Forma e experiência

Por Davi Lara

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Crédito da imagem: Karl Tabery, Shrouded Figure 2, 1974-5

O prólogo de Jorge Luis Borges para A invenção de Morel (1940), o livro de estreia de Adolfo Bioy Casares, é geralmente lembrado pela frase final na qual ele afirma que, após ter discutido os pormenores da trama com o autor e de reler a novela, não lhe parece um exagero qualificá-la de perfeita. Por mais que pareça uma simples frase de efeito, esta declaração é fundamentada por um juízo crítico sólido esboçado nas três ou quatro páginas do prólogo que eu gostaria de trazer para a discussão. Logo de início, Borges estabelece uma distinção radical entre o romance de peripécias e o romance psicológico, posicionando-se francamente a favor do primeiro, em detrimento do segundo.

O romance de peripécias – diz ele – é superior por que assume plenamente seu status de ficção, diferentemente do romance realista moderno que, ao escolher temas de ordem psicológicas, trazem para dentro da ficção a desordem da vida: “Há páginas, há capítulos de Marcel Proust que são inaceitáveis como invenções: sem saber, resignamo-nos a eles como a tudo que de insípido e de ocioso há no dia a dia”. O romance de argumento – outro nome com que Borges gosta de chamar o romance de aventuras – não tem a aspiração de representar a realidade, é um objeto assumidamente artificial e, por isso, não pode conter nenhuma parte injustificada.

É baseado nessa concepção de romance de peripécias, que Borges pode afirmar que a novela de estreia do seu conterrâneo é perfeita: trata-se de um juízo formal, baseado na análise das partes da novela em relação ao argumento central, que se unem de maneira coesa, sem distrações de ordem psicológica. Mas o que me interessa, agora, nesse argumento, é que ele só é possível devido a uma distinção cabal entre dois elementos constitutivos da ficção – o inventado e o real –, na qual está pressuposta uma hierarquização rígida, onde a invenção é vista quase que como sinônimo de literatura, enquanto o real é tido como um elemento maligno, como um câncer que vai minando a literatura de dentro.

Este texto é de novembro de 1940, mas a noção crítica do real como algo perigoso para a literatura não é tão distante assim de nós. Num post aqui do blog, ao trabalhar a relação entre literatura e autoficção, Luciene Azevedo cita o exemplo de Todorov, que, em A literatura em perigo, “toma a autoficção como bode expiatório do perigo que ameaça o literário”, acusando-a “de regozijo com a exploração detalhada das menos ‘emoções, as mais insignificantes experiências sexuais, as reminiscências mais fúteis’”.

Não deixa de ser estranho que Borges, um nome frequentemente citado como precursor dos experimentos mais extremados de entrelaçamento da literatura com a vida, possa ser alinhado com os críticos mais reativos a esse mesmo tipo de literatura que ele inspirou. Creio que isso se deve por que, apesar de todo o experimentalismo e inovação, Borges possuía um posicionamento estético conservador, herdeiro do paradigma clássico da verossimilhança aristotélica, onde há uma cisão completa entre a poesia e a história. É também devido a esta filiação aristotélica que Borges pode ser comparado aos estruturalistas mais duros (como Gérard Genette, também um crítico ferrenho da autoficção), representantes de uma corrente de pensamento com a qual, de resto, ele não possui muita afinidade.

Se eu insisto na comparação de Borges com os opositores da autoficção, é por que eu creio que essa comparação, na medida em que revela o que há de comum entre eles, pode ser útil para se compreender melhor a autoficção e as questões estéticas que ela suscita. Uma hipótese que eu tenho amadurecido é pensar as narrativas em que há a intromissão da voz autoral a partir da tensão entre as formas tradicionais do romance e a emergência do registro das experiências, entendendo-se a experiência como um elemento ingovernável, que força a forma do romance desde dentro, fazendo-o se expandir para além de seus limites tradicionais.

É interessante notar que, quando se coloca a autoficção nesses termos, se põe em jogo uma série de elementos que extrapolam a crítica puramente formal. Basta lembrar a fortuna crítica do termo experiência e ver o quanto está em jogo. Penso, por exemplo, em Walter Benjamim e a sua leitura desiludida da civilização europeia entreguerras ou, mais perto de nosso tempo, as críticas feitas ao comportamento verificado no mundo digital, onde ferramentas como os blogs e as redes sociais são usadas, de acordo com certo ponto de vista não muito raro, para suprir a falta de experiências reais. Por outro lado, é possível identificar uma tendência contemporânea de retorno ao romance realista, nem que seja para renová-lo ou mesmo parodiar suas fórmulas narrativas.

Esse duplo movimento que, de um lado, faz uma visitação às formas do romance e, de outro, privilegia o registro da experiência, pode ser um bom ponto de partida para uma crítica do romance em primeira pessoa contemporâneo.

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5 Respostas para “Forma e experiência

  1. Oi, Davi. Muito interessante a discussão que vc promove. Realmente é curiosa a predileção de Borges pelo romance que, genuinamente, assume o status ficcional e, ao mesmo tempo, ter se destacado como um precursor de experiências literárias inovadoras que aliam vida e literatura, como colocado. A resistência de Borges ao registro do real na literatura e a hipótese levantada por você, trazendo algumas das questões que as propostas autoficcionais podem suscitar, me fizeram lembrar do post de Luciene, “A autoficção vale a pena?”, de 01/12, que trata da resistência de alguns críticos em relação ao romance autobiográfico, resistência que parece ir além do problema da nomenclatura e toca na reivindicação do valor dos gêneros biográficos em tensionamento com o ficcional. Me pergunto, então, se esse impasse teórico não se estende para o posicionamento de alguns autores da chamada autoficção em reivindicar o status puramente ficcional de seus textos. Digo isso me baseando, por exemplo, nas declarações (as vezes bem contundentes) de Ricardo Lísias, que negam a inscrição da experiência e o registro do real em algumas de suas narrativas com personagens homônimos do autor. Fico pensando, nesse caso, se o que temos é uma espécie de resistência e também o sintoma de uma filiação à tradição aristotélica, que “separa a machado” a história da ficção, ou apenas mais um elemento de performance autoral. Apenas uma reflexão que me ocorreu agora.

    • Muito obrigado pelo comentário, Nivana. Acho a questão que você coloca super pertinente. Eu realmente não saberia respondê-la. Não me parece absurdo que um escritor sofra a influência de um juízo crítico tão influente quanto esse, cujas origens podem ser rastreadas em Aristóteles, que separa e hieraquiza a ficção e a vida. Por outro lado, há uma forte tendência na literatura contemporânea de quebrar com essa distinção e essa hierarquia. O próprio Lísias mantém uma postura bem ambígua com o assunto, pois se, de um lado, ele reclama da confusão que fazem do real com o inventado nas suas obras, por outro, ele estimula essa confusão quando dá o seu nome a um personagem de ficção. O que me faz pensar numa terceira resposta possível, que é uma mistura das duas anteriores: em face do dilema, o escritor pode se manter na contradição, oscilando entre um lado e o outro. De qualquer modo, acho que cada caso deve ser olhado separadamente. Sem dúvida, é uma questão que vale a pena ser desenvolvida.
      Um abraço.

  2. Gostei da reflexão, Davi. E também do comentário de Nivana. Pra mim, é mais surpreendente ouvir o repúdio de Todorov (apesar de sua filiação estruturalista) à autoficção, que a estrita separação entre real e ficção considerada por Borges como uma marca do bom romance, pois o argentino fala de um tempo em que o romance é associação sem reticências a sua inscrição ficcional. Mas as artes contemporâneas estão cheias de exemplos da contaminação entre a ficção e a realidade. É claro que isso não é novo, mas continua um desafio para a crítica avaliar o que significa um “romance sem ficção” como alardeia a propaganda do mais novo romance de Patrick Delville, Viva!, e que era o mote de Capote ao lançar A sangue frio. Será tudo a mesma coisa?
    Será que a narrativa do autor francês é mais da mesma velha forma do romance histórico, sem mais? Essas questões não deixam de ser interessantes para quem se interessa pelas formas contemporâneas do romance.

    • Obrigado pelo comentário, Luciene. Achei bem instigante a sua sugestão de pesquisa. Sobretudo por que, ao se mover ou modificar as fronteiras da ficção, não há como deixar intacto o espaço destinado ao real. São duas noções que costumam andar juntas, mesmo quando são consideradas incompatíveis. Em “Soldados de Salamina”, de Javier Cercas, um dos romances que eu estudo, as reflexões em torno da natureza e a potência da ficção e dos relatos reais são centrais e movem o narrador por quase todo o seu percurso. Um romance que ainda não concluí a leitura, “HHhH”, do francês Laurent Binet, esse tema é também muito, muito forte.

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