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Machado de Assis, traduzido do português para o português.

Caros leitores do blog, faremos um recesso nesse final de ano e retornaremos no próximo semestre, em março, mas esperamos que o Leitura Contemporâneas continue na barra de favoritos de todos vocês. 

seccoPor Larissa Nakamura

Em junho deste ano foi lançada mais uma edição da obra O Alienista, do escritor Machado de Assis. Mas a presente edição apresenta uma novidade: o texto machadiano passou por um processo de tradução, que consiste em alterar parte do vocabulário empregado pelo autor a fim de facilitar a leitura para leitores não acostumados com os livros do bruxo, acreditando-se, assim, que é possível apresentar uma linguagem, considerada pelos responsáveis pela iniciativa,  mais acessível.ao grande público.

O projeto comandado pela escritora Patrícia Secco contou com  a parceria de dois jornalistas e foi patrocinado pelo governo federal através da Lei Rouanet, lei de incentivo à cultura. A proposta não foi bem recebida por muitos críticos literários, professores universitários e usuários das redes sociais que consideraram a iniciativa “uma mutilação” do texto do Bruxo do Cosme Velho. Tal mutilação supõe a perda parcial ou total do texto machadiano, principalmente no que toca à linguagem e estilo do autor.

A autora do projeto quando questionada pela justificativa da proposta, alegou que sua adaptação simplificaria o texto original, que apresenta um vocabulário rebuscado e períodos muito longos. O problema da rejeição dos jovens leitores às obras machadianas, para Patrícia Secco, reside na complexidade estrutural e lexical de seus textos e este é principal motivo que impulsiona seu empreendimento. Ao ser questionada se essa simplificação não poderia alterar o estilo machadiano de escrita, respondeu à Folha de São Paulo que as mudanças apenas facilitariam a leitura, porém não mudariam o sentido original do texto.

Vamos ver um exemplo. No texto original de  Machado encontramos: “Uma volúpia científica alumiou os olhos de Simão Bacamarte”. Na “tradução” o mesmo trecho aparece assim: “Uma curiosidade científica iluminou os olhos de Simão Bacamarte”. O que podemos perceber  é que há, sim,  uma perda significativa da carga semântica na troca da palavra “volúpia” pela mera “curiosidade” de Simão Bacamarte, pois o emprego de volúpia parece indiciar o  amor cego e louco do médico pela ciência insinuando ainda uma forte conotação sexual (volúpia que o personagem não parece manifestar, por exemplo, em relação a sua digníssima esposa). A tradução da palavra por “curiosidade” retira essa potência semântica e empobrece a narrativa e suas interpretações.

Sabemos que os problemas educacionais no país são muitos e que, apesar de os números do analfabetismo terem diminuído nos últimos anos, 20% da população ainda é composta por analfabetos funcionais, de acordo com a ONG Todos pela Educação. Sendo assim, muitos dos que são a favor do projeto da escritora Patrícia Secco apostam que esse tipo de atitude poderia fazer com que os que não se sentem à vontade com a leitura a iniciem ou a tornem mais frequente,  desenvolvendo, dessa forma, um interesse pelos textos originais. O que questionamos é se a iniciativa pode mesmo garantir o estímulo à curiosidade imediata pelas produções machadianas. E, ainda que exista uma possibilidade de se estabelecer uma massa de leitores para as obras facilitadas, tal possibilidade não parece sugerir uma melhora efetiva da nossa situação atual. É possível, então, acreditar que a proposta pode colaborar com o aumento do número de leitores? Mas que leitores queremos?

É importante salientar que não defendemos e nem acreditamos na ideia de pureza dos clássicos da literatura, mas o cerne da polêmica é outro: o alegado descompasso entre a obra machadiana e a realidade dos alunos, que demandaria um esforço cansativo de leitura por alunos não experimentados. No entanto, a iniciativa, ao acreditar facilitar o trabalho de leitura, facilitando a formação dos leitores, acaba esquecendo-se de que, no caso da literatura, os textos não se restringem  ao  reconhecimento do vocabulário, mas também exigem do leitor habilidades para identificar a própria retórica do autor e seus procedimentos linguísticos, como as ironias, as metáforas, as ambiguidades etc.

Esse é o grande problema da iniciativa de Patrícia Secco, pois ao “adaptar” O alienista, ela acaba por destruir a potencialidade que o texto carrega em poder formar habilidades de decodificação e interpretação, que são indispensáveis na apreciação reflexiva de uma obra literária. Assim, ao pretender oferecer o texto traduzido,  arrisca-se também a  retirar do leitor a capacidade de realizar o exercício intelectual exigido em qualquer operação de leitura.

De fato, a discussão não encontra respostas fáceis de serem apontadas com tanta veemência, já que é possível encontrar motivos tanto favoráveis quanto desfavoráveis para endossar a “facilitação” ou alegar a “mutilação”. E, por isso mesmo, a polêmica é instigante e deve suscitar um debate sobre a educação e a literatura no país.