Arquivo da categoria: Autobiografia

A ilusão biográfica persiste?

João Victor Matos

Ian Wallace, Contact Sheet for L’Après-Midi, 1977/2012

Para dar conta do modo como o interesse pela autobiografia está presente mesmo em nichos mais comerciais, escolhi investigar o livro Rita Lee: uma autobiografia, escrito pela cantora Rita Lee e lançado no ano de 2016.  Após o sucesso estrondoso de sua primeira autobiografia, a cantora anunciou recentemente o lançamento de uma outra autobiografia, que se concentra na jornada da cantora durante o tratamento do câncer de pulmão diagnosticado em maio de 2021 e promete ser um novo best-seller.

Em Rita Lee: uma autobiografia, a cantora se propõe a construir um relato que abarque toda sua vida: infância, trajetória musical e algumas informações sobre sua vida privada. Não há nada de “incomum” até aqui, considerando o entendimento mais tradicional do que significa contar uma vida, que aparece escrita sempre em primeira pessoa e, no caso desse relato, é documentada por muitas fotografias.

No entanto, o projeto editorial apresenta uma curiosidade. Ao longo do relato, encontramos “correções” ao texto por meio de inserções de um elemento gráfico que funciona como uma espécie de personagem tratado na autobiografia como “Phantom”, a representação de um fantasma que interrompe o relato para corrigir as informações dadas na própria autobiografia. No final do volume, o leitor pode identificar esse “personagem”. Trata-se do jornalista e editor de livros Guilherme Samora, apresentado como grande conhecedor da trajetória profissional e pessoal da cantora.

“Não se assuste, sou Phantom, sabe como é. Sabemos que algumas “autobiografias” de artistas são obras de ghost writers. A autora deste livro, entretanto, fez questão de escrever tudo. Sabemos, também, que a memória dela pode trair. E que sua autocrítica (também conhecida como ‘chatice com ela mesma’) pode interferir ou, quem sabe, fazer com que se esqueça de alguns fatos. Então, vou assombrar este livro desembaralhando umas cronologias, apontando dados deixados de fora…”

Mas que interesse esse elemento tem para a investigação sobre a autobiografia? A importância desse recurso no livro chama a atenção não só pela grande quantidade de vezes em que aparece no texto, mas também por supostamente “desmentir” a autora quando necessário, retificando o retrato autobiográfico que se constrói. 

Para meus propósitos investigativos, essa intervenção ajuda a especular sobre a representação da autobiografia em nichos mais comerciais, mas aponta também para um impasse decisivo hoje quando pensamos a tensão entre autobiografia e ficção, pois podemos pensar que as correções feitas pelo jornalista retificam as imprecisões da memória, alinham os fatos, capturam a “verdade” do que foi vivido. 

Poderíamos ler aí, então, um exemplo persistente da crença na “ilusão biográfica”, tal como descrita por Pierre Bourdieu. Segundo o sociólogo francês, o senso comum acredita que a narrativa de uma vida pode organizar um conjunto coerente e orientado de acontecimentos, presentes no relato a partir de uma ordem cronológica, visando estabelecer uma ordem lógica “coerente” à vida contada.

Por outro lado, ao longo da narrativa, Rita Lee reconhece que o que é contado está contaminado por seu olhar, é modificado pela memória, reconstruído pela narração da própria vida: “Com minha memória já queimada pelos incêndios existenciais que eu mesma ateei, dificilmente lembraria dos bailes da vida onde dancei não fosse meu ‘Colecionador de Mim’, Gui Samora”.

É possível ler aí também uma sugestão de que Rita Lee suspeita da própria capacidade de reconstituir uma inteireza em relação a sua própria experiência, colocando em xeque, portanto, a “ilusão biográfica” (ainda que a reafirme ao solicitar a ajuda de seu “Phantom”). No entanto, segundo o também francês Philippe Lejeune, os eventuais deslizes não chegam a comprometer a noção de “pacto autobiográfico” e a transformar a autobiografia em ficção. Ou seja, para Lejeune autobiografia e romance são gêneros distintos. Assim, apesar das correções de Samora, ou melhor, por causa delas, o pacto de veracidade está mantido com o leitor.

Mas há outro elemento de interesse para a investigação sobre a condição dos textos autobiográficos. Guilherme Samora reconhece que o livro foi escrito a “quatro mãos”. Pode-se considerá-lo, então, ainda uma autobiografia? É interessante notar como as questões presentes em um produto autobiográfico que se tornou best-seller também fazem parte das tensões que marcam as relações entre a autobiografia e a ficção em muitas outras obras contemporâneas.

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Entre a autoficção e a antificção

Antonio Caetano

Créditos da imagem: Centro de pesquisa e formação. Sesc São Paulo

A autoficção traz consigo uma ambiguidade capaz de tensionar as noções de ficção e não-ficção, autor e narrador. Gostaria, então, de refletir brevemente sobre algumas considerações feitas por Manuel Alberca em seu texto “De la autoficción a la antificción – uma reflexión sobre la autobiografía española actual”.

Em seu ensaio, Alberca enumera cuidadosamente as razões que tornaram a autoficção um estilo narrativo de muito sucesso na Espanha, assim como suas suposições sobre o que a mesma pode representar para a reconfiguração do gênero literário da autobiografia, em especial na constituição de um estilo narrativo autobiográfico que o teórico chama de antificção.

Para ele, a autoficção “foi um simples desvio da autobiografia ou uma fase intermediária de seu caminho em direção ao reconhecimento literário e à realização criativa”. Por isso, Alberca adota o termo “antificção” para obras nas quais os autores contam suas vidas sem inventar, sem preencher os vazios com elementos fictícios, mas reconhecendo-os como fundamentais para a narrativa. Nesse formato, os momentos da vida que não podem ser recuperados fielmente, não são simplesmente complementados com a imaginação, mas reconhecidos como vazios fundamentais para a continuidade da narrativa e sua possibilidade de contar e não como apenas a possibilidade de utilização da ficção para preencher as falhas da memória.

Observando como Alberca expõe suas ideias, principalmente sobre a autobiografia, e em como esse é um gênero injustamente subestimado e ignorado pela academia, me flagro inclinado a considerar algo que indicaria uma forte predileção do teórico em relação a um gênero em detrimento do outro (autobiografia em detrimento da autoficção), a ponto deste deslocar a autoficção da suposta posição de gênero textual para a posição de “fase intermediária” de experimentações com a provável finalidade de estabelecer reconhecimento literário à autobiografia. Para Alberca, inclusive, diante da impossibilidade de se narrar a vida fidedignamente, os autores de autoficção se entregam e se deixam levar pela ficção, como se ela deturpasse o discurso autobiográfico, é como se os autores quisessem ser mais “literários” que autobiográficos, na opinião do crítico espanhol.

Minha principal questão é, então, refletir se devemos considerar a “parte ficcional” do texto como demérito do relato autobiográfico, ou não.  

Alberca cita alguns exemplos da narrativa espanhola que poderiam ser considerados antificção, tal como o crítico propõe. Em Visión desde el fondo do mar, de Rafael Agullol Murgadas, o narrador escreve para lidar com a morte do pai. Trata-se aí de uma experiência autobiográfica. Sobre o livro, Alberca afirma que “Estes são tópicos [referindo-se à doença e à morte] que não podem ser levados na brincadeira ou tratados com frivolidade.

Mas será mesmo? Estaria o crítico supondo que a ficcionalização de uma experiência dolorosa como a morte ou o luto de um ente querido implicaria em “brincadeira”, consistindo em um demérito desonroso?

Se, como afirma Alberca, a ficção não é uma “verdade superior”, acredito que tampouco deva ser considerada fácil ou intencionalmente como mentira, ou como uma brincadeira sem seriedade, e sim como uma forma singular de verdade, como parte do processo íntimo e criativo de narrar a si mesmo. A ficção pode ser tão reveladora da verdade de um sujeito que se ficcionaliza, quanto podem ser os elementos factuais de sua história. 

Marguerite Duras: autobiografia à sombra da autoficção

Ismael Mariano

Crédito da imagem: Marguerite Duras: MD, 2013.

Marguerite Duras escritora francesa nascida na antiga Indochina (atual Vietnã) nasceu em 1914 e morreu em 1996. Perdeu o pai muito cedo e sua mãe, ingenuamente, investiu todas as economias da família em terras improdutivas, sujeitas à inundações constantes. Tinha dois irmãos, o mais velho, odiado e cruel; e o mais novo, frágil e dócil. A infância pobre, quase miserável, na colônia, a “loucura” da mãe, os dois irmãos, a força do mar, todos esses elementos biográficos estão presentes em sua obra.

O primeiro investimento veio com o livro Un barrage contre le Pacifique (1950), que narra a luta inglória de sua mãe para tentar salvar suas terras contra as forças do Oceano Pacífico. Em O Amante (1984), livro base de nossa pesquisa, os temas acima citados retornam, mas sobre outras nuances. Mais de três décadas depois, Duras resolve contar mais sobre sua história, mas pela primeira vez assume o pronome “eu”, muito embora, em alguns momentos do livro o pronome deslize para a terceira pessoa, “ela”.

Nas primeiras páginas do livro Duras escreve “A história de minha vida não existe. (…) Nunca há um centro, uma linha.” Podemos entender essa vida “inexistente” pelo fato dela nunca ter sido contada, escrita; como bem assinala uma de suas comentadoras Leyla Perrone-Moisés. Segundo ela, o que Duras pretende contar “é um segredo, um fato recalcado”.

Mas seria possível pensar em Duras como uma escritora que experimenta brincar com os limites entre a biografia e a ficção, arriscando-se à autoficção? É esse, justamente, o cerne do problema da pesquisa, a engrenagem que moverá a investigação de meu trabalho final do curso de graduação que quer considerar as tortuosas (e muitas vezes contraditórias) teorias que problematizam a autobiografia e a autoficção. A pesquisa pretende se ater à investigação deste limiar e não apenas a catalogar a obra em um dos dois termos mencionados. Queremos instigar, provocar, convidar a uma reflexão sobre o autobiográfico e o autoficcional analisando O Amante, obra de Duras que a crítica, apesar de notar a tensão com a presença de dados biográficos, logo acomodou no terreno da “pura” ficção.

Um eu, uma vida e o romance autobiográfico

Por Fernanda Vasconcelos

Camille Norment

Crédito: Camille Norment

As narrativas romanescas em escritas em primeira pessoa continuam sendo desafiadoras para os críticos de literatura. Muitas delas trazem na ficha catalográfica a designação de “romance autobiográfico” exigindo do crítico uma reflexão sobre o gênero na literatura contemporânea, pois a designação traz à tona questões relacionadas à forma da autobiografia, à sua relação com a tradição e ao embate com os gêneros literários. Podendo muitas vezes assumir uma forma híbrida, a dificuldade maior da classificação parece residir no que Costa Lima afirma, em Sociedade e discurso ficcional, como tendência dos escritos autobiográficos a se inclinarem ora para o discurso histórico, ora para o ficcional.

Porém, tão importante quanto essa oscilação entre essas duas posições discursivas, é a disposição de leitura diante dos gêneros: se diante do discurso ficcional o leitor sabe previamente que as informações partilhadas não são sobre fatos ocorridos, mas simulacros construídos com intenções específicas, o mesmo não ocorre com a autobiografia. Assim, Costa Lima, enfatiza a importância da experiência do leitor que lhe permite distinguir o papel concedido ao eu nessas espécies discursivas diferentes, pois o tratamento dado ao eu no texto esclareceria a diferença entre o gênero ficcional e a autobiografia. Tratando a autobiografia como gênero híbrido, o teórico afirma que em alguns casos, o material autobiográfico oscila entre o modo de expressão auto-referencial, que caracteriza o gênero, e uma impossibilidade de auto-representação do sujeito que diz eu, pois esse eu lida com a impossibilidade de converter a si mesmo no presente prometido pela linguagem.

Pensar a hibridez do gênero autobiográfico no contexto contemporâneo (o embate entre o ficcional e o documental na exposição da vida do sujeito que se conta) remete-nos à “crítica do sujeito” tomado como um todo íntegro, pois desde Montaigne não acreditamos mais ser possível alcançar qualquer verdade imediata e original através de movimentos espontâneos de linguagem. Se a unidade do sujeito cartesiano há tempos foi contestada, se a teoria do inconsciente fragmentou o sujeito e mostrou que ele não conhece a si mesmo, se a linguagem se tornou opaca e objeto de estudo assim como o próprio sujeito, como manter um compromisso com a tarefa de expressar a vida a si mesmo?

Mesmo depois de todas as contestações à expressão do eu, enfrentamos o que a crítica argentina Beatriz Sarlo chamou de uma “guinada subjetiva” para nomear a primazia do subjetivo na esfera pública. Considerando esse contexto, interessa-nos pensar o que os romances autobiográficos oferecem ao leitor não apenas em relação à exposição de um eu que se conta, mas também enquanto forma.

Acreditamos que o embate em relação ao estatuto epistemológico dos gêneros autobiográficos (ficção? Não ficção?) continua uma longa história que diz respeito às fronteiras discursivas. No contemporâneo, a problematização da autobiografia se complexifica, uma vez que o estatuto da própria ficção parece estar se transformando, indo ao encontro de gêneros não ficcionais, pois cada vez mais nos deparamos com narrativas que se propõem a pensar uma vida, a dar forma a ela, tal como observa Reinaldo Laddaga, em seu Estética de Laboratório, quando comenta romances centrados na constituição simultânea de uma forma literária e de uma forma de vida nos quais materiais de caráter documental aparecem dispostos no corpo do texto.

Portanto, pensar a autobiografia no cenário contemporâneo exige identificar o papel oferecido ao eu e os embates provocados pela redefinição das fronteiras entre o ficcional e o não ficcional. Assim, pensar a relação entre o modo de se problematizar a própria forma e a construção de uma vida nos romances escritos em primeira pessoa, como o tratamento do eu vinculado às experiências do autor nos romances autobiográficos, pode ajudar-nos a reimaginar a vida e a forma de contá-la no século XXI.

Autoficção: Autobiografia envergonhada

Por Luciene Azevedo

Créditos: Inta Ruka, Rihards Stibelis, 2006.

 

O último romance publicado por Silviano Santiago, o excepcional Machado,  torna mais interessante o investimento recente que o autor faz na direção da autoficção. Se a brincadeira séria com o hibridismo dos gêneros não é novidade na poética de Santiago, o tateio mais recente que começa com a publicação de Mil Rosas Roubadas parece oferecer uma reflexão profícua para o pesquisador interessado nas artimanhas das formas narrativas mais recentes.
O pacto autoficcional costuma submeter o leitor, senão a uma experiência propriamente paradoxal, certamente ambígua, exigindo-lhe a complacência para compartilhar dois protocolos de leitura, pois as narrativas autoficcionais mercam ao mesmo tempo com o conhecimento biográfico que temos do autor e com a sugestão de que se inventa ali, no jogo narrativo, uma personagem de ficção. Esse paradoxo pode ser percebido também na denegação expressa por muitos autores que se arriscam no hibridismo autoficcional, mas rejeitam o acolhimento do termo para o que estão escrevendo.

Comentando o jogo de esconde-esconde que se manifesta na ambiguidade do pacto de leitura de textos autoficcionais, Manuel Alberca afirma que há textos que preferem escamotear a referência biográfica ao denegar a identidade nominal entre autor e personagem/narrador, camuflando o dado autobiográfico e configurando, dessa forma, o que chama de um “autobiografismo escondido”.

Segundo, Alberca, “a autoficção estabelece um estatuto narrativo novo”, não pode ser confundida com a autobiografia, nem tampouco com o romance autobiográfico, movendo-se na direção de “uma maior indeterminação, pois sua aparente transparência autobiográfica nos deixa às vezes inertes em relação à sua interpretação”.

Na condição de autor e professor de literatura, há algum tempo Santiago vem explorando a fronteira entre os gêneros autobiográficos e ficcionais, tendo sido, inclusive, um dos precursores no Brasil da abordagem acadêmica sobre o termo autoficção.  Acompanhando as resenhas sobre o livro e as entrevistas concedidas pelo autor por ocasião do lançamento de Mil Rosas Roubadas, ficamos sabendo que o Zeca biografado pelo narrador sem nome é Ezequiel Neves, produtor musical, morto em 2010 (episódio e data  constam da narrativa) e  amigo de longa data de Silviano Santiago.

Mas na narrativa, tanto a homonímia entre o personagem, o narrador e o autor, quanto os demais operadores capazes de estabelecer a relação biográfica entre narrativa e vida, parecem denegados. A homonímia desaparece por trás do anonimato do narrador que apresenta-se como “professor e pesquisador”, tal como Silviano Santiago, mas de história do Brasil.

Assim, se recorremos à definição de Lejeune, parece que estamos diante de um caso clássico de romance autobiográfico: “Chamo assim todos os textos de ficção em que o leitor pode ter razões de suspeitar, a partir das semelhanças que acredita ver, que haja identidade entre autor e personagem, mas que o autor escolheu negar essa identidade ou, pelo menos,  não afirmá-la”.

Se a definição parece se encaixar como uma luva à narrativa, por que parece pairar na apresentação material do livro e na própria dicção textual uma resistência ao duplo pertencimento da inscrição narrativa, afirmando-se tão somente como romance, cumprindo à risca os dois aspectos do pacto romanesco tal como preconizado por Lejeune, a saber a não identidade entre autor e narrador e o atestado de ficcionalidade garantido pela evocação ao gênero romance estampado na capa do livro? E por que, ainda assim,  fora do espaço textual, na performance pública do escritor, nas entrevistas, Santiago não esconde o mote biográfico do livro?

O jogo ambíguo é matéria de digressão e alimenta o caráter metadiscursivo da narração, já que a objetividade do propósito de escrever a biografia do amigo deixa-se contaminar: “a imaginação me inspira tanto quanto a observação”.

O “estilo pé-cá-pé-lá”, tal como o nomeia o narrador, obedece “de maneira simultânea a dois movimentos aparentemente contraditórios: urgência de expressão e necessidade de ocultação”, como Alberca caracteriza o movimento narrativo autoficcional. A dicção de errata pensante que desacredita a pura evocação ao biográfico como suficiente para dar conta do “emaranhado subjetivo”, da “altitude complexa [da] personalidade humana, no entanto frágil” de Zeca, passa, então, a apostar todas as fichas na imaginação “Estou a escrever romance, reconheço. Adeus, biografia.”, conforme podemos ler no livro.

Mas por que a afirmação exaustiva do pacto ficcional, se também há marcas espalhadas dentro e fora do texto que “abre[m] caminhos e constroe[m] intencionalmente pontes entre a esfera ficticia e o romance e sua esfera pessoal”, como afirma Alberca analisando obras da literatura espanhola?

Arrisco uma resposta: também os autores são refratários à contaminação da ficção pelos gêneros autobiográficos, mesmo aqueles que se inscrevem nesse duplo pertencimento. A ficção dignifica a narrativa em primeira pessoa, retira-lhe o caráter envergonhado de mera confissão. Doma e subjuga a intimidade. Reage com indignação e troça à sanha de autenticidade do leitor, sua vontade de escrutinar os mais comezinhos detalhes de uma vida banal que se oferece em relato. Oferece-lhe um tapa com luva de pelica: em lugar da autobiografia, romance. Por vezes, se esquece que também é possível cultivar um leitor exigente  na ambiguidade, na ambivalência, autobiografia e ficção. E embora ambas estejam presentes na narrativa de Santiago e o narrador desenhe como leitor implícito uma “recepção vigilante, inteligente, desconfortável, sempre no fio da pergunta: Ele é eu?”, a resposta negativa a essa pergunta (não, “ele não é eu”, leitor hipócrita, trata-se de um romance”) parece se sobrepor à ambivalência do autor e personagem serem e, ao mesmo tempo, não serem, a mesma pessoa, recusando o jogo intelectual proposto pela autoficção.

Karl Ove e sua vida

Karl Over Knausgard- Revista Mapa ed. 1 – 2013

Marcos Torres

Recebi duas edições da Revista Mapa, de Curitiba(ed.nov/dez 2013 e ed. jan/fev 2014), uma revista bimestral, que pode ser enviada gratuitamente a todos que escreverem para os editores solicitando a publicação. A reportagem que mais me chamou atenção no primeiro número da revista diz respeito ao mais recente fenômeno mundial de vendas, o norueguês Karl Ove Knausgard.

Karl Ove já vendeu mais de meio milhão de livros, superando o volume de vendas de muitos escritores dentro do mercado americano, inglês ou alemão. Mas a que será que se deve tamanha repercussão? A publicação do primeiro volume, além de um mal-estar familiar generalizado, rendeu a Karl Ove um processo judicial pelo uso de detalhes biográficos expondo a família Knausgard aos holofotes da mídia que quis investigar as figuras de carne e osso por trás do relato.

Não deixa de ser surpreendente também o fato de que corre o boato que as empresas na Noruega foram obrigadas a instituir os chamados “dias sem Knausgard”, proibindo os funcionários de lerem ou comentarem durante a jornada de trabalho o livro de Karl Ove.

Mas o mais interessante é a tensão criada pela narrativa entre vida e ficção. Tematizando a saga autobiográfica do autor (seis volumes, um total de 3600 páginas, cujo primeiro volume intitulado A Morte do Pai já foi publicado no Brasil pela Companhia das Letras, o texto de Irinêo Neto traz elementos importantes para pensar a produção literária contemporânea. Além de retomar as inquietações a respeito da noção de gênero literário e suas formas cambiantes, fala-se na imbricação entre vida e obra, entre realidade e ficção e aposta-se que Karl Ove propõe a inversão do paradigma do pacto autobiográfico conforme sustentado por Philippe Lejeune. Para Lejeune, o leitor deveria aceitar o pacto de leitura conforme o gênero literário apresentado pelo autor, mas Karl Ove parece inverter ou propor outro pacto e pede para o leitor decidir em qual gênero seus livros devem se encaixar: autobiografia ou ficção?

Vale a pena arriscar um palpite nessa discussão, pois depois da leitura da reportagem de Irinêo Netto e de A Morte do Pai de Karl Ove você vai se dar conta de que alguma coisa está mudando em relação àquilo que, até há bem pouco tempo, chamávamos de ficção.

NETTO, Irinêo Baptista. Ele confia em você. Revista Mapa, Curitiba, p.
4-9, nov/dez 2013.