Arquivo do mês: agosto 2021

Escrita de si, Escrita de nós

Caroline Barbosa

Créditos da imagem: “As filhas de Eva” (2014), Rosana Paulino.

Como um dos resultados de minha pesquisa de iniciação científica, apresentei uma tabela sobre os conceitos que pareciam ser variantes do termo autoficção (alterficção,  alterbiografia e autoficção especular, entre outros). Me chamava a atenção, naquele momento, o fato de que o conceito de escrevivência sempre aparecia próximo e ao mesmo tempo distante desse rol de nomenclaturas. Por isso, resolvi dar prosseguimento a essa indagação em meu mestrado.

A origem do termo autoficção já é bem conhecida. Ele surge na França em 1977, após Serge Doubrovsky se sentir impelido a preencher uma das casas vazias no quadro elaborado por Philippe Lejeune, em 1973, para explicitar a noção de “pacto autobiográfico”. A casa mencionada, que Lejeune não conseguiu completar,  dizia respeito à relação onomástica entre autor, narrador e personagem.

Nesse contexto, Doubrovsky publicou o romance Fils (1977) e o chamou de autoficção. O escritor definiu sua prática como “ficção de fatos e acontecimentos estritamente reais”, e definiu também algumas características para seu empreendimento: a ausência de linearidade, o uso da metalinguagem, a exploração do tempo presente e de um pacto oximórico com o leitor (verdade e ficção), a fragmentação, o caráter psicanalítico do texto.

Na contemporaneidade, essa prática ganha destaque pela valorização do biográfico, com o incremento da exposição midiática e do interesse pela vida do autor, por exemplo. Diana Klinger chama de escritas de si as obras que transitam entre o ficcional e o factual, como a autoficção, próprias de nosso contexto atual em que público e privado se confundem.

Mas Conceição Evaristo, pesquisadora e escritora, parece repensar o solipsismo e o egocentrismo comumente relacionados a essas escritas, quando, ao cunhar o termo escrevivência o aproxima de uma “escrita de nós”, que diz respeito não apenas às vivências de um indivíduo, mas também à história de um coletivo, o da população afro-descendente.

O termo escrevivência foi mencionado pela primeira vez em 1995 pela própria Evaristo no Seminário de Mulher e Literatura. A imagem que embasa o termo é a da Mãe Preta, aquela que vivia como escrava dentro da casa-grande cuidando e contando histórias para adormecer os filhos dos poderosos. Assim, o projeto literário de Evaristo é apresentar a população afro-descendente, com foco especial nas mulheres negras, a partir das suas subjetividades, longe dos estereótipos racistas.

As principais características presentes nas obras de escrevivência são a ficcionalização de uma vivência individual que ao mesmo tempo transpassa a experiência do coletivo; o tempo circular, pois o trânsito entre passado e presente é constante, e a exploração de uma linguagem que se aproxima da oralidade, através do uso de palavras cotidianas, do modo de construção frasal, dos sentidos explorados pela carga simbólica que é trabalhada pelo texto.

Será que podemos pensar modos de relação entre a autoficção, que nasce do ambíguo, do jogo com o leitor, e a escrevivência que une o sujeito de enunciação individual com o coletivo, que busca revelar memórias que foram negadas? Como o campo literário está lidando com produções que possuem subjetividades, objetivos e temas narrados de formas distintas, mas que fazem parte do mesmo cenário literário contemporâneo: o do incremento da exposição e revelação de subjetividades?

A palavra e o túmulo

Antonio Caetano

Créditos da imagem: bellanaija.com

Notas sobre o luto (2021), de Chimamanda Ngozi Adichie, publicado pela Companhia das Letras, pode ser entendido como uma auto-investigação despretensiosa empreendida pela própria Chimamanda a respeito do luto pela morte do pai, James Nwoye Adichie. As notas da autora partem da notícia do falecimento dele, das relações de luto na família, das lembranças compartilhadas, das lembranças pessoais, dos medos, e tecem uma busca pelo sentido do luto. A escritora comenta que o luto é um aprendizado cruel que a ajuda a aprender “como os pêsames podem soar rasos” e como “o luto tem a ver com palavras, com a derrota das palavras e com a busca das palavras”. 

A relação entre o trabalho de luto e uma determinada “derrota e busca das palavras” me interessa, pois as palavras apresentam, ao mesmo tempo, o poder da criação de significados da representação, e o poder do encerramento, do sepultamento daquilo que foi dito. A palavra não é a coisa em si e seu significado é uma prova da ausência daquilo que é a fonte de significação. A palavra como rastro. Tal visão da palavra é abordada por Jeanne Marie Gagnebin em Lembrar, escrever, esquecer, no qual a teórica afirma que a palavra escrita seria um rastro de ausência dupla: “da palavra pronunciada e da presença do ‘objeto real’ que ele significa”. Ainda ao refletir sobre as palavras, Gagnebin também salienta o fato de a palavra grega sèma significar tanto “túmulo”, quanto “signo”, reforçando a conexão entre “memória, escrita e morte”.  

Acredito, dessa forma, que a conexão referida por Gagnebin associa-se ao “aprendizado cruel” que, para Chimamanda, é o que representa o luto. Afinal, a morte de alguém querido configura um trauma que abala o sentido das coisas e impõe a eterna falta desse alguém em sua vida. Uma falta que as palavras não conseguem representar à altura, e que, ainda por cima, a tornam evidente. Inclusive, há um momento em que, tomada de tristeza pouco após receber a notícia através do irmão, Chimamanda chega a dizer “Não! Não conte para ninguém, porque se a gente contar vira verdade”. Há, nesse caso, a noção da palavra como rastro, indicando a ausência impiedosa de quem se foi, assim como a impossibilidade de um reencontro real com essa pessoa.

Entretanto, Chimamanda salienta que, apesar de conter a derrota das palavras, o aprendizado cruel do luto também é constituído pela busca delas. Podemos ler algo semelhante na reflexão de Gagnebin quando afirma que “todo trabalho de pesquisa simbólica e de criação de significação é também um trabalho de luto”. Percebo esse movimento em um trecho em que Chimamanda discute sobre a limitação da expressão “sinto muito”; nesse momento a escritora comenta que a palavra “ndo”, em Igbo, reconforta mais por apresentar “fronteiras mais largas”, aproximando-se mais do “sinto muito” por um viés metafísico, e mais associado à empatia.

Não seria, então, viável pensar que em um trabalho de luto a busca pela palavra poderia ser uma busca pelo alargamento das fronteiras das próprias palavras, com o objetivo de ampliar suas potencialidades semânticas, fomentando, desse modo, um reencontro com a pessoa amada em falta através da escrita, da rememoração, da criação de signos e, consequentemente, de significados, para além do túmulo?

A autoficção e o teatro

Marília Costa

Créditos da imagem: Conversas com meu pai – Janaina Leite

Desde o meu ingresso no doutorado tenho encaminhado os meus interesses de pesquisa sobre a autoficção para além da literatura, pensando a possibilidade de um espaço autoficcional que contemple outras artes como o cinema e o teatro, por exemplo. Atualmente, tenho me dedicado a pensar como a tensão entre realidade e ficção se apresenta no teatro e quais as consequências formais desse hibridismo para o gênero.

Na minha postagem anterior, “Autoficção e desdramatização”, comentei brevemente sobre a peça Conversas com meu pai de Janaina Leite e o conceito de desdramatização proposto por Jean-Pierre Sarrazac em “O drama não será representado”. Hoje, pretendo expandir o diálogo sobre o tema a partir da análise do procedimento da preterição presente tanto na peça Seis personagens a procura de um autor de Luigi Pirandello, analisada por Sarrazac, como no espetáculo Conversas com meu pai, encenado por Janaina Leite.

Sarrazac sinaliza que o ponto central da peça Seis personagens a procura de um autor não é a representação do teatro dentro do teatro, mas sim o fato de o “autor considerar que essa peça anunciada como ‘a ser feita’ é, na verdade, uma ‘peça a ser desfeita’, um modelo de peça ‘bem feita’ a ser desfeita”. Assim, Sarrazac comenta que o procedimento retórico utilizado por Pirandello é a “preterição”, que consiste em “fingir não querer dizer (ou fazer), o que por outro lado, se diz (ou se faz) com muito mais força”.  Sarrazac  discute a ideia de um drama que será recusado, que não será representado até o final e no qual as histórias das personagens vão sendo contadas fragmentariamente. O que aponta para a ruptura da fábula, que deixa de ser uma mera sequência de ações.

Poderíamos aproveitar a reflexão de Sarrazac e pensar na preterição como um procedimento também presente em Conversas com meu pai. Ao longo do espetáculo a personagem vai se questionando sobre o motivo de estar realizando uma peça teatral a partir da sua própria vida. Desse modo, a personagem não aborda detalhadamente os últimos momentos com o pai, não revela o conteúdo dos bilhetes ou o segredo que disse que guardava desde o início da peça. Na direção contrária, ela vai se recusando a contar a história: “Não sei direito o que foi aquilo que eu fiz ali! Eu meio que me recuso a saber o que eu fiz ali totalmente, eu me recuso a ter aquela peça como a peça final!” Assim, resta ao espectador ir construído suas próprias versões a partir do desenrolar da encenação.

Na autoficção, a imbricação entre vida e ficção implica na construção de um efeito de linguagem que se aproxima da performance: “O autor é considerado como sujeito de uma performance, um sujeito que representa um papel nas suas múltiplas falas de si”, segundo Diana Klinger. Esse mecanismo metateatral de ir construindo o espetáculo enquanto ele é encenado se torna ainda mais radical quando o espetáculo mobiliza elementos ficcionais e biográficos ao mesmo tempo, criando uma cena inacabada, improvisada, que nos dá a ver como um work in process, nos termos de Cohen, um estudioso da performance.

Por fim, em Conversas com meu pai, a linguagem assume um papel importante na elaboração da cena autoficcional. “Quem faz autoficção hoje não narra simplesmente o desenrolar dos fatos, preferindo, antes, deformá-los, reformá-los, através de artifícios, afirma Eurídice Figueiredo. É exatamente o que ocorre no espetáculo de Janaina Leite: “eu fiquei por oito ou dez anos fazendo isso, criando essas versões de formas de falar da minha vida em cena, só que nenhuma versão da história dava conta do que realmente tinha acontecido!”.

Formalmente, cenicamente, os artifícios utilizados em Conversas com meu pai podem levar a caracterizar a peça como uma espécie de teatro-instalação ou teatro documental, já que no palco acompanhamos junto à atuação dispositivos midiáticos, objetos pessoais, imagens, áudios. Um exemplo é a cena em que a atriz principal, interpretada por Janaina Leite, coloca áudios gravados pelas irmãs para o público ouvir a fim de comparar com a versão lembrada por ela dos acontecimentos para realçar as diferentes versões dos “fatos”: “minha memória não presta como documentação de nada, porque o que aparece lá está deformado!!”.

À medida que vou investigando melhor a possibilidade de um teatro autoficcional me dou conta de que o mais instigante não é a investigação das fronteiras entre o biográfico ou o fictício, mas sim a análise dos procedimentos cênicos e textuais que são mobilizados na construção dramática e que exploram a ambiguidade da situação das personas em cena.