Hoje, é possível identificar a internet como um elemento importante tanto para a produção, circulação e divulgação das produções artísticas, quanto para a profissionalização do escritor. Ao intensificar a interação entre escritores, o ambiente virtual potencializa a comunicação e as trocas de informações entre os artistas; estabelece-se, assim, uma rede de relações que parece promover alterações nas engrenagens do campo literário.
Para além das mudanças nas formas de produção e na divulgação artística, a presença maciça de escritores que participam ativamente das redes sociais e de editores que arregimentam videobloggers para promover seus lançamentos fortalece o que o crítico Ítalo Moriconi, em um ensaio que se propõe a analisar a literatura a partir da existência de circuitos diversos, denomina “circuito da vida literária” É possível afirmar que esse circuito, hoje, encontra no suporte da rede o local ideal de ressurgimento dos espaços de comunicação entre os autores, cuja referência de valor centra-se exatamente no diálogo entre os pares.
Pode não ser novidade afirmar que essa rede de relações do ambiente virtual aproxima também o circuito crítico e o circuito midiático, além de promover as iniciativas políticas e culturais do que seria o circuito alternativo (movimento da escrita e publicação fora do mercado). Mas tal aproximação pode sinalizar um (outro) modo de organização estética, que recriaria outras esferas de legitimidade crítica.
Dito de outro modo: não parece improvável que a internet esteja concentrando as diferentes esferas do campo literário (autores, leitores, críticos, editores) em um mesmo espaço. Na condição de “grande salão virtual”, a internet movimenta a vida literária e altera as condições de formação do campo na contemporaneidade.
“A arte trabalha num tempo que não é o tempo da Avenida Paulista”
Em 2014, Ricardo Lísias ofereceu uma oficina on-line sobre “Aspectos do romance contemporâneo” no Centro de apoio ao escritor da Casa das rosas, que é um espaço virtual que fomenta a criação, edição e crítica literária. Na oficina, Lísias tematiza o que ele mesmo chama de projeto literário, voltado especificamente para a elaboração do texto em prosa.
Ricardo Lísias sugere como primeiro passo para ser um escritor de literatura contemporânea uma reflexão sobre a própria produção e considera como palavra-chave o termo “projeto” que, segundo o autor, refere-se tanto à exposição formal de intenções de trabalho, quanto ao caráter estético da produção ficcional.
De acordo com Lísias, os escritores modernistas dão uma lição de como a literatura é construída de forma consciente. Ler Virgínia Wolf, Franz Kafka, Marcel Proust e James Joyce, por exemplo, leva a uma reflexão sobre a linguagem, sobre a maneira como esses autores pensaram a literatura no século XX. Todos eles produzem no leitor alguma espécie de incômodo, perturbação ou dificuldade. E se ao leitor resta a sensação de falha, não é menor o “fracasso” desses escritores que foram capazes de demonstrar como a linguagem é, ao mesmo tempo, um recurso ilimitado e falho. Sendo assim, Lísias afirma que o principal desafio do escritor é o de encontrar uma linguagem.
Uma característica importante do projeto literário recente de Lísias é o uso frequente da narração em primeira pessoa, na qual o narrador se confunde com o próprio autor, resultando em “personagem-escritor”. Também há uma tendência por parte do autor em atuar de maneira multimídia, ou seja, além de escrever suas obras ele está presente no Twitter, Facebook, Instagram e revista on-line para comentá-los e divulgá-los. Além disso, vem explorando com maior frequência o formato e-book de publicação, como demonstra não apenas a série intitulada Delegado Tobias e Fisiologia da Idade, como sua atuação como editor da revista cultural Peixe-elétrico.
A confusão entre a identidade civil e a criação de uma imagem de autor nos textos é construída de modo consciente. Isto é evidente no livro Concentração e outros contos, texto que pode confundir o leitor num primeiro momento quanto aos limites entre ficção e realidade, devido ao excesso de personagens “reais”, mas que através da linguagem reestabelece o pacto ficcional.
Podemos arriscar, então, que o hibridismo entre o que é a opinião do próprio escritor em uma rede social e a transformação dos temas comentados on-line em matéria de ficção é uma das marcas das produções recentes do autor e faz parte de seu “projeto” atual.
Em outro post, publicado aqui nesse blog (Ladrão que rouba ladrã0…), Débora referiu-se à noção de gênio não original que dá título ao livro de Marjorie Perloff. Comentava ainda um empreendimento nacional que poderia caber como uma luva no argumento crítico de Perloff. Trata-se do romance Sujeito Oculto de Cristiane Costa que, na sua composição, vale-se da problematização de um conjunto de palavras chave-que ronda os capítulos do livro de Perloff: a apropriação, a originalidade, a criatividade autoral na produção de uma obra.
Considerando o pressuposto básico de Perloff de que a ‘originalidade’, segundo a inventio do século XXI, não estaria na criação de uma forma nova, mas na capacidade de manipular formas já existentes operando sobre elas, apropriando-se delas para recriá-las, o livro de Agustín Fernández Mallo, El Hacedor (de Borges), Remake pode servir como lenha que alimenta essa fogueira.
No Brasil, Mallo é mais conhecido pela Trilogia Nocilla, cujos dois primeiros volumes, Nocilla Dream e Nocilla Experience foram traduzidos pela Companhia das Letras. O primeiro livro publicado por Mallo após o sucesso mundial da trilogia foi o remake do livro de Borges. Mas o que significa fazer o remake de um livro? Manipulando suas páginas percebemos que todos os títulos das narrativas que integram o livro publicado por Jorge Luis Borges em 1960 se repetem no remake de Mallo, além de boa parte do prólogo e do epílogo escritos pelo autor argentino. O que poderia ser considerado uma repetição literal ou uma citação sem aspas repete-se em algumas poucas outras narrativas nas quais o texto de Borges aparece sem nenhuma alteração, literalmente copiado.
A descrição assim, a seco, do procedimento de Mallo parece apontar para uma apropriação indébida da assinatura de Borges. Foi assim que Maria Kodama, viúva de Borges, entendeu a iniciativa do autor espanhol e iniciou um processo por plágio contra a editora Alfaguara e contra o próprio Mallo. Sem pretender levar adiante a discussão, editora e autor decidiram recolher os exemplares do livro que até hoje só pode ser lido em cópias piratas na internet.
A primeira intervenção ao texto de Borges aparece na troca dos nomes do prólogo ao livro. O remake é dedicado a Borges, e é Mallo quem aparece na porta do escritório do autor argentino para entregar-lhe o livro, tal como o encontro com Lugones imaginado por Borges. Mas o procedimento da apropriação parece um pouco mais sofisticado que isso à medida que avançamos na leitura do remake.
Mas analisemos um pouco mais de perto o empreendimento de Mallo. Tomemos como exemplo “Mutaciones”. O original de pouco mais de meia página transforma-se na peça mais longa, e também central, do livro de Mallo. É difícil para o leitor associar o remake de “Mutaciones” a uma reescrita do texto de Borges, pois o texto é outro, ganha a marca da assinatura de outro nome e, no entanto, Borges paira aí fantasmaticamente, à maneira de um teste de Rorschach.
A versão remake de “Mutaciones” descreve três passeios refeitos virtualmente por Mallo com a ajuda de seu Macintosh. O primeiro passeio diz respeito à obra de Robert Smithson, publicada na revista Artforum em 1967, intitulada “Um passeio pelos monumentos de Passaic”, o segundo à reconstituição do mapeamento feito por investigadores à procura de vestígios de radiação após o vazamento na usina nuclear de Ascó na Espanha e no terceiro, o narrador refaz a busca por Ana, personagem do filme “La Aventura” de Antonioni, que desaparece na trama. Vamos acompanhar aqui apenas o primeiro dos passeios.
O relato começa à maneira de um diário de viagem informando ao leitor dados sobre a localização do narrador e os preparativos para o passeio:“Cidade de Nova York, ano de 2009, finais de julho, sete horas da manhã, picadas de mosquito…Preparo o material, confiro se o celular tem bateria suficiente”. Em seguida, o texto parece querer contextualizar a motivação do narrador explicando detalhadamente o empreendimento de Smithson que consistiu em percorrer as ruas de Nova York no final da década de 60, fotografando elementos da paisagem de um bairro do subúrbio a fim de provocar a discussão sobre a noção de monumento. Só depois da justaposição dos dois contextos (o do narrador em 2009 e de Smithson em 1967) ficamos sabendo que o efeito de real construído desde a introdução do relato (lemos, por exemplo, que o narrador ao preparar-se para sair ouve tocar em um volume muito alto no rádio de um carro uma música ouvida por porto-riquenhos) é, na verdade, mero efeito de ficção, pois trata-se de um passeio virtual, feito através do computador, de um telefone celular e com a ajuda do Google Maps: “Teclo no Google as palavras ‘Passaic, Nova Jersey’. Sem muita dificuldade encontro no Google Maps o plano atual da região que corresponde ao que foi percorrido por Smithson”. Mallo faz o que ele próprio chama de uma viagem psicogooglegráfica”. Tendo ao lado a reprodução do texto de Smithson publicada em livro, o narrador refotografa as fotos tiradas pelo artista americano, incorporando-as à narrativa. O que lemos, então, é a simulação do passeio feito pelo artista, agora refeito virtualmente pelo narrador. A narrativa mescla a descrição minuciosa do percurso do próprio Smithson, interpolando a reprodução de sua obra-artigo publicada na revista Artforum e o comentário expandido do processo narrativo de experimentar virtualmente o passeio de Smithson por Passaic.
À medida que somos arrastados para o que parece ser uma estratégia de presentificação do passeio, das ideias de Smithson, da experiência de refacção da caminhada pelo narrador, corroborado pela reprodução de fotos e mapas em reafirmação a um efeito de real, paradoxalmente, o efeito de ficção fica mais evidente quando, utilizando o zoom do Google street view, Mallo fotografa uma passante em uma das ruas pelas quais caminha virtualmente e entabula com ela um diálogo: “Parece que a mulher percebe que estou tirando uma foto dela e imediatamente para disfarçar, me aproximo e pergunto se é de Passaic ou se está apenas de passagem”.
Sem querer negar que a recuperação do relato feita aqui pareça muito distante do original de Borges, é possível, no entanto, identificar nas mutações efetuadas um eco da voz original, pois Mallo parece ter reinventado as lições de Pierre Menard, já que a imprevisibilidade das mutações sugere que a estratégia da apropriação pode renovar as noções de originalidade e criatividade.
Na versão impressa do remake, Mallo sugere aos leitores procurar no youtube alguns vídeos que acompanham as peças escritas, como acontece com “O simulacro”. veja aqui: