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Frankenstein e a Teoria da Narrativa

Allana Santana

Créditos da imagem: ‘Space², Providence, Rhode Island’, Francesca Woodman.

Meu atual projeto de pesquisa é sobre a narrativa e sobre a maneira como a teoria entende e reconta a longa história dos estudos sobre esse gênero. Lendo o crítico americano Brian McHale, algo me intrigou bastante.

McHale afirma que a teoria da narrativa geralmente é apresentada sob dois olhares: o primeiro se coloca sob um ponto de vista histórico, algo como uma “história das ideias”, em que o foco da abordagem é a exposição de conceitos básicos, seus refinamentos e complexidades a partir do olhar de teóricos diferentes e a “justaposição de diferentes linhas teóricas”. O segundo, por sua vez, avalia a teoria por sua existência institucional, considerando todo o aspecto social das ideias –  desde sua presença na academia, os circuitos curriculares, passando pelas condições de publicação e as relações informais entre os teóricos, o que o autor acredita se assemelhar a uma perspectiva genealógica.

Entretanto, o crítico afirma que a maioria dos artigos (em especial aqueles presentes no Companion to Narrative Theory, o livro em que o artigo de McHale pode ser encontrado) oscila entre uma e outra abordagem, o que parece sugerir a existência de uma disputa entre os dois modos de se avaliar a teoria da narrativa. Isso significa, em outras palavras, que a tendência é de uma perspectiva tentar se sobrepor à outra, o que não impede que a perspectiva subjugada apareça por entre as frestas.

Essa tensão se manifesta, por exemplo, na figura do crítico russo Mikhail Bakhtin, cujo “fantasma” assombra ambas as abordagens comentadas sobre a teoria da narrativa justamente por não se encaixar bem em nenhuma delas. Sua presença acaba sendo reduzida ou à figura de “pai do dialogismo” ou passa a ser contemporânea (no sentido literal da palavra) de diferentes estudos sobre a narrativa, passando por múltiplas apropriações e interpretações distintas. Nas palavras de McHale, Bakhtin “atravessa paredes” porque lê as obras que analisa em perspectiva histórica, aspecto que atrai muitas correntes teóricas distintas. Isso resulta numa “legião de Bakhtins espectrais”, nas palavras do crítico americano.

Essa espectralidade sugere uma impossibilidade de contar a história da teoria sobre a narrativa sob apenas uma perspectiva. No entanto, o autor se questiona se existe uma alternativa ao que chama de um cenário “monstruoso” de patchwork.

Se essa perspectiva monstruosa for considerada negativa, uma história sobre a teoria da narrativa seria talvez um projeto similar ao Frankenstein, construída a partir de pedaços incongruentes costurados grosseiramente. Por outro lado, talvez uma outra perspectiva  revele um Frankenstein não tão monstruoso, mas sim com múltiplas facetas de interpretação que não se cancelam, mas que produzem interpretações das mais diversas e contribuem para tornar a narrativa como gênero uma verdadeira aventura.

Por uma crítica inespecífica

Luciene Azevedo

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Créditos da imagem: Eikoh Hosoe, Kamaitachi #8, 1965

Já nos acostumamos a ouvir que boa parte das práticas artísticas hoje é marcada pela inespecificidade. Quando a crítica argentina Florencia Garramuño explora o termo, suas análises apontam para obras cujos
gêneros são imprecisos, e a denominação de arte parece imprópria, seja porque os objetos são “pobres”, seja porque a linguagem é sem metáfora ou o escritor e o poeta parecem apresentar apenas um relato do que viveram. Mas será que poderíamos pensar em uma inespecificidade que atinge também os modos de fazer crítica hoje? Aproveitando, então, o mote da inespecificidade seria possível pensar que alguns trabalhos críticos como Rio-Durham (NC)-Berlim. Um diário de ideias e Fragmentos reunidos de Fábio Durão ou O Mundo Inteiro como Lugar Estranho de Néstor Canclini deixam de lado requisitos determinantes para que dada produção seja considerada crítica?

Alberto Giordano, crítico argentino, que recentemente lançou dois livros que consistem em uma compilação de entradas críticas no facebook, plataforma que Giordano transformou em uma espécie de diário on-line para seus comentários, afirma que tem desejo de produzir um tipo de crítica que possa “suprimir as conjunções, as transições, interromper e não concluir, sugerir sem apresentar, afirmar e não oferecer provas”.

Mas vamos tomar o exemplo de Canclini. A própria obra é estranha e essa estranheza é acolhida como experimento. Os textos reunidos não pertencem a um gênero específico. Adotam o tom ensaístico, tateante, mas se valem de anedotas (“Pós-xerox”), fingem-se de entrevistas (“Lugar para a dúvida” e “O que não podemos responder”) e inventam personagens (como a voz do doutorando, presente em “Maneiras de citar” e “Supermercado de papers”). Há pouco aí que pode ser identificado à crítica, tal como estamos acostumados. Embora o autor dialogue com um número grande de fontes e em alguns textos faça citações direta das obras e autores evocados, não encontramos referências precisas, pois a recusa de apontar uma bibliografia é uma decisão metodológica apontada por Canclini: “seria contraditório com o sentido deste livro”, afirma.

 E que sentido seria esse? Embora o autor não faça uma reflexão sobre isso de forma explícita, me parece que a própria organização da obra quer apostar em valorizar mais as perguntas que as respostas (“trata-se de que os debates tornem visíveis as incertezas”…de “trabalhar o irresoluto das explicações”), em colocar em xeque o próprio lugar de autoridade do crítico, em expor situações de embaraço com a própria rotina e com os compromissos acadêmicos e em relacioná-los com a produção intelectual tout court.

Enfim, tudo isso aparece na forma do experimento crítico que quer flexibilizar ou contingenciar “precisões acadêmicas”, apontando-as inclusive como obsoletas em tempos de internet, pois “no fim das contas, na época do Google, basta colocar qualquer frase no servidor para ele nos enviar ao lugar de surgimento”.

Ao afirmar que é preciso então recorrer a uma “tormenta de gêneros” para problematizar a prática crítica e a prática do próprio crítico, Canclini parece sugerir um desejo de sair de um certo fazer crítico, de ir tateando na direção de uma inespecificidade que diz respeito não apenas à própria condição discursiva dos textos, que ao tematizarem episódios e identidades reais da vida acadêmica recorrem à ficcionalização, mas à própria condição do crítico como um pensiero debole: “Nem sempre está claro quem fala”, disse-me alguém que leu o rascunho deste livro. ‘Às vezes falta o sujeito’”.

Assim, a incerteza não deve ser encarada como lugar estranho à atitude crítica, mas pode ser  recuperada como ideia basilar, imanente ao próprio fazer crítico, pois como defende Canclini: “falar sob o ponto de vista da academia ou da erudição de uma disciplina não deveria nos poupar dessas dúvidas”.

A incerteza como estranheza é um estímulo a “imaginar novos modos de indagação”.  Em uma era em que as práticas digitais conduzem a um “novo regime simbólico”, não só o fazer crítico pode se reinventar como prática cultural, mas pode nos dar dicas de como encarar os desafios que nosso presente nos impõe.

Ficções escritas do eu

Marília Costa

Em minhas leituras recentes tenho me deparado com obras híbridas que misturam comentário sobre a literatura dentro do próprio texto literário, colocando o “eu” no centro da narrativa, protegido pela etiqueta da ficção. Trago como exemplo o livro Retrato desnatural (diários – 2004 a 2007) de Evando Nascimento, publicado em 2008 pela editora Record. A obra testa o limite dos gêneros ao mesclar textos com estrutura poética com outros de caráter ensaístico, narrativas e textos que parecem notas.

A obra, na ficha catalográfica do livro, aparece classificada como ficção. Logo, percebemos nesse empreendimento literário uma tentativa de lançar uma provocação ao conceito de ficção atrelado até então a gêneros como o romance e o conto e que em Retrato desnatural é tensionado para dar conta também de textos poéticos, notas e de uma certa dicção de registro do cotidiano presente na forma do diário.

No capítulo inicial do Retrato desnatural, “escrevendo no escuro”, percebemos o “eu” emergindo através da primeira nota:

“Pois


se tornou
imperativamente necessário
escrever na primeira pessoa, mas
sem ingenuidades, com todos os disfarces


o a(u)tor”

O autor-ator está intrinsecamente relacionado à questão da identidade, entendida como encenação e constituição de uma escrita performática. A primeira pessoa aparece a partir das marcas das leituras, dos estudos, de como o autor foi se constituindo ao longo do tempo, citando teóricos, autores de textos literários, pintores, passeando pelas outras artes. Desse modo, a primeira pessoa aparece sem ingenuidades, ou seja, sem subjetivismo exacerbado como era fácil encontrarmos no romantismo, por exemplo.

Minha inquietação é: será possível aproximar essa atuação do sujeito dentro do texto e amescla dos gêneros ficcionais e não-ficcionais para caracterizar um procedimento que alia crítica e ficção e propõe ler de outra maneira a volta do sujeito nas narrativas atuais e ao mesmo tempo pensar em novas formas de escrever ficção?