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A guinada documental

Luciene Azevedo

Diego Rivera, Los Murales de la Industria de Detroit (1932-1933)

Como a ficção pode nos ajudar a imaginar futuros possíveis? A pergunta tem me inquietado em especial porque estou interessada em pensar as formas narrativas do presente que vem se caracterizando como o que tem sido chamado de uma guinada documental.

Tal Brasil, qual romance? de Flora Sussekind é o livro que mais agudamente expõe as voltas ao documental como uma característica estruturante da historiografia literária brasileira. Sussekind realça nessa recursividade três momentos importantes: nosso naturalismo do século XIX, o regionalismo modernista e, na década de 70, o surgimento do romance reportagem. A conclusão é ácida. Nesses momentos, a literatura afasta-se da ficção, veta a imaginação e se instala confortavelmente sob a égide de uma representação mimética da realidade, esquecendo o trabalho com a linguagem.

Essa posição entre literatura e documento, ainda que com mais nuances, também é reiterada por Silviano Santiago ao identificar na onda de publicações reconhecidas como romances-reportagem a “desficcionalização do texto literário”. Santiago não quer colocar em jogo o valor dessas obras, como o faz Flora,  mas  reconhece nessa produção “um laço menos afetivo com a literatura” .

O que me interessa observar é que os críticos relacionam o movimento que a literatura faz na direção de uma zona discursiva alheia a seu domínio (o jornalístico, o domínio do fato, o da história para registrar, documentar os abusos da ditadura) com um desleixo em relação ao investimento ficcional. Essa espécie de queixa ou lamento, reapareceu recentemente com o comentário, que também tem algo de alerta, de Lígia Diniz sobre a concessão do Nobel a Annie Ernaux, já que, na sua visão, o prêmio legitima um descaso generalizado com a ficção no presente.

É verdade que muitas obras hoje oferecem ao leitor uma linguagem crua, sem metáforas ou eufemismos, um discurso claro, que não impõe quase nenhum obstáculo à leitura fluida, no qual a fabulação é minimalista (uma espécie de fabulação que não está calcada na criação de personagens, em suas elucubrações interiores ou em suas peripécias), pois o que lemos suporta sem problema ser confrontado com sua situação real (como afirma Kamenszain comentando o livro de Analia Couceyro, El nervio ótico).

O surgimento de nomenclaturas paradoxais com as quais nos deparamos no presente (romance de não ficção, ficções reais, pós-ficção, literatura documental) são uma porta de entrada para uma interrogação sobre as formas peculiares como as ficções se embaraçam com e problematizam a própria ideia do que chamamos de realidade no presente.

Me parece que é um desafio repensar porque voltamos mais uma vez ao documento. Mas a grande questão é: será possível pensar a guinada documental sem reduzi-la a mais um momento de enquadramento positivista do real? Ou seja: a aliança da literatura com o documento no presente pode constituir ainda uma abertura imaginativa em relação ao real?  Como a guinada documental pode  nos ajudar a perceber melhor o modo como as verdades estão em disputa hoje?

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