Hegel, e aparece como uma marca da modernidade inaugurada pela despersonalização baudelairiana, conforme Hugo Friedrich. Já Adorno nos diz que “o conteúdo de um poema não é mera expressão de emoções e experiências individuais”. Para ele, essas experiências só se “tornam artísticas” quando “adquirem participação do universal”, ou seja, quando se voltam para o coletivo. Collot, por sua vez, nos diz acerca de uma “ilusão lírica” e da existência de uma alteridade no exercício poético, no qual no ato da enunciação o “Eu é um outro” (Rimbaud), por isso o sujeito lírico estaria “fora de si”.

O que me parece é que a teoria narrativa e a teoria poética estão na mesma via, mas em direções diferentes. Enquanto novas apostas teóricas da narrativa apontam para uma fragilização da ideia de narrador como uma entidade ficcional distinta do autor, os investimentos teóricos da poética, por sua vez, abalam a correspondência, muitas vezes aceita, entre eu lírico e poeta.

Mas o grande impasse pelo qual atravesso para dar minha resposta não se fecha na questão de aceitar o narrador e o eu lírico apenas como elementos formais ou concordar com certa identidade deles com o eu empírico que escreve, o desafio vai além. A obra poética de Bruno Tolentino, objeto de minhas pesquisas, tensiona essa problemática porque nela o estatuto do sujeito real se dissolve, a realidade subjetiva expressa pelo eu lírico remete a outra realidade fingida.

Lara, no citado texto, fala sobre “a construção de uma persona autoral”. A minha percepção é a de que Tolentino, na década de 1990, já se antecipava na construção dessa persona autoral e a levou a níveis surpreendentes. Se narrativas do século XXI trazem o “informe biográfico completo sobre o autor”, como afirma Luciene Azevedo (“O romance e a anotação”), na poesia tolentiana esse “informe biográfico” é ele também invenção. Quer dizer, a experiência do poeta, que coincide com os enunciados poéticos e que é informada por suas cronologias e biografias oficiais, é em grande parte também fantasiada. Em Tolentino, reconhecer a identidade entre o eu lírico e o eu do poeta ainda não é admitir uma identidade entre eles e o eu empírico. O fato de uma porção de seus poemas apresentarem teor narrativo e, com isso, um narrador, agrava ainda mais a situação. Para responder a pergunta, todas essas questões precisam ser melhor esclarecidas, mas isso fica para minha próxima postagem…

A nova Bravo!

Por Nívia Maria Santos Silva

Em agosto, zapeando pela internet, encontrei a notícia: “A revista Bravo! é relançada com plataforma digital e versões trimestrais impressas”. Corri para o link http://bravo.vc/ e eis que encontro um manifesto que continha explicações sobre o novo formato, a aposta e o objetivo da chamada nova Bravo!, a saber: “Bravo! volta para avançar o olhar para as fronteiras do fazer artístico, dar acesso à nova arte, dialogar com os artistas e com o público que consome arte, debater tendências.”. O manifesto ainda anuncia que “O nosso trabalho diário será o da curadoria e seleção do que melhor se produzir no campo da cultura, no Brasil ou além.”.

Formada principalmente por dossiês monotemáticos multimidiaticamente apresentados, a Bravo! retorna em outro suporte, com outro visual e outra equipe editorial e de jornalistas, mas mantendo a pretensão de ser referência “do melhor”, discurso que a Bravo! já enunciava desde sua criação por Luiz Felipe D´Ávila, em 1997.

À época de seu lançamento, com o apoio da Lei 8.313, também conhecida como A Lei Rouanet, a Bravo! contava com as cotas do Banco do Brasil, Pão de Açúcar, Iguatemi, Banco Real e da Volks, suporte financeiro necessário para atender às ambições da revista que chegou às bancas com um projeto gráfico sofisticado, que incluía um alto padrão editorial. Rodada em quatro cores, em papel couchê, cada edição apresentava em média 150 páginas, custava em média 120 mil reais e tinha uma circulação que chegava a 45 mil exemplares.

Com o pretexto de ser uma agenda cultural, desde aí a sua tendência à curadoria, apresentava também espaço para o ensaísmo e a crítica, apresentados em colunas como “Ensaio!”, “Notas”, “Crítica” e “Livros”, assinadas por nomes controversos como Ariano Suassuna, Reinaldo Azevedo, Olavo de Carvalho, Daniel Piza, Sérgio Augusto, Fernando Monteiro e Bruno Tolentino. De 1997 a 2003, pertenceu à editora D’Ávila, período no qual apresentava uma linha editorial pautada, conforme seu primeiro diretor de redação, Wagner Carelli, na separação entre cultura e entretenimento. Suas páginas tratavam não só da literatura, mas também de cinema, teatro, música, dança e, principalmente, artes plásticas, ressaltando, sobretudo, os parâmetros da cultura erudita.

Seu segundo diretor de redação, João Gabriel Lima, chegou a dividir a existência da revista Bravo! em quatro fases, a primeira sem abertura para o entretenimento e as demais com uma linha editorial mais flexível, principalmente após ter sido comprada pela editora Abril. A última Bravo! em versão impressa mensal foi publicada em outubro de 2013, número 192, com José Saramago na capa.

Três anos depois, com a licença da Abril Comunicações S.A. e contando com o apoio do Instituto de Políticas Relacionais, uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, a Bravo! volta sob a direção visual de Henk Nieman, direção de criação de Peèle Lemos e Yentl Delanhesi e com os publishers Helena Bagnoni e Guilherme Werneck.

Dispondo de vídeos, áudios, links, blog e utilizando uma linguagem mais própria para web, a nova Bravo! é uma revista digital que explora as possibilidades das ferramentas que a internet oferece. Ela possui, inclusive, um serviço de newsletter por meio do qual continua a sua marca de nascença que é ser também uma agenda de artes e espetáculos: o “Bravo! Indica”. E a Bravo! indica museus de todo o mundo, como os de Málaga e Madri, sugeridos no Newsletter #11 e apresentações artísticas em geral como mostras de cinema, exposições, espetáculos de dança, sobretudo da cena cultural brasileira, mais especificamente São Paulo.

Seus dossiês monotemáticos são apresentados em forma de temporada, como as séries de TV. A cada 15 dias, um novo episódio é lançado. Cada temporada é composta por seis episódios publicados ao longo de três meses. Nesse formato episódico, não há muito espaço para a opinião e para o ensaísmo, que eram outra marca da primeira Bravo!. O investimento maior da nova Bravo! parece ser a circulação da informação cultural por meio de uma hipertextualidade que conecta o leitor-navegador a entrevistas, a artes visuais, a músicas…

Por oferecer acesso gratuito ao site, a nova Bravo! tem o desafio de realizar parcerias para que o projeto continue sendo viável, como a que fez com Spotify. Tendo o Facebook como uma de suas principais plataformas de divulgação, com 14.573 curtidas, a Bravo! tem como outro desafio conseguir mais leitores-seguidores.

Diante de um campo no qual os jornais impressos diminuíram o espaço ou descontinuaram seus suplementos culturais, como o Prosa&Verso, e as revistas especializadas precisam cada vez mais de auxílios governamentais, como a Reserva Cultural (cotas de assinatura compradas pelo governo), para se sustentar, a internet se tornou o terreno mais atrativo para o desenvolvimento do jornalismo cultural.

A renovada revista Bravo! vem nessa esteira, mas vai investir também numa publicação trimestral impressa. A temporada#0, chamada Incertitude, por exemplo, já foi finalizada e lançada em forma impressa na última terça-feira, dia 13 de dezembro, em São Paulo. Com certeza, uma edição de colecionador. Agora, uma próxima temporada vem por aí com mais produção de conteúdo cultural para ler, ver, ouvir, assistir e consumir, é claro. Se ela conseguirá ser uma mediadora da cultura só o tempo dirá.

Um projeto editorial para Bruno Tolentino

Por Nívia Maria

A balada do cárcere

Bruno Tolentino

1ª ed. comentada.

Record, 2016.

Mais de 20 anos depois do primeiro lançamento, o livro A balada do cárcere de Bruno Tolentino conta agora com uma edição comentada. O título é uma alusão à obra quase homônima de Oscar Wilde, A balada do cárcere de Reading, e também foi produzida durante e a partir da experiência da prisão vivida pelo autor.

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Nesta nova edição, a capa de Victor Burton, produzida sobre detalhe de A degolação de São João Batista de Caravaggio, foi substituída pelo design de capa de Marcelo Girard, uma decisão que muito contrastou com os modelos de capa dos livros de Tolentino, geralmente, com referências a obras pictóricas consagradas (como ocorre em O mundo como ideia e Imitação do amanhecer). Quem conhece outras obras tolentianas pode estranhar o tom menos presunçoso da nova capa, suas cores e fontes, mas seu aspecto menos solene é uma das apostas editorias para aproximar mais a obra de Tolentino do leitor contemporâneo.

Neste novo lançamento, há um cuidado, sobretudo didático, com o leitor. A começar pela nota introdutória e explicativa dos organizadores, seguida pelo texto “Escrito nas estrelas” de Érico Nogueira. Já publicado anteriormente em formato de artigo na revista CESP, sob o título de “Bruno Tolentino e a poética classicizante: o caso de ‘A balada do cárcere’”, esse texto de Nogueira aparece com algumas alterações e funciona como um “guia” para a leitura da obra. Podemos notar as intitulações diferentes, agora mais diretas, para cada uma de suas seções: “Classicismo pós-cabralino”, por exemplo, vira “A poética”. É possível perceber também o acréscimo de uma parte inicial, chamada “O cárcere”, na qual Nogueira contextualiza os leitores com pormenores sobre a prisão de Tolentino, informando-lhes as circunstâncias a partir das quais o livro foi escrito. Seus parágrafos finais também foram modificados, ganhando um tom mais pessoal.

Além disso, há muitas notas de Juliana Pasquarele Perez e Jessé de Almeida Primo, as quais intentam auxiliar o leitor a atravessar o entroncamento de referências a poetas, músicos, poemas, libretos, mitologias presentes em cada página. Em 2010, a Record já tinha recorrido a expediente semelhante ao publicar uma edição comentada de As horas de Katharina. É um movimento que relança a obra, recolocando-a no mercado e direcionando-a “tanto aos leitores que desejam conhecer a obra de Bruno Tolentino quanto aos que conhecem e querem aprofundar sua leitura”, como afirma a nota dos organizadores, Guilherme Malzoni Rabelo, Martim Vasques Cunha e Renato José de Moraes.

A nova publicação ainda manteve o prefácio e os posfácios escritos por Tolentino para o livro de 1996. Por meio deles, o leitor encontra um tanto das polêmicas nas quais Tolentino se envolveu. Não à toa, Érico Nogueira situa A balada do cárcere “como a mais consciente resposta do autor” à sua querela com Augusto de Campos. No prefácio, “Da quod jubes, Domine”, por exemplo, o autor, além de falar sobre o “number-maniac”, que inspirou sua criação ficcional, se encarrega também de explanar sobre “a distância expressiva entre o texto de um poema e as palavras de uma canção”.  Ideia reforçada pelos dois textos que integram o posfácio da edição anterior, “Dj & Déjà vu” e “As joias e as cartas de amor”, publicados no Apêndice desta nova edição, no qual podemos encontrar também um glossário, referências bibliográficas, mais notas e observações.

Com um texto de orelha que coloca Tolentino no “topo da modernidade literária brasileira”, a edição comentada de A balada do cárcere é um exemplo do esforço empreendido por seus organizadores, não só para elucidar mais a obra tolentiana e seu projeto poético, mas, sobretudo, para que novos leitores possam ser formados, ou melhor, “para que o leitor descubra a poesia de Bruno Tolentino”.

A apresentação de Érico Nogueira ao livro pode ser lida na íntegra aqui: http://www.record.com.br/images/livros/capitulo_3NKiAt.pdf

Quem quiser conhecer melhor a verve polêmica de Bruno Tolentino pode acessar: http://www.inventario.ufba.br/16/05%20Bruno%20Tolentino.pdf

Um sítio para chamar de seu

Por Nívia Maria Santos Silva

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Para aqueles que não podem se deslocar até o CEDAE da UNICAMP para consultar o Fundo Bruno Tolentino, é bom saber que, desde 2012, o poeta carioca tem um sítio para chamar de seu. Lá podem se inteirar sobre muito de sua vida e de sua obra, assim como de sua fortuna crítica, entrevistas e notícias. O site https://brtolentino.wordpress.com/, editado por Leonardo Oliveira, é muito bem organizado e apresenta um conteúdo rico que vai de uma galeria de fotos até as produções críticas do poeta e sobre o poeta.

Na página PRODUÇÃO CRÍTICA E TEÓRICA, há muitos links que nos direcionam para os textos que Tolentino escreveu para veículos diversos, sobretudo, para a Revista Bravo!, na qual atuou com frequência, principalmente, de 1997 a 2000. Entre ensaios e resenhas (como “A lorota de Ipanema”, na qual criticava o lançamento do livro A teus pés, polemizando, já em 1998, com a agora homenageada pela FLIP, Ana Cristina Cesar), encontramos as transcrições de suas palestras e das três últimas aulas de Bruno Tolentino, ministradas em maio de 2007, menos de um mês antes de sua morte, editadas por Guilherme Malzoni Rabello sob o título de “Do enigma ao mistério”.

A FORTUNA CRÍTICA também é expressiva, contando com textos que expressam críticas nem sempre positivas sobre o poeta como o “A história como múmia: sobre a poesia de Bruno Tolentino” ou “Tolentino recusa a modernidade e pregacontrareformapoética”, ambos de Marcos Siscar. Além disso, há links para dois textos publicados aqui no Leituras Contemporâneas: “Bruno Tolentino: uma ideia de poesia” e “Os Sapos de Ontem: a polêmica como tomada de posição, o que mostra como os responsáveis pelo sítio estão atentos ao que vem sendo produzido sobre a produção do autor.

Não poderia deixar de indicar as ENTREVISTAS. Está lá na íntegra a controversa entrevista concedida à revista Veja em 1996, “Quero meu país de volta”. Convido também a não sair de lá sem dar uma passada pela, como o próprio Tolentino dizia, “cinematográfica” cronologia, que, com certeza, sofrerá mudanças com o lançamento de sua biografia, ainda sem data prevista para o lançamento e a cargo de Pedro Sette-Câmara.

Mas imprescindível mesmo é a página de POESIA. Lá, Leonardo Oliveira teve o cuidado de colocar cada uma das obras de Tolentino, as publicadas somente no exterior ou mesmo Infinito Sul (1957) que não costuma aparecer na bibliografia oficial do poeta. É possível também clicar sobre o nome dos livros e conhecer a capa, o número de páginas, os prêmios que recebeu e, mais importante, o sumário que dá uma ideia do conteúdo de cada obra.

O sítio é todo interessante, apresenta, de fato, um painel geral para os curiosos e para os pesquisadores, para os que conhecem ou pretendem começar a conhecer o poeta Bruno Tolentino. Quando tiver navegando por aí, então, faz uma visita: https://brtolentino.wordpress.com/.