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O retorno do autor e a volta à biografia

Carolina Coutinho

Créditos da imagem: Sally Mann, “A Thousand Crossings,” “The Turn,” 2005, Larry Mann, the photographer’s husband, is in the foreground.

No post anterior, comentei um pouco a respeito da minha experiência no estágio docente que estou realizando neste semestre. Um dos aspectos que nos propomos a abordar nas aulas foi a conexão entre a maior incidência das escritas de si no presente e a transformação da noção de sujeito.

Klinger propõe um “retorno” do autor, figura que havia sido sepultada no contexto estruturalista. Como se sabe, Barthes foi o grande nome desse momento. Em “A morte do autor”, Barthes adere à tendência de recalcar o autor para valorizar o leitor e a linguagem, rechaçando a figura do autor empírico, suas manifestações sobre a vida, sobre os entornos da obra, da “vida de escritor”. Assim, a rejeição à existência biográfica do autor, a suas “opiniões” sobre a própria obra, também colocava de uma vez por todas, assim se desejava, uma pá de cal na possibilidade de que o autor atuasse como uma espécie de farol privilegiado para a “decifração do texto”.

Contudo, Barthes revisa essa proposição em alguns de seus textos posteriores. É no segundo curso de A preparação do romance, após a publicação de Roland Barthes por Roland Barthes, que Barthes dá corpo ao retorno do autor. Já aí, nessa espécie de autobiografia ensaístico-romanesca, o autor fala de si e tece teorias a partir de diversas formas textuais (fragmentos, fotografias, episódios, reflexões…) para declarar: “Tudo isto deve ser considerado como dito por uma personagem de romance”.

Mas é nas notas de preparação do curso que Barthes se mostra mais interessado em ler a vida do que a obra de alguns escritores, pois está mais envolvido em compreender os hábitos e condições necessárias para a rotina de escrita, recuperar os “planos de vida” que os grandes escritores, como Flaubert e Proust, traçaram enquanto estavam escrevendo. Com essa junção entre vida e obra, Barthes deseja uma nova prática de escrita, uma Vita Nova. Nesse sentido, o “retorno ao autor” é uma “volta à biografia” e a preparação é o laboratório que gesta uma nova forma que quer explorar uma espécie de “nebulosa biográfica”.

Ao anunciar que talvez já fosse possível observar uma mudança em movimento (em si mesmo? em seu próprio presente?), Barthes diz “ver um pouco como certa transformação do Biográfico está em vias de intervir”.

Sabemos que o desejo de escrever uma nova forma (de escrita e de vida), o romance que prepara durante o curso, não se concretizou. Seria possível pensar que Barthes, apesar de seu desejo, luta ainda contra uma interdição contra o retorno do autor, do sujeito, da vida? E se for assim, poderíamos pensar que o movimento de transformação que Barthes vislumbrou em meio às suas considerações sobre a preparação do romance que desejava escrever, ou seja “certa transformação do biográfico”, encontra seu momento propício agora, no início do século XXI?

A anotação e o romance

Carolina Coutinho

Créditos da imagem: Haiku on the ceiling at Le Matin

No meu post anterior, comentei sobre a possibilidade da prática da anotação pelos escritores ser reconhecida como mais do que um auxílio ao processo de escrita literária. 

Entendemos a anotação como uma espécie de esboço, de preparação para a escrita literária, como um conjunto de notas descontínuas que vão elaborando uma estrutura para a redação definitiva do projeto literário do autor.

Se nos voltamos para a leitura de diários de escritores, podemos reconhecer que as entradas são anotações que muitas vezes expõem o modo como o diarista pensa a relação da escrita com a vida, da vida com a literatura, como em muitas reflexões encontradas nos diários de André Gide, Virginia Woolf ou Lima Barreto. 

Ao buscar compreender a relação da anotação com a escrita literária, não posso deixar de retornar a Roland Barthes e ao interesse do crítico em encontrar caminhos para conceber uma forma romanesca capaz de capturar o presente por meio de uma escrita breve e descontínua, objeto do primeiro momento do curso A preparação do romance. Aí, Barthes explora o haicai japonês como exemplo essencial do que identifica à anotação do presente.

Mas como pensar a anotação, prática fragmentária e descontínua, para escrever um romance? O encantamento de Barthes pelo haicai japonês está relacionado ao seu “pouco de linguagem” que “anota um elemento tênue da vida presente” “sem resto”,  permitindo a “fruição imediata do sensível e da escrita”, dado que é a “escritura absoluta do instante”, que Barthes afirma dar a sensação de “cerca[r] o sujeito”. Assim, o haicai é entendido pelo crítico francês como um “detrito errático” que, com naturalidade, escreve o sujeito e seu cotidiano, a vida.

Mas como o haicai como “ato mínimo” , como gesto de anotação do presente, serve ao romance em preparação? Barthes considera o impulso de anotar imprevisível, um ato que busca recolher “uma lasca do presente” quando esta irrompe diante do sujeito que mantém a “atenção flutuante”. Em seu caso, declara que a prática da anotação está vinculada a escrever uma “notula” (palavra) em sua caderneta com velocidade enquanto o “fenômeno notável” o interpela, para posteriormente transformá-la na “nota” propriamente dita em uma ficha, não necessariamente restrita à forma breve. 

É neste ponto que Barthes se questiona sobre a “atribuição de valor” que deve ser dado à anotação: deve-se  assumir a futilidade dessa prática? Como fazer do anotado um romance? 

A anotação está ligada à preparação da obra como a escritura dos “incidentes” que circundam o escritor, do “notável” ainda que banal, das pequenas crises e impedimentos impostos ao Eu que escreve. Assim, a  prática da anotação, seus produtos (cadernos, diários), também podem constituir uma espécie de cartografia da gestão da prática de escrita entre as “demandas da vida” e a “organização cotidiana das necessidades”, do desejo de escrever entre os obstáculos externos e internos, da procrastinação. 

Mas seria possível que o Romance seja isso? Um conjunto de anotações da “vida metódica”, da organização da vida, da escrita e do sujeito fragmentado que se constrói enquanto escreve algumas coisas?

O romance, a anotação e muitas perguntas

Carolina Coutinho

Créditos da imagem: Hisaji Hara’s A Study of ‘The Salon’, 2009.

Desde quando comecei a minha trajetória de pesquisa em literatura, o interesse na imbricação de vida e obra nas narrativas contemporâneas sempre capturou a minha curiosidade. Por isso, minha investigação de iniciação científica explorou algumas produções atuais nas quais as escritas de si predominam. Agora, ingressando no mestrado em meio ao turbulento cenário de pandemia, aprofundo esse caminho em um novo momento de investigação.

Assim, busco lançar um olhar atento para a escrita tardia de Barthes, em especial as anotações de seu último curso ministrado no Collège de France, para pensar  sua relação com a prática da anotação como mais do que um mero instrumento que prepara a escrita. Já na iniciação científica, estudando a noção de romanesco em Roland Barthes, pude perceber como a vontade de um olhar diferente para a narrativa em primeira pessoa demonstrada pelo autor nos cursos A preparação do romance está intimamente relacionada com o interesse pela forma da anotação como um possível caminho para uma “terceira forma” do romance que Barthes tanto desejou escrever.

A anotação está mais comumente vinculada à uma etapa preliminar de elaboração de produções literárias, dado que a sua prática geralmente precede as narrativas como uma forma de registro desse processo em cadernetas e diários. Mas, além de sua relação com a fabricação da obra, a anotação em Barthes se relaciona particularmente com a vida ao se colocar como uma “[…] intersecção problemática de um rio de linguagem, linguagem ininterrupta: a vida – que é texto ao mesmo tempo”, entre a vida e a obra. A anotação captura esse presente intenso, mesmo nas sutilezas e banalidades que compõem o cotidiano, aparentemente sem um critério de seleção, sem razão ou juízo.

Recentemente, ao especular sobre a configuração da primeira pessoa nas narrativas contemporâneas, investi na possibilidade de uma “dicção diarística” como chave de leitura para analisar os procedimentos de criação de um eu especulativo, relacionado com o seu entorno e com o caráter fragmentário dessas narrativas. Nesse sentido, o aproveitamento de anotações cotidianas como produto final das narrativas poderia ser um dos sinais de deslocamento do próprio gênero romance quando aproximado às anotações diárias.

Se a escrita de si atualmente tem apresentado uma ligação maior do eu que se narra com o presente da vida e da obra, isso é alcançado pela adoção da anotação como forma? Alberto Giordano observa uma maior disposição da literatura contemporânea latino-americana para a experimentação com o autobiográfico, uma assertiva que paira sobre minhas indagações sobre a literatura contemporânea.

Seria a investida contemporânea numa aproximação do autobiográfico um reflexo de uma aposta na anotação como forma da narrativa, e não como mera etapa da construção do romance? Poderia a prática da anotação estar conectada a uma renovação das interações da literatura com aspectos geralmente considerados como pertencentes às construções autobiográficas, talvez modificando o que entendemos hoje por ficção? Essas são algumas das questões que pretendo explorar neste novo desafio de pesquisa.

Luto e força metonímica

Antonio Caetano

Créditos da imagem: Daniel Boudinet: Polaroid, 1979.

Na minha pesquisa sobre o romance O pai da menina morta, de Tiago Ferro, percebo alguns aspectos importantes a serem considerados em relação à presença e à ausência de alguém querido que morreu. Por exemplo, no romance de Ferro o narrador enlutado aborda os efeitos da ausência de sua filha morta, mas não exibe a filha, não a descreve, nem mesmo cita seu nome. Em vista disso, acredito que a ausência presente da filha morta na narração do romance tenha um papel importante, especialmente por se tratar da elaboração do trauma do narrador, da exposição de uma ferida que resiste à representação.

Em A câmara clara,  em luto pela mãe e refletindo sobre fotografia, Barthes afirma que o punctum é uma “ferida”, que exerce certo poder sobre quem a observa. Barthes também comenta que o punctum é pessoal e individual, sendo difícil explicar essa ferida a outros. No decorrer do ensaio Barthes exibe muitas fotografias que exercem essa força sobre ele, exceto uma. Trata-se de uma fotografia da mãe quando criança. Barthes não exibe a foto, mas descreve o que o punctum nessa foto representa para ele, assim como sua origem: o olhar da mãe. E é justamente esse jogo da presença constituída a partir da ausência, e a dor do luto, que me interessa abordar nesta postagem.

Barthes afirma não mostrar a fotografia da mãe por ela existir apenas para ele, já que para qualquer outra pessoa a fotografia seria indiferente. Não haveria ferida. Mas por que importa a Barthes o fato de sermos atingidos, ou não, pelo olhar de sua mãe? Ele omite a foto não por resguardo, mas, como disse, por  não fazer diferença que a olhemos. A foto não nos atingiria. Por outro lado, não saímos ilesos da leitura de A câmara clara no que concerne ao luto de Barthes: sentimos sua dor, partilhamos de seu luto, vislumbramos como esse punctum o fere. Mas como isso se dá?

Sobre esse aspecto do ensaio de Barthes, e especialmente sobre o punctum representado pela foto da mãe dele, Jacques Derrida comenta que o punctum, sendo esse lugar de “singularidade insubstituível e de referencial único”, irradia uma força metonímica e pode invadir tudo.

Ainda de acordo com Derrida, a força metonímica do punctum nos permite falar do que é único, falar de e falar sobre e, dessa forma, confere uma certa generalização ao discurso. Por generalização, Derrida quer dizer que a força metonímica – ou seja, todo o trabalho empreendido por Barthes ao falar sobre o olhar de sua mãe que representa para ele o punctum da foto não mostrada aos leitores– contamina os leitores do ensaio fazendo com que sejamos atingidos não pelo luto de Barthes (este lhe é único), mas pela forma como Barthes descreve aquilo que é indescritível.

Assim seria possível pensar que, tanto para Barthes, quanto para o narrador de O pai da menina morta, exibir a fotografia e a filha seria provocar em nós, leitores, o não-punctum, o não reconhecimento dessa ferida, seria expor o fato de que nem o olhar da mãe na foto omitida no texto de Barthes e nem a filha morta (presença ausente na narrativa de Ferro) podem exercer em nós o mesmo impacto de punctum exercido neles. E a consolidação da ineficácia deste punctum seria uma forma de matar, mais uma vez, aquelas que mantêm a ferida do punctum viva para eles. Aliada a isso, a força metonímica do punctum, ainda que o generalize – e porque o generaliza –, permite que ele reverbere para além de si mesmo, para outros objetos e afetos, invadindo a escrita e nos atingindo, nos fazendo quase entrever o olhar dessa mãe criança. E não seria essa uma estratégia do enlutado de fazer permanecer quem já se foi?

Narrativas com imagens

Samara Lima

Créditos da imagem: A Photosession, de Victoria Ivanova

Estou começando uma nova investigação de iniciação científica. Agora, meu plano de pesquisa quer discutir a presença das imagens em tantas narrativas do presente e a pergunta inicial diz respeito ao estatuto da imagem fotográfica em meio às histórias.

Comecei lendo Roland Barthes. Em seu texto “A retórica da imagem”, o francês toma como ponto de partida a análise de uma imagem publicitária de anúncio de massas Panzani, pois, segundo ele, sua mensagem é “intencional” para constatar que toda imagem carrega uma produção de sentido. Ao analisar o anúncio, ele sugere que a imagem apresenta três níveis de mensagens, a saber: linguística, denotativa e conotativa. Na primeira, a mensagem tem como suportes a legenda e a etiqueta; na segunda, a mensagem é de “natureza icônica”, em que podemos identificar cada objeto representado na imagem; e, por último, a mensagem simbólica, na qual os significados inseridos e interpretados variam de acordo com a cultura do produtor e receptor.

Um dos pontos que me interessam na discussão de Barthes é o que ele identifica como as duas funções da mensagem linguística em relação à imagem: a de fixação e a de relais. Segundo Barthes, quando a linguagem privilegia a função de fixação em relação à imagem,a palavra busca elucidar o que está na cena sem apresentar uma nova informação. A função de fixação é, antes de tudo, limitar a “cadeia flutuante” de significados possíveis da imagem.

Já a função de relais é mais difícil de ser encontrada, segundo Barthes, pois nela “a palavra e a imagem têm uma relação de complementaridade”, em que o diálogo entre ambos os discursos pressupõe uma expansão dos significados, adiciona uma informação inédita e “faz progredir a ação”.

A imbricação da escrita com outras práticas artísticas não é nova. Se pensamos na presença das imagens fotográficas em narrativas recentes o nome do alemão W. G. Sebald logo é lembrado. Mas é curioso notar que, na cena literária atual, cada vez mais nos deparamos com narrativas que incorporam imagens. Basta pensar,  por exemplo, no livro O pai da menina morta, de Tiago Ferro.

Considerando as funções de fixação e de relais que a linguagem pode ter em relação à imagem, segundo a reflexão barthesiana, muitas interrogações surgem: a imagem é apenas ilustração ou, ela mesma, constitui uma narrativa (relais)? O texto explica a imagem (fixação)? Qual os efeitos provocados pela presença da imagem em meio à narrativa? Aproveitando a leitura de Barthes, desejo submeter “a imagem a uma análise espectral”, a fim de revelar suas possíveis virtualidades e a maneira como a imagem pode expandir os significados presentes na narrativa. 

Pandemia e literatura

Marília Costa

Créditos da imagem: Escritório em uma pequena cidade, Edward Hopper, 1953/ Reprodução Wikiarte

Nesse cenário quase pós-apocalíptico de medos e incertezas diante da pandemia que assola o mundo e das providências para tentar conter a transmissão do covid-19 e evitar o colapso no sistema de saúde, notamos uma movimentação das editoras, dos autores, e dos críticos e teóricos na tentativa de se manterem ativos no campo, adequando-se às novas circunstâncias e ferramentas digitais. Ricardo Lísias tem oferecido um curso de literatura francesa contemporânea através de lives no Instagram. A poeta Marília Garcia vem ministrando oficinas online no youtube de escrita criativa em parceria com a editora Companhia das Letras e o escritor Leonardo Villa-Forte ministra oficinas de criação literária online pelo aplicativo Zoom em colaboração com a Casa Contexto. Além disso, muitas editoras e plataformas como a Companhia das Letras e a Amazon estão disponibilizando parte do seu acervo literário digital gratuitamente a fim de incentivar as pessoas a ficarem em casa.

Eu gostaria, contudo, de comentar mais detidamente o projeto “Leia em casa” do blog da editora Companhia das Letras que vem  publicando periodicamente “Diários do isolamento”, produzidos por autores como Jarid Arraes, Fábio Moon, Luisa Geisler e muitas outras vozes que narram suas experiências no contexto da pandemia e do isolamento social. Os relatos, apesar de multifacetários, dialogam entre si e produzem um discurso coletivo sobre essa vivência nova experimentada não só pelos escritores, mas por toda a sociedade. Esse empreendimento fomentado por uma das maiores editoras brasileiras me levou a recuperar algumas inquietações da deliberação barthesiana sobre a conveniência de manter um diário de escritor, ou seja, o valor daquilo que se escreve nessa condição, se seria digno de publicação ou não. “Deveria escrever um diário com vistas à sua publicação? Poderia converter o diário em uma ‘obra?”, Barthes se interroga.

Um diário de escritor é aquele texto que, sem abrir mão de registrar o íntimo ou o particular, é espaço para mostrar a junção entre vida e anotação. O exercício de manter um diário coloca em xeque para os escritores dilemas inerentes ao procedimento literário, pois combina os impasses da linguagem com o desafio de representar elementos da vida. Barthes percebe na prática do diário um encontro entre a escrita pessoal e a elaboração da obra literária, vendo na prática diária da anotação características comuns à literatura como a imaginação e o fetichismo da linguagem, presentes tanto no exercício biográfico quanto na ficção.

Procedimentos on-line muito utilizados por influenciadores digitais, blogueiras e youtubers são cada vez mais presentes na atuação dos escritores nas redes. Se, na literatura como em outras artes, o século XXI é considerado uma época de grande valorização da intimidade, um período de verdadeira obsessão pelo vivido, em que muitos autores têm investido na exposição da intimidade como matéria literária, como a exposição nas redes no período de isolamento social pode potencializar a criação de poses e transformar a figura do autor e os textos que esses autores produzem?

A anotação diária, o exercício com o fragmento de escrita e o ensaio de si podem ser pensados também como um laboratório que testa novas formas de contar e  funciona como experimentação com a autofiguração do escritor.

Romance que é diário

Carolina Coutinho

Créditos da imagem: Rossana Feudo, La maschera e il volto

Pensando na relação complexa que Barthes manteve com o gênero diário e em como certos aspectos dessa tensão parecem fazer parte do nosso cenário literário contemporâneo, comecei a investigar as relações entre o diário e o romance, para testar a hipótese de que algo da forma do diário está presente em muitos romances da atualidade.

Em The Diary Novel, Lorna Martens propõe investigar o que seria um diary novel, um tipo de narrativa ficcional que se vale de traços da forma dos diários. Para a autora, o diário, como escrita de si, não visa a um leitor específico, é um gênero que cultiva o segredo e que registra os acontecimentos vividos pelo autor. Martens afirma que é interessante pensar como a ficcionalidade se vale das características desse gênero (auto)biográfico e as contraria. Na sua opinião, a escrita de um romance diário implica sempre na preocupação com um leitor imaginado e adentra uma zona de reflexão sobre a própria escrita, que está ausente no diário “puro”.

Martens está trabalhando sob a premissa de que é possível fazer uma distinção fundamental entre a primeira pessoa do diarista real e do diarista ficcional. Um romance que se vale da forma do diário seria marcado pela falta de correspondência entre o diarista ficcional e o autor. Enquanto o diarista “real” escreveria sobre si, para si, o diarista ficcional (um personagem da narrativa) é uma criação do autor do romance (que assume a forma de um diário), ou seja, estamos diante da velha proposição de que o narrador não é o autor.

Ainda assim, escrevendo em 1985, Martens já levanta considerações sobre as narrativas que colocam em xeque as fronteiras, já não muito estáveis, entre realidade e ficção, e sobre o uso da forma do diário como um terreno fértil para produções interessadas em problematizar a distinção entre autobiográfico e ficcional, apontando não somente exemplos contemporâneos, mas também exemplos mais antigos, de quando essa distinção era, se não bem resolvida, menos problemática. Apesar desse movimento, a autora ainda considera que esses sejam casos limítrofes e aposta na diferença intrínseca entre a primeira pessoa não ficcional (própria ao diário como gênero autobiográfico) e a ficcional (própria das narrativas literárias).

Pensando em minha investigação, essa proposição abre janelas para diversas reflexões: como essas interações são modificadas em um momento em que diversos diaristas passam a escrever seus diários na internet, através de blogs, e essa escrita, antes secreta, passa a contar com interlocutores? Vivemos um momento em que há uma incidência mais alta de autores que brincam com essa correspondência entre autor e narrador em primeira pessoa e ainda assim reivindicam para o que escrevem a condição de literário? Será que é possível pensar o mergulho da vida na obra, a mistura entre essas primeiras pessoas, entre autor e narrador, não apenas como meras exceções, como aponta Martens, ou dignas apenas de descrédito ou acusações de narcisismo, motivo constante de preocupação para Barthes?

Barthes e o Diário

Carolina Coutinho

Créditos da imagem: Le membre fantôme, por Vanessa Beecroft, 2015.

Nesse segundo ano de pesquisa, estou muito interessada em investigar a presença do diário em obras contemporâneas. Uma hipótese é que essa vontade de falar de si (presente também nas formas artísticas) está relacionada com a exploração de um eu que é incerto e fragmentário no contexto de exposição da intimidade promovido atualmente pela internet.

Estudando a noção de romanesco, percebi que a vontade de entrelaçar vida e obra presente na produção de Barthes é quase dominante na literatura contemporânea. Na preparação de seus cursos para o Collège de France, o uso da anotação como forma para uma reinvenção do sujeito através da escrita é proposto por Barthes. Talvez o gênero que mais se encaixe nesse projeto seja o diário, o ato de anotar a própria vida. A forma do diário seria, então, um espaço de experimentação privilegiado para testar um projeto literário imbricado com a vida.

Da mesma forma que Barthes se encontra às voltas com seu projeto romanesco, sem verdadeiramente assumir o tipo de escrita que deseja, parece que algo semelhante aconteceu com sua relação com o diário. Segundo Alberto Giordano, Barthes levou quase quatro décadas ponderando sobre a validade de investir na manutenção de um diário de escritor. Em seu primeiro ensaio sobre o gênero, “Notas sobre André Gide e seu Diário”, Barthes já revelava sua preferência pela escrita fragmentária, pela anotação do cotidiano e apontava uma latência literária presente nessa forma, um “meio-caminho entre a confissão e a criação”. Mas também lutava contra um preconceito quanto aos gêneros autobiográficos, marca de sua época. Temia, em especial, os riscos do egotismo e do narcisismo. Para mim, é possível pensar que “o encontro entre notação e vida”, próprio do diário, está relacionado com o desejo de Barthes de escrever um romanesco sem romance.

“Deliberação”, último ensaio publicado por Barthes em vida, traz o conflito entre o prazer simples de anotar, o conforto da “maniazinha” e a dúvida da validade desse exercício, da passagem da escrita leve e sem julgamentos para um momento posterior de avaliação, para uma espécie de monitoramento do que se escreve, uma vigilância contra os excessos de vaidade que acabam por gerar a afetação da qual o aspirante a diarista quer escapar. Ao final do ensaio, Barthes se descobre encurralado por esse impasse, por sua capacidade de vislumbrar o potencial literário do diário, mas também por reconhecer sua incapacidade de lidar com o que seria uma recepção negativa dessa obra, com o grande obstáculo da publicação.

Mencionando a controvérsia sobre a publicação póstuma do “Diário do luto”, Giordano aposta que aí temos um “verdadeiro” diário íntimo, carregado dos “momentos de verdade”, das aflições, dos “afetos irrepresentáveis”, sem preocupação com o impulso literário que assombrou Barthes por tantos anos.

Talvez o estudo desse percurso barthesiano com a escrita de um diário como obra possa me ajudar a compreender a relação que a apropriação desse gênero pelos romances contemporâneos possui com uma vontade de investigação do eu.

“Uma nova forma de escrita?”

Carolina Coutinho

Créditos da imagem: Untitled, Felix Gonzalez Torres, 1991

Como comentei em meu último post, o projeto barthesiano de escrita de um romance parece estar bastante vinculado a uma nova forma de falar do “eu”, de criação de um eu através da escrita, de um escrever que possa fazer emergir um outro, estrangeiro desse “eu”, na sua relação com a vida, com o presente. Para Barthes, uma parte importante dessa escrita afetada (“escrevo me afetando no próprio processo de escrever”) é a distinção entre o íntimo e o privado.

Quando primeiro me deparei com essa separação, “a regra = oferecer o íntimo, não o privado”, comecei a tentar observar qual seria o entendimento de Barthes sobre essa “regra”, qual a necessidade de fazer essa discriminação. Em uma conferência no Collège de France, Durante muito tempo, fui dormir cedo, Barthes lê a obra de Proust a partir de uma sintonia com o momento no qual se encontra, o “meio do caminho da minha vida”. Essa conferência aconteceu algumas semanas antes do início do primeiro momento do curso A preparação do romance, e, de certa forma, adianta alguns dos pontos que serão abordados durantes as aulas.

Barthes anota: “Vou então falar ‘de mim’. ‘De mim’ deve entender-se aqui pesadamente: não é o substituto asseptizado de um leitor geral […] É o íntimo que quer falar em mim, fazer ouvir o seu grito, em face da generalidade, da ciência.”

Barthes então fala sobre o luto da perda de sua mãe que o conduz a esse “meio da vida” e o motiva a uma pulsão de escrita, a uma “nova prática de escrita”.

Observando a incidência das narrativas de si em diferentes gêneros, considero que a distinção feita por Barthes entre o íntimo e o privado pode ser interessante para pensar a forma de exposição do eu nas narrativas contemporâneas. Segundo Barthes, o privado é o substituto asseptizado que é autorizado a ser exposto, uma esfera mais aberta e artificial. Não é por isso que ele se interessa, mas sim pelo que chama de íntimo que define como uma zona incerta do próprio sujeito, que ao tentar se aproximar dela ao falar de si, encontra sempre uma falha, uma falta. Barthes deseja escrutinar isso, que caracteriza como uma dimensão visceral, sem ceder ao sentimentalismo. Quer falar de si sem censura, dos pequenos “incidentes” que causam uma perturbação, de uma certa sensibilidade corporal, de um “sujeito disperso”. Nessa redefinição do que é falar do íntimo, Barthes aposta em uma forma de transformação do autobiográfico.

Talvez um exemplo dessa escrita possa ser encontrado em A invenção dos subúrbios, de Daniel Francoy, um livro quase diário-quase crônica, que mais parece um conjunto de anotações que brincam com a recorrência do olhar atento ao entorno. Nessas anotações, emergem relatos íntimos, e me refiro aqui à definição barthesiana, afetados por eventos do cotidiano que geralmente não se revelam dignos de nota, mas de alguma forma provocam, movem esse sujeito observador, ativam suas memórias, divagações, sensibilidade.

“Muitas vezes o que me fica de uma leitura ou de um filme é um detalhe absolutamente incidental […] Prefiro a vida mínima, quieta, respirável, muito embora todos os dias tenho a sensação de acordar para um universo que vem (mas não vem) abaixo, aquela sensação de falta de ar enquanto se respira, aquele sentimento de crispar os dentes porque se tem um nevoeiro diante dos olhos”

Fica a pergunta: seria possível ler nos incidentes anotados por Francoy, a “nova prática de escrita” tão desejada por Barthes?

Barthes e o romanesco

Luciene Azevedo e Carolina Coutinho

Créditos da imagem: “Personas”, Paulo Bruscky, 1993.

O termo “romanesco” desponta em diferentes textos de Roland Barthes ao longo de sua produção crítica. Mas no final dos anos 70, o termo parece se relacionar ao projeto barthesiano de escrever um romance, ao menos é o que podemos entender lendo as anotações de aula do último curso que ministrou no Collège de France, intitulado A preparação do romance. É, então, à leitura das aulas desse curso, no qual Barthes se propõe a interrogar quais as condições em que se lança um escritor para se arriscar a escrever um romance, que nos debruçamos para pensar um entendimento do romanesco para o crítico. Quanto a proposta do curso, o “futuro autor” faz suas ressalvas: não está empenhado em fazer análises sobre o gênero romance, nem mesmo em extrair uma fórmula sobre como os autores de ontem preparavam/escreviam seus romances, mas em seu próprio empreendimento para escrever uma obra que conecte a literatura com a vida. Assim, segundo Barthes, o curso funcionará como uma preparação para a escrita, “para saber o que pode ser o Romance, façamos como se devêssemos escrever um”.

O primeiro volume de A preparação do romance, que cobre as aulas do primeiro ano do curso (1978-1979), se debruça sobre a anotação e o que ele considera ser a sua “realização exemplar”, o haicai japonês. A partir da leitura desse primeiro momento do curso e das aproximações que faz entre a forma do haicai e a anotação, acreditamos que podemos destacar três pontos principais que parecem formar seu “projeto romanesco”: a investigação sobre uma forma de dizer “eu”, uma atenção ao presente e o que chama de “uma nova prática de escrita”. Barthes nunca aplicou-se com diligência à delimitação rigorosa do que seria o romanesco, assim a noção sempre aparenta ser um tanto vacilante, como se o próprio autor talvez não tivesse exatamente certeza do que queria ou de como realizar seu desejo.

Barthes inaugura sua primeira aula comentando sobre seu processo de mudança após a perda de sua mãe, o acontecimento que inicia o seu “meio da vida”, a consciência da própria mortalidade e o desejo por uma Vita Nova, que é traduzido pelo desejo por uma “nova prática de escrita” que permita um outro modo de tratar a 1ª pessoa, falando de um sujeito fragmentado, uma subjetividade móvel. A discussão sobre esse termo em Barthes nos interessa em especial, pois nos parece que a noção tal como tentamos caracterizá-la a partir da leitura de Barthes, está muito conectada com um modo de falar de si no presente. Explicamos melhor: não é incomum encontrarmos narrativas nas quais acompanhamos a elaboração de uma história que gira em torno da construção de um imaginário desse “eu” (muitas vezes, muito próximo do próprio autor da obra) em relação ao que lhe é “contingente”, aos “incidentes” da vida que, embora percebidos como “coisinhas de nada” (como Barthes descreve a atenção ao banal a que gostaria de se dedicar na escrita de sua obra) poderiam revelar um modo de ver o sujeito que escreve e também o mundo que o cerca.

Assim, o “modo justo de dizer eu” não se esgotaria na exposição da intimidade ou na retórica confessional, mas resultaria em uma verdadeira aventura investigativa sobre uma “formação de imagens do eu” no texto, na vida, no presente.

Acreditamos, então, que tentar caracterizar, a partir das anotações desse curso, a noção de romanesco, pode ser uma chave para problematizar alguns elementos que aparecem de modo muito insistente nas formas narrativas contemporâneas, como a presença da 1ª pessoa, o “vínculo afetivo com o presente” e uma dicção narrativa que incorpora a seu fazer, a própria preparação do que nos conta.